
INTRODUÇÃO
É conhecida de há muito tempo a relação entre nível de vida - ou condições de vida e de trabalho - e a saúde. Recentemente Paim6 (1995), em extensa revisão do assunto, levantou as principais propostas metodológicas para o estudo da desigualdade de origem social, desde a concepção ecológica da epidemiologia clássica (positivista), o enfoque geográfico-ecológico - caracterização do grau de desenvolvimento econômico e social de cada unidade de estudo _ até a construção de indicadores (Borrell1, 1995). A tautologia, assinalada por Samaja8 e ainda não resolvida, concebe a saúde como componente e ao mesmo tempo como resultado do nível de vida. Para os objetivos do presente trabalho consideramos que a saúde e o nível de vida são produtos da forma de organização da produção social e da inserção concreta do indivíduo no sistema produtivo e na sociedade. Destaca-se o estudo da desigualdade no adoecer e sua manifestação no interior dos sistemas de assistência à saúde num momento concreto. Na área da saúde, estudos epidemiológicos têm privilegiado a ocupação do indivíduo como o indicador principal do lugar que ele ocupa na sociedade; à ocupação encontram-se associados a renda, o nível de vida e as condições de saúde. A esses indicadores associa-se também o nível de acesso e consumo de serviços de saúde; no geral, igual aos outros setores sociais, tem-se que ao maior nível socioeconômico corresponde maior, e melhor, consumo de bens e serviços de saúde. Desta forma, na sociedade de classes onde as oportunidades e o consumo de bens e serviços seguem as linhas que demarcam os diferentes segmentos sociais, o padrão de consumo de assistência à saúde corresponde ao conceito de "medicina de classes" (Donnangelo e Pereira4, 1976). Problema associado a esta concepção reside em como caracterizar os usuários dos serviços de saúde, do ponto de vista da sua inserção econômica e social, visto que a maioria dos mesmos é composta por menores de idade, donas de casa, estudantes, aposentados e idosos (Yazlle Rocha12, 1975; Forster5, 1991), não fazendo parte, portanto, da população considerada economicamente ativa. Nos sistemas de assistência à saúde, essas pessoas são, geralmente, dependentes dos membros contribuintes do sistema de saúde, à exceção dos aposentados, que recebem assistência por direito adquirido. Todavia, sabe-se que, para aliviar as tensões geradas na desigualdade originária do modo de produção capitalista, criou-se o modelo de sociedade de bem-estar, onde o Estado se obriga a oferecer às populações desfavorecidas, por fora dos mecanismos de mercado, o acesso aos bens sociais: saúde, educação, habitação e outros. Isto representaria um mecanismo de mascaramento da desigualdade originária, produzida nas relações de produção, que se deslocaria para a "igualação" na esfera do consumo (Donnangelo e Pereira6, 1976).
Nos países centrais do sistema capitalista, os Estados de bem-estar criaram sistemas e mecanismos destinados a garantir os direitos sociais que viriam a ser considerados modelos para os países do terceiro mundo. A Inglaterra desenvolveu o Sistema Nacional de Saúde, que se tornaria o paradigma da saúde nos anos 60, mas encontra-se em fase de reorganização desde 1991. Lá, após os anos 70, já se tornara evidente que as políticas compensatórias não eram capazes de atenuar diferenças sociais. A publicação no início dos anos 80 do Black Report (Towsend e Davidson10, 1982) viria mostrar ao mundo que à desigualdade no adoecer e morrer se acrescentara a desigualdade na assistência médica (Whitehead11, 1992).
A interpretação e explicação das desigualdades sociais, como exposta anteriormente, fundamenta-se na concepção marxista da sociedade capitalista, de classes; embora largamente aceita esta concepção, não se conseguiu até hoje a operacionalização da categoria classes sociais que, além da posição do indivíduo na produção, deveria incluir as práticas jurídico-políticas e ideológicas. Entretanto, na área da saúde muitos dos problemas enfrentados situam-se em "bolsões" de desigualdades, caracterizando-se antes como problemas sociais do que médicos que urge equacionar.
Na Inglaterra há uma larga tradição em estudar grupos populacionais utilizando um modelo de estratificação baseado na ocupação dos indivíduos, que divide a população economicamente ativa em seis estratos: profissionais, intermediário, qualificados não manuais, qualificados manuais, semiqualificados e não qualificados (Towsend e Davidson10, 1982). Este modelo, que já se mostrou eficiente para estudos populacionais, perde utilidade quando se deseja estudar a fração da população atendida em serviços de saúde que, como se disse anteriormente, na sua maioria é constituída por pessoas fora da População Economicamente Ativa (PEA). Para contornar este problema, Forster5 estudou uma amostra das hospitalizações em Ribeirão Preto, através de uma entrevista com os pacientes internados e/ou parentes (Forster5, 1991), encontrando forte associação entre a ocupação do chefe de família e o sistema de assistência médico-hospitalar utilizado. Conhecer as desigualdades e problematizar sua existência, traduzidas em perfis diferenciais de morbi-mortalidade e padrões desiguais de assistência, é precondição para obter o encaminhamento da solução.
O objetivo do presente trabalho é testar um modelo para o estudo das desigualdades nas hospitalizações no Município de Ribeirão Preto (SP) entendidas como decorrentes da posição social das pessoas e das políticas de assistência médico-hospitalar no Brasil.
RESULTADOS
No ano de 1993 houve 97.946 internações nos hospitais de Ribeirão Preto, das quais 94.697 tiveram alta e 3.249 foram a óbito. Eram moradores em Ribeirão Preto os pacientes de 63.993 hospitalizações; dessas foram excluídas 7.700 hospitalizações de crianças recém-nascidas resultando nas 56.293 internações ocasionadas por 44.336 pacientes, que com 20% de reinternações, incluídas nesse total, são o objeto de estudo do presente trabalho. Isto representa um coeficiente de hospitalização de 125,2 por mil habitantes. Das 56.293 hospitalizações, 35,7% eram de pacientes trabalhadores com ocupação definida no processo produtivo (ou 20.083), e as restantes 36.210 (ou 64,3%) eram de seus dependentes (do lar, menores, estudantes, desempregados) e aposentados. Na Tabela 2 é apresentada a distribuição de hospitalizações de pacientes com inserção na economia, segundo o nível da ocupação e a categoria de internação. Verifica-se que em 4,5% dos casos, utilizaram serviços particulares, em 38,4 % deles, os sistemas de seguro saúde privados e em 57,0% das hospitalizações utilizaram o sistema único de saúde (SUS). Com referência ao nível da ocupação, tem-se que as hospitalizações de pacientes dos níveis profissional, intermediário e qualificado não manual utilizaram serviços de saúde privados, particulares e de medicina de grupo, em 4.327 oportunidades (sombreado forte) ou 66,2% destes casos; as que se utilizaram do sistema público foram 2.213 (sombreado claro) ou 33,8%. As hospitalizações de pacientes dos níveis qualificado manual, semi qualificado e não qualificado ocorreram em 56 a 79,7% dos casos no sistema público de saúde (sombreado forte) variando de 20,3 a 44,2% do total dessas hospitalizações os casos em que ocorreram em sistemas privados (sombreado claro). O teste do chi quadrado aplicado à Tabela 2 apresentou forte associação entre o nível de ocupação dos pacientes e a categoria, ou modalidade de financiamento, da internação (X2 = 2.735; p=0,000001, 10 g. l.).
Na Tabela 3 é apresentada a distribuição das hospitalizações de pacientes sem inserção econômica na produção, segundo a "ocupação" referida e a categoria da internação. Vê-se que a proporção das hospitalizações em serviços particulares foi igual a encontrada nas hospitalizações de pacientes com inserção na PEA; as hospitalizações na medicina de grupo ocorreram em proporção um pouco menor (31,6%) sendo que as hospitalizações no sistema público ocorreram em proporção um pouco maior (64,1%). Acredita-se que no geral as hospitalizações de pacientes fora da PEA se distribuem entre as diferentes categorias de internação de forma semelhante àquela observada entre os integrantes da PEA, dos quais eles são dependentes para assistência médico-hospitalar.
Em síntese, pode-se dizer que a assistência médico-hospitalar estudada encontra-se polarizada em dois subconjuntos sociais (sombreado forte), contíguos e parcialmente superpostos:
- o pólo dominante, constituído por hospitalizações de profissionais, técnicos e trabalhadores qualificados não manuais e seus dependentes que utilizam preponderantemente sistemas privados de assistência médica (4.327 hospitalizações da Tabela 2, ou 21,5% do total)
- o pólo subalterno, constituído por hospitalizações de trabalhadores qualificados manuais, semiqualificados e não qualificados que utilizam preponderantemente o sistema público de assistência médica (9.242 hospitalizações na Tabela 2, ou 46%)
- as áreas de justaposição (sombreado claro), representada por hospitalizações de profissionais, técnicos e trabalhadores qualificados não manuais que utilizam serviços públicos de saúde (área de justaposição descendente de 11% do total) e as hospitalizações de trabalhadores qualificados manuais, semiqualificados e não qualificados que utilizam serviços privados de saúde (justaposição ascendente de 21,4%) somando ambas 6.514 internações ou 32,4% do total (vide Tabela 2).
Na Tabela 4 consta alguns indicadores das hospitalizações segundo categoria da internação e a condição de saída dos pacientes (vivos ou mortos). A idade média em que ocorre a hospitalização é significativa pois reflete o resultado da exposição a riscos e o desgaste dos grupos sociais; a média de idade, para os pacientes que egressaram vivos, foi de 39,5 anos entre as hospitalizações particulares, 36,5 naquelas da medicina de grupo e 36,3 para os pacientes do SUS; a diferença fica mais clara se for utilizada a idade mediana (35, 34 e 32 anos, respectivamente). A diferença é mais acentuada nos pacientes que faleceram na hospitalização: a idade média variou de 66,9 anos, entre os particulares, a 56,1 anos entre os pacientes do sistema público (medianas de 70 e 60 anos respectivamente), ou seja, a morte ocorre dez anos antes, em média, entre os pacientes que utilizaram o sistema público. O coeficiente de mortalidade por mil hospitalizações é mais elevado entre os pacientes do SUS, (38,8 contra 27,7 entre os particulares e 16,6 para a medicina de grupo) embora esses sejam em média mais jovens do que os outros. Se for considerado o coeficiente de mortalidade por pacientes (excluindo as reinternações) as diferenças tornam-se ainda maiores: 50,3 óbitos por mil pacientes no SUS contra 32,3 entre os particulares e 20,6 na medicina de grupo. Não apenas as doenças que levam à hospitalização incidem mais precocemente entre usuários do SUS como levam estes à morte com maior freqüência, fato que a assistência médico hospitalar não conseguiu compensar. A mortalidade hospitalar foi menor entre os hospitalizados por sistemas de medicina de grupo, o que poderia ser explicado pelo fato que estes sistemas não cobrem algumas doenças crônicas e tendem a dificultar a assistência a casos graves, excluindo aquelas patologias não rentáveis, casos estes em que os pacientes são encaminhados para a assistência particular e o sistema público. Isto pode explicar as diferenças encontradas na duração média das internações, tanto entre os pacientes egressos vivos (3,1 dias para os particulares a 3,9 dias para o SUS) como para os casos de óbito (5,3 dias para os particulares, 6,7 para os casos da medicina de grupo e 7,7 dias para os pacientes SUS); essas diferenças na duração das hospitalizações sugerem que os casos são, certamente, mais graves e complexos entre os pacientes do sistema público. Estudou-se também a repetição das internações. Para conhecer plenamente este fato seria necessário que houvesse um único número de registro hospitalar para todos pacientes do município; o que temos é que cada hospital utiliza um número único para seus próprios pacientes. Assim pôde-se detectar as reinternações quando elas ocorrem no mesmo hospital, geralmente, por conta do mesmo sistema ou categoria da internação. Infelizmente não foi possível estudar as reinternações quando ocorrem por outro sistema ou categoria da internação que, geralmente se dá, em outro estabelecimento hospitalar; assim sendo, os presentes resultados subestimam, certamente, a realidade das reinternações. No entanto, apesar dessas limitações, pôde-se determinar que a proporção de pacientes com mais de uma internação no ano foi maior entre os usuários da medicina de grupo e do SUS do que entre os usuários da categoria particular (16,4 e 16,3 contra 11,1% respectivamente); igualmente, a média de internações nos pacientes com reinternações foi maior entre os pacientes do SUS do que entre os usuários dos sistemas privados (2,81 - 2,45 - e 2,48 para hospitalizações do SUS, da medicina de grupo e particulares).
Tabela 4 - Indicadores das hospitalizações segundo categoria da internação: condição de saída, idade média e mediana, duração média da internação e % de reinternações - Ribeirão Preto, 1993. Table 4 - Indicators of hospitalisations by inpatient category: condition on discharge, average and medianages, average length of stay and re-internment percentage - Ribeirão Preto, 1993.
* Excluídas as internações psiquiátricas ** Coeficiente mortalidade por mil pacientes, excluídas as reinternações PEA - População Economicamente Ativa SUS - Sistema Único de Saúde
Na Tabela 5 são apresentadas as causas da internação segundo grupos da Classificação Internacional de Doenças (CID) e a categoria da internação. Os perfis de morbidade hospitalar são diferentes para os dois pólos acima citados: assim, ao nível de análise dos grandes grupos da CID, entre as hospitalizações do SUS, são proporcionalmente mais freqüentes as doenças infecciosas e parasitárias, do sangue e dos órgãos hematopoiéticos, mentais, as anomalias congênitas e as lesões, envenenamentos e violências. Entre os pacientes particulares são proporcionalmente mais freqüentes as neoplasias, doenças do sistema nervoso central, do aparelho geniturinário, sistema osteomuscular, doenças perinatais e da pele e do tecido subcutâneo; entre os pacientes da medicina de grupo são mais freqüentes as hospitalizações por doenças do aparelho geniturinário, sistema osteomuscular e afeções perinatais. São proporcionalmente menos freqüentes do que o esperado entre pacientes SUS as doenças do aparelho geniturinário, do sistema osteomuscular e as afeções perinatais.
Tabela 5 - Distribuição das causas de internação segundo Capítulos da CID e categoria de internação - Ribeirão Preto, 1993. Table 5 - Distribution of the definitive causes of hospitalisation by CID chapters and inpatient category - Ribeirão Preto, 1993.
Capítulo CID
DISCUSSÃO
No Brasil há poucos estudos sobre assistência médico-hospitalar, e quando eles são realizados quase sempre estão referidos a estabelecimentos e/ou sistemas de assistência, particulares, seguros privados ou públicos o que dificulta análises gerais da assistência que possam esclarecer e orientar as decisões políticas nessa área. É desejável criar ou desenvolver bancos de dados em bases populacionais, incluindo variáveis, como a ocupação, que possam fundamentar estudos com alcance interpretativo dos fenômenos em estudo; curiosamente, o sistema de resgistro de hospitalizações da previdência social (AIH) não inclui a ocupação do paciente, mas o atestado de óbito a inclui: a ocupação passa a ser relevante somente após a morte do indivíduo?
Em estudos anteriores (Yazlle Rocha12, 1975) mostra que crianças, mulheres e idosos (acima da quinta década da vida) têm coeficientes de hospitalização mais elevados que o restante da população, sendo as causas destas internações as doenças da infância, problemas ligados à gravidez, parto e puerpério e as doenças crônicas e degenerativas, principalmente as cardíacas e vasculares cerebrais. Todavia, quando são feitos estudos em bases populacionais, trata-se a população como um todo homogêneo, abstrato, desconhecendo que há grandes diferenças entre classes (ou estratos) e que a explicação e a dinâmica da morbi-mortalidade passa pela existência e reprodução dessas desigualdades. O modelo de análise utilizado no presente estudo, centrado na inserção econômica do indivíduo na sociedade, dentro de uma perspectiva marxista, permitiu discernir a forte associação existente entre nível ocupacional e categoria da hospitalização; assim, a categoria da hospitalização, e o tipo de assistência a que se tem acesso, é atributo da situação social do paciente ou do responsável por ele, no caso dos dependentes. Pode-se então estudar os sistemas de assistência hospitalar como estimadores da posição social dos pacientes. Quando isto não se faz, e se integram estes dois subgrupos (ativos e inativos) para compor o conjunto dos hospitalizados provenientes de uma população conhecida, atribui-se as desigualdades encontradas às diferenças de idade e sexo, e não à sua base real: o pertencimento social de classes.
Entretanto, outra questão a considerar é que não há uma relação bi-unívoca entre pertencimento de classe e cobertura por sistemas sociais de assistência à saúde; isto leva à existência de áreas de justaposição, como as apresentadas na Tabela 2, que são expressão das políticas de saúde expandindo ou não a cobertura pelos diferentes sistemas. Na última década, o fenômeno mais presente, na região, tem sido a expansão da cobertura dos sistemas privados de assistência médico-hospitalar, por conta de convênios e contratos entre empresas e hospitais ou empresas médicas. De outro lado, diante de problemas crônicos e/ou graves, deficitários para a medicina de grupo, a tendência será ao encaminhamento ou fuga para os sistemas privado ou público, dependendo da posição do paciente. Acredita-se que é possível discriminar, nesse grande conjunto, que se denomina medicina de grupo, a existência de modalidades de assistência hospitalar intermediárias, que poderão desfazer em parte as justaposições assinaladas, ilustrando melhor os diversos gradientes assistenciais da nossa medicina de classes.
Muito embora limitados a 3 categorias de internação, com justaposições, os indicadores selecionados para caracterizar a assistência (duração, idade média, mortalidade, reinternação, etc.) confirmam a grande desigualdade existente entre as hospitalizações por sistemas privados e pelo sistema público. Ou seja, à desigualdade diante dos riscos de agravos à saúde vem se acrescentar a decorrente das diferenças no sistema de financiamento da assistência médico-hospitalar e suas conhecidas conseqüências: repressão de demanda e restrições de procedimentos que acabam determinando os resultados desiguais acima assinalados.
A análise da morbidade hospitalar, ao nível dos 17 grandes capítulos da CID, é problemática porque dentro de um capítulo pode-se ter subgrupos com maior freqüência ora para um pólo de pacientes, ora para o outro, com o qual, ao totalizar os dados, as diferenças existentes se anulariam nos resultados. O melhor, no futuro, será promover a análise por subgrupos ou categorias diagnósticas associando-os às ocupações e/ou sistemas de assistência hospitalar.
O modelo de estudo aqui aplicado mostrou-se factível e eficiente para o propósito desejado; separando os pacientes das hospitalizações em participantes ou não da PEA e, estratificando os primeiros em 6 níveis ocupacionais, foi possível mostrar a forte associação existente entre a posição social do paciente e o sistema de assistência médico-hospitalar utilizado. Desta forma é possível utilizar o sistema de financiamento das hospitalizações como indicador da posição social dos pacientes, para o estudo das desigualdades sociais. Mostrou-se a polarização da assistência hospitalar entre os sistemas particular e público de saúde, com utilização predominante, respectivamente, por profissionais e trabalhadores manuais, polarização que caracteriza a medicina de classes no Brasil. Foram constatadas, também, importantes diferenças quanto à idade média dos pacientes quando ocorre a internação e, sobretudo, na idade ao morrer (quando isto ocorreu), acometendo aos pacientes SUS com uma década de antecedência em comparação com os pacientes particulares. A duração média das hospitalizações foi maior entre os pacientes SUS, bem como a freqüência de reinternações. O perfil de morbidade hospitalar é diferenciado para as categorias de internação: entre as hospitalizações do SUS foram proporcionalmente mais freqüentes as doenças infecciosas e parasitárias, do sangue e órgãos hematopoiéticos, as mentais e anomalias congênitas e as lesões, envenenamentos e violências. Entre os pacientes de serviços privados foram proporcionalmente mais freqüentes as neoplasias, as doenças do sistema nervoso central, do aparelho geniturinário, do sistema osteomuscular, as perinatais e do tecido subcutâneo. O modelo de estudo proposto foi muito eficiente para o estudo das desigualdades entre os sistemas de assistência hospitalar.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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* Apresentado no VII Congresso Anual da Associação Latina para Análise de Sistemas de Saúde, Genebra, Suíça, junho, 1996. ** Aluno do Programa de Doutorado em Medicina Preventiva da FMRP-USP. Correspondência para/Correspondence to: Juan Stuardo Yazlle Rocha - Av. Bandeirantes, 3900 - V. Monte Alegre - 14049-900 Ribeirão Preto - SP - Brasil E-mail: jsyrocha@fmrp.usp.br Edição subvencionada pela FAPESP. Processo 97/09815-2. Recebido em 3.9.1996. Reapresentado em 8.4.1997. Aprovado em 21.5.1997.
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É conhecida de há muito tempo a relação entre nível de vida - ou condições de vida e de trabalho - e a saúde. Recentemente Paim6 (1995), em extensa revisão do assunto, levantou as principais propostas metodológicas para o estudo da desigualdade de origem social, desde a concepção ecológica da epidemiologia clássica (positivista), o enfoque geográfico-ecológico - caracterização do grau de desenvolvimento econômico e social de cada unidade de estudo _ até a construção de indicadores (Borrell1, 1995). A tautologia, assinalada por Samaja8 e ainda não resolvida, concebe a saúde como componente e ao mesmo tempo como resultado do nível de vida. Para os objetivos do presente trabalho consideramos que a saúde e o nível de vida são produtos da forma de organização da produção social e da inserção concreta do indivíduo no sistema produtivo e na sociedade. Destaca-se o estudo da desigualdade no adoecer e sua manifestação no interior dos sistemas de assistência à saúde num momento concreto. Na área da saúde, estudos epidemiológicos têm privilegiado a ocupação do indivíduo como o indicador principal do lugar que ele ocupa na sociedade; à ocupação encontram-se associados a renda, o nível de vida e as condições de saúde. A esses indicadores associa-se também o nível de acesso e consumo de serviços de saúde; no geral, igual aos outros setores sociais, tem-se que ao maior nível socioeconômico corresponde maior, e melhor, consumo de bens e serviços de saúde. Desta forma, na sociedade de classes onde as oportunidades e o consumo de bens e serviços seguem as linhas que demarcam os diferentes segmentos sociais, o padrão de consumo de assistência à saúde corresponde ao conceito de "medicina de classes" (Donnangelo e Pereira4, 1976). Problema associado a esta concepção reside em como caracterizar os usuários dos serviços de saúde, do ponto de vista da sua inserção econômica e social, visto que a maioria dos mesmos é composta por menores de idade, donas de casa, estudantes, aposentados e idosos (Yazlle Rocha12, 1975; Forster5, 1991), não fazendo parte, portanto, da população considerada economicamente ativa. Nos sistemas de assistência à saúde, essas pessoas são, geralmente, dependentes dos membros contribuintes do sistema de saúde, à exceção dos aposentados, que recebem assistência por direito adquirido. Todavia, sabe-se que, para aliviar as tensões geradas na desigualdade originária do modo de produção capitalista, criou-se o modelo de sociedade de bem-estar, onde o Estado se obriga a oferecer às populações desfavorecidas, por fora dos mecanismos de mercado, o acesso aos bens sociais: saúde, educação, habitação e outros. Isto representaria um mecanismo de mascaramento da desigualdade originária, produzida nas relações de produção, que se deslocaria para a "igualação" na esfera do consumo (Donnangelo e Pereira6, 1976).
Nos países centrais do sistema capitalista, os Estados de bem-estar criaram sistemas e mecanismos destinados a garantir os direitos sociais que viriam a ser considerados modelos para os países do terceiro mundo. A Inglaterra desenvolveu o Sistema Nacional de Saúde, que se tornaria o paradigma da saúde nos anos 60, mas encontra-se em fase de reorganização desde 1991. Lá, após os anos 70, já se tornara evidente que as políticas compensatórias não eram capazes de atenuar diferenças sociais. A publicação no início dos anos 80 do Black Report (Towsend e Davidson10, 1982) viria mostrar ao mundo que à desigualdade no adoecer e morrer se acrescentara a desigualdade na assistência médica (Whitehead11, 1992).
A interpretação e explicação das desigualdades sociais, como exposta anteriormente, fundamenta-se na concepção marxista da sociedade capitalista, de classes; embora largamente aceita esta concepção, não se conseguiu até hoje a operacionalização da categoria classes sociais que, além da posição do indivíduo na produção, deveria incluir as práticas jurídico-políticas e ideológicas. Entretanto, na área da saúde muitos dos problemas enfrentados situam-se em "bolsões" de desigualdades, caracterizando-se antes como problemas sociais do que médicos que urge equacionar.
Na Inglaterra há uma larga tradição em estudar grupos populacionais utilizando um modelo de estratificação baseado na ocupação dos indivíduos, que divide a população economicamente ativa em seis estratos: profissionais, intermediário, qualificados não manuais, qualificados manuais, semiqualificados e não qualificados (Towsend e Davidson10, 1982). Este modelo, que já se mostrou eficiente para estudos populacionais, perde utilidade quando se deseja estudar a fração da população atendida em serviços de saúde que, como se disse anteriormente, na sua maioria é constituída por pessoas fora da População Economicamente Ativa (PEA). Para contornar este problema, Forster5 estudou uma amostra das hospitalizações em Ribeirão Preto, através de uma entrevista com os pacientes internados e/ou parentes (Forster5, 1991), encontrando forte associação entre a ocupação do chefe de família e o sistema de assistência médico-hospitalar utilizado. Conhecer as desigualdades e problematizar sua existência, traduzidas em perfis diferenciais de morbi-mortalidade e padrões desiguais de assistência, é precondição para obter o encaminhamento da solução.
O objetivo do presente trabalho é testar um modelo para o estudo das desigualdades nas hospitalizações no Município de Ribeirão Preto (SP) entendidas como decorrentes da posição social das pessoas e das políticas de assistência médico-hospitalar no Brasil.
RESULTADOS
No ano de 1993 houve 97.946 internações nos hospitais de Ribeirão Preto, das quais 94.697 tiveram alta e 3.249 foram a óbito. Eram moradores em Ribeirão Preto os pacientes de 63.993 hospitalizações; dessas foram excluídas 7.700 hospitalizações de crianças recém-nascidas resultando nas 56.293 internações ocasionadas por 44.336 pacientes, que com 20% de reinternações, incluídas nesse total, são o objeto de estudo do presente trabalho. Isto representa um coeficiente de hospitalização de 125,2 por mil habitantes. Das 56.293 hospitalizações, 35,7% eram de pacientes trabalhadores com ocupação definida no processo produtivo (ou 20.083), e as restantes 36.210 (ou 64,3%) eram de seus dependentes (do lar, menores, estudantes, desempregados) e aposentados. Na Tabela 2 é apresentada a distribuição de hospitalizações de pacientes com inserção na economia, segundo o nível da ocupação e a categoria de internação. Verifica-se que em 4,5% dos casos, utilizaram serviços particulares, em 38,4 % deles, os sistemas de seguro saúde privados e em 57,0% das hospitalizações utilizaram o sistema único de saúde (SUS). Com referência ao nível da ocupação, tem-se que as hospitalizações de pacientes dos níveis profissional, intermediário e qualificado não manual utilizaram serviços de saúde privados, particulares e de medicina de grupo, em 4.327 oportunidades (sombreado forte) ou 66,2% destes casos; as que se utilizaram do sistema público foram 2.213 (sombreado claro) ou 33,8%. As hospitalizações de pacientes dos níveis qualificado manual, semi qualificado e não qualificado ocorreram em 56 a 79,7% dos casos no sistema público de saúde (sombreado forte) variando de 20,3 a 44,2% do total dessas hospitalizações os casos em que ocorreram em sistemas privados (sombreado claro). O teste do chi quadrado aplicado à Tabela 2 apresentou forte associação entre o nível de ocupação dos pacientes e a categoria, ou modalidade de financiamento, da internação (X2 = 2.735; p=0,000001, 10 g. l.).
Na Tabela 3 é apresentada a distribuição das hospitalizações de pacientes sem inserção econômica na produção, segundo a "ocupação" referida e a categoria da internação. Vê-se que a proporção das hospitalizações em serviços particulares foi igual a encontrada nas hospitalizações de pacientes com inserção na PEA; as hospitalizações na medicina de grupo ocorreram em proporção um pouco menor (31,6%) sendo que as hospitalizações no sistema público ocorreram em proporção um pouco maior (64,1%). Acredita-se que no geral as hospitalizações de pacientes fora da PEA se distribuem entre as diferentes categorias de internação de forma semelhante àquela observada entre os integrantes da PEA, dos quais eles são dependentes para assistência médico-hospitalar.
Em síntese, pode-se dizer que a assistência médico-hospitalar estudada encontra-se polarizada em dois subconjuntos sociais (sombreado forte), contíguos e parcialmente superpostos:
- o pólo dominante, constituído por hospitalizações de profissionais, técnicos e trabalhadores qualificados não manuais e seus dependentes que utilizam preponderantemente sistemas privados de assistência médica (4.327 hospitalizações da Tabela 2, ou 21,5% do total)
- o pólo subalterno, constituído por hospitalizações de trabalhadores qualificados manuais, semiqualificados e não qualificados que utilizam preponderantemente o sistema público de assistência médica (9.242 hospitalizações na Tabela 2, ou 46%)
- as áreas de justaposição (sombreado claro), representada por hospitalizações de profissionais, técnicos e trabalhadores qualificados não manuais que utilizam serviços públicos de saúde (área de justaposição descendente de 11% do total) e as hospitalizações de trabalhadores qualificados manuais, semiqualificados e não qualificados que utilizam serviços privados de saúde (justaposição ascendente de 21,4%) somando ambas 6.514 internações ou 32,4% do total (vide Tabela 2).
Na Tabela 4 consta alguns indicadores das hospitalizações segundo categoria da internação e a condição de saída dos pacientes (vivos ou mortos). A idade média em que ocorre a hospitalização é significativa pois reflete o resultado da exposição a riscos e o desgaste dos grupos sociais; a média de idade, para os pacientes que egressaram vivos, foi de 39,5 anos entre as hospitalizações particulares, 36,5 naquelas da medicina de grupo e 36,3 para os pacientes do SUS; a diferença fica mais clara se for utilizada a idade mediana (35, 34 e 32 anos, respectivamente). A diferença é mais acentuada nos pacientes que faleceram na hospitalização: a idade média variou de 66,9 anos, entre os particulares, a 56,1 anos entre os pacientes do sistema público (medianas de 70 e 60 anos respectivamente), ou seja, a morte ocorre dez anos antes, em média, entre os pacientes que utilizaram o sistema público. O coeficiente de mortalidade por mil hospitalizações é mais elevado entre os pacientes do SUS, (38,8 contra 27,7 entre os particulares e 16,6 para a medicina de grupo) embora esses sejam em média mais jovens do que os outros. Se for considerado o coeficiente de mortalidade por pacientes (excluindo as reinternações) as diferenças tornam-se ainda maiores: 50,3 óbitos por mil pacientes no SUS contra 32,3 entre os particulares e 20,6 na medicina de grupo. Não apenas as doenças que levam à hospitalização incidem mais precocemente entre usuários do SUS como levam estes à morte com maior freqüência, fato que a assistência médico hospitalar não conseguiu compensar. A mortalidade hospitalar foi menor entre os hospitalizados por sistemas de medicina de grupo, o que poderia ser explicado pelo fato que estes sistemas não cobrem algumas doenças crônicas e tendem a dificultar a assistência a casos graves, excluindo aquelas patologias não rentáveis, casos estes em que os pacientes são encaminhados para a assistência particular e o sistema público. Isto pode explicar as diferenças encontradas na duração média das internações, tanto entre os pacientes egressos vivos (3,1 dias para os particulares a 3,9 dias para o SUS) como para os casos de óbito (5,3 dias para os particulares, 6,7 para os casos da medicina de grupo e 7,7 dias para os pacientes SUS); essas diferenças na duração das hospitalizações sugerem que os casos são, certamente, mais graves e complexos entre os pacientes do sistema público. Estudou-se também a repetição das internações. Para conhecer plenamente este fato seria necessário que houvesse um único número de registro hospitalar para todos pacientes do município; o que temos é que cada hospital utiliza um número único para seus próprios pacientes. Assim pôde-se detectar as reinternações quando elas ocorrem no mesmo hospital, geralmente, por conta do mesmo sistema ou categoria da internação. Infelizmente não foi possível estudar as reinternações quando ocorrem por outro sistema ou categoria da internação que, geralmente se dá, em outro estabelecimento hospitalar; assim sendo, os presentes resultados subestimam, certamente, a realidade das reinternações. No entanto, apesar dessas limitações, pôde-se determinar que a proporção de pacientes com mais de uma internação no ano foi maior entre os usuários da medicina de grupo e do SUS do que entre os usuários da categoria particular (16,4 e 16,3 contra 11,1% respectivamente); igualmente, a média de internações nos pacientes com reinternações foi maior entre os pacientes do SUS do que entre os usuários dos sistemas privados (2,81 - 2,45 - e 2,48 para hospitalizações do SUS, da medicina de grupo e particulares).
Tabela 4 - Indicadores das hospitalizações segundo categoria da internação: condição de saída, idade média e mediana, duração média da internação e % de reinternações - Ribeirão Preto, 1993. Table 4 - Indicators of hospitalisations by inpatient category: condition on discharge, average and medianages, average length of stay and re-internment percentage - Ribeirão Preto, 1993.
* Excluídas as internações psiquiátricas ** Coeficiente mortalidade por mil pacientes, excluídas as reinternações PEA - População Economicamente Ativa SUS - Sistema Único de Saúde
Na Tabela 5 são apresentadas as causas da internação segundo grupos da Classificação Internacional de Doenças (CID) e a categoria da internação. Os perfis de morbidade hospitalar são diferentes para os dois pólos acima citados: assim, ao nível de análise dos grandes grupos da CID, entre as hospitalizações do SUS, são proporcionalmente mais freqüentes as doenças infecciosas e parasitárias, do sangue e dos órgãos hematopoiéticos, mentais, as anomalias congênitas e as lesões, envenenamentos e violências. Entre os pacientes particulares são proporcionalmente mais freqüentes as neoplasias, doenças do sistema nervoso central, do aparelho geniturinário, sistema osteomuscular, doenças perinatais e da pele e do tecido subcutâneo; entre os pacientes da medicina de grupo são mais freqüentes as hospitalizações por doenças do aparelho geniturinário, sistema osteomuscular e afeções perinatais. São proporcionalmente menos freqüentes do que o esperado entre pacientes SUS as doenças do aparelho geniturinário, do sistema osteomuscular e as afeções perinatais.
Tabela 5 - Distribuição das causas de internação segundo Capítulos da CID e categoria de internação - Ribeirão Preto, 1993. Table 5 - Distribution of the definitive causes of hospitalisation by CID chapters and inpatient category - Ribeirão Preto, 1993.
Capítulo CID
DISCUSSÃO
No Brasil há poucos estudos sobre assistência médico-hospitalar, e quando eles são realizados quase sempre estão referidos a estabelecimentos e/ou sistemas de assistência, particulares, seguros privados ou públicos o que dificulta análises gerais da assistência que possam esclarecer e orientar as decisões políticas nessa área. É desejável criar ou desenvolver bancos de dados em bases populacionais, incluindo variáveis, como a ocupação, que possam fundamentar estudos com alcance interpretativo dos fenômenos em estudo; curiosamente, o sistema de resgistro de hospitalizações da previdência social (AIH) não inclui a ocupação do paciente, mas o atestado de óbito a inclui: a ocupação passa a ser relevante somente após a morte do indivíduo?
Em estudos anteriores (Yazlle Rocha12, 1975) mostra que crianças, mulheres e idosos (acima da quinta década da vida) têm coeficientes de hospitalização mais elevados que o restante da população, sendo as causas destas internações as doenças da infância, problemas ligados à gravidez, parto e puerpério e as doenças crônicas e degenerativas, principalmente as cardíacas e vasculares cerebrais. Todavia, quando são feitos estudos em bases populacionais, trata-se a população como um todo homogêneo, abstrato, desconhecendo que há grandes diferenças entre classes (ou estratos) e que a explicação e a dinâmica da morbi-mortalidade passa pela existência e reprodução dessas desigualdades. O modelo de análise utilizado no presente estudo, centrado na inserção econômica do indivíduo na sociedade, dentro de uma perspectiva marxista, permitiu discernir a forte associação existente entre nível ocupacional e categoria da hospitalização; assim, a categoria da hospitalização, e o tipo de assistência a que se tem acesso, é atributo da situação social do paciente ou do responsável por ele, no caso dos dependentes. Pode-se então estudar os sistemas de assistência hospitalar como estimadores da posição social dos pacientes. Quando isto não se faz, e se integram estes dois subgrupos (ativos e inativos) para compor o conjunto dos hospitalizados provenientes de uma população conhecida, atribui-se as desigualdades encontradas às diferenças de idade e sexo, e não à sua base real: o pertencimento social de classes.
Entretanto, outra questão a considerar é que não há uma relação bi-unívoca entre pertencimento de classe e cobertura por sistemas sociais de assistência à saúde; isto leva à existência de áreas de justaposição, como as apresentadas na Tabela 2, que são expressão das políticas de saúde expandindo ou não a cobertura pelos diferentes sistemas. Na última década, o fenômeno mais presente, na região, tem sido a expansão da cobertura dos sistemas privados de assistência médico-hospitalar, por conta de convênios e contratos entre empresas e hospitais ou empresas médicas. De outro lado, diante de problemas crônicos e/ou graves, deficitários para a medicina de grupo, a tendência será ao encaminhamento ou fuga para os sistemas privado ou público, dependendo da posição do paciente. Acredita-se que é possível discriminar, nesse grande conjunto, que se denomina medicina de grupo, a existência de modalidades de assistência hospitalar intermediárias, que poderão desfazer em parte as justaposições assinaladas, ilustrando melhor os diversos gradientes assistenciais da nossa medicina de classes.
Muito embora limitados a 3 categorias de internação, com justaposições, os indicadores selecionados para caracterizar a assistência (duração, idade média, mortalidade, reinternação, etc.) confirmam a grande desigualdade existente entre as hospitalizações por sistemas privados e pelo sistema público. Ou seja, à desigualdade diante dos riscos de agravos à saúde vem se acrescentar a decorrente das diferenças no sistema de financiamento da assistência médico-hospitalar e suas conhecidas conseqüências: repressão de demanda e restrições de procedimentos que acabam determinando os resultados desiguais acima assinalados.
A análise da morbidade hospitalar, ao nível dos 17 grandes capítulos da CID, é problemática porque dentro de um capítulo pode-se ter subgrupos com maior freqüência ora para um pólo de pacientes, ora para o outro, com o qual, ao totalizar os dados, as diferenças existentes se anulariam nos resultados. O melhor, no futuro, será promover a análise por subgrupos ou categorias diagnósticas associando-os às ocupações e/ou sistemas de assistência hospitalar.
O modelo de estudo aqui aplicado mostrou-se factível e eficiente para o propósito desejado; separando os pacientes das hospitalizações em participantes ou não da PEA e, estratificando os primeiros em 6 níveis ocupacionais, foi possível mostrar a forte associação existente entre a posição social do paciente e o sistema de assistência médico-hospitalar utilizado. Desta forma é possível utilizar o sistema de financiamento das hospitalizações como indicador da posição social dos pacientes, para o estudo das desigualdades sociais. Mostrou-se a polarização da assistência hospitalar entre os sistemas particular e público de saúde, com utilização predominante, respectivamente, por profissionais e trabalhadores manuais, polarização que caracteriza a medicina de classes no Brasil. Foram constatadas, também, importantes diferenças quanto à idade média dos pacientes quando ocorre a internação e, sobretudo, na idade ao morrer (quando isto ocorreu), acometendo aos pacientes SUS com uma década de antecedência em comparação com os pacientes particulares. A duração média das hospitalizações foi maior entre os pacientes SUS, bem como a freqüência de reinternações. O perfil de morbidade hospitalar é diferenciado para as categorias de internação: entre as hospitalizações do SUS foram proporcionalmente mais freqüentes as doenças infecciosas e parasitárias, do sangue e órgãos hematopoiéticos, as mentais e anomalias congênitas e as lesões, envenenamentos e violências. Entre os pacientes de serviços privados foram proporcionalmente mais freqüentes as neoplasias, as doenças do sistema nervoso central, do aparelho geniturinário, do sistema osteomuscular, as perinatais e do tecido subcutâneo. O modelo de estudo proposto foi muito eficiente para o estudo das desigualdades entre os sistemas de assistência hospitalar.
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* Apresentado no VII Congresso Anual da Associação Latina para Análise de Sistemas de Saúde, Genebra, Suíça, junho, 1996. ** Aluno do Programa de Doutorado em Medicina Preventiva da FMRP-USP. Correspondência para/Correspondence to: Juan Stuardo Yazlle Rocha - Av. Bandeirantes, 3900 - V. Monte Alegre - 14049-900 Ribeirão Preto - SP - Brasil E-mail: jsyrocha@fmrp.usp.br Edição subvencionada pela FAPESP. Processo 97/09815-2. Recebido em 3.9.1996. Reapresentado em 8.4.1997. Aprovado em 21.5.1997.
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