domingo, 23 de dezembro de 2007

A criminalização da miséria.

por Luiz Antonio Guimarães Marrey

Maria de Tal teve que abandonar o barraco no qual vivia com seus pais, situado na encosta de um morro, quando ficou grávida. Foi então morar com seu companheiro João numa área de mangue, onde construíram outro barraco.
Para tanto, cortaram algumas árvores que lá estavam e com a construção impediram a regeneração da natureza, sendo que o mangue é área de preservação ambiental permanente.
Além disso, o esgoto da casa de Maria e João passou a ser jogado diretamente no rio ali existente, assim como faziam as outras dezenas de moradias situadas no mesmo lugar.
Enquanto João permanecia desempregado, Maria foi trabalhar, após se recuperar do parto, como garçonete num boteco situado nas imediações, ganhando cento e cinqüenta reais por mês, enquanto seu companheiro, de vez em quando, arrumava um “bico”.
Tendo havido uma fiscalização ambiental, Maria acabou processada criminalmente por infringir os artigos 48 (impedir a regeneração de vegetação), 50 (destruir vegetação protetora dos mangues) e 54 (causar poluição de qualquer natureza) da Lei nº 9605/98, que definiu os crimes ambientais.
A sociedade brasileira, na sua gritante desigualdade, deixa de oferecer perspectivas minimamente decentes e organizadas para milhares de marias e depois, quando tais pessoas, movidas pela necessidade de sobrevivência, procuram locais precários e indevidos para morar, correm o risco de serem vistas como “criminosas”.
A desordem urbana e a falta de políticas de moradia, suficientemente amplas e acessíveis, empurram muitos milhares de pessoas para a “criminalidade” dos loteamentos clandestinos e dos delitos ambientais, ao longo das represas e outros cursos d água, de tal forma que, se todos fossem punidos criminalmente, não haveria presídio que bastasse.
Enquanto não se consegue senão arranhar a impunidade dos maiores criminosos deste país, que praticam falências fraudulentas ou desviam dinheiro público mas continuam a freqüentar as colunas sociais, a falta de sensibilidade faz passar pelo constrangimento e ameaça de punição uma parcela do povo já excluída de qualquer benefício.
Essas pessoas lutam desesperadamente para sobreviver, mas também estão mais sujeitas a sofrer violência por parte de criminosos comuns e por alguns agentes públicos para os quais as garantias constitucionais são esquecidas quando se trata da população pobre.
A desigualdade da sociedade se reproduz na distribuição de justiça, que apesar de ter milhares de profissionais corretos, acaba tendo como resultado final, muitas vezes, uma justiça de classe.
É preciso lembrar que o direito à vida é o mais fundamental de todos e se sobrepõe aos outros direitos.
Apesar de isso ser o óbvio, é necessário relembrar tal conceito de tempos em tempos, sob pena da crescente criminalização de todos os movimentos sociais que direta ou indiretamente lutam pelo direito à vida.
A proteção ao meio ambiente é vital para a garantia da espécie humana e também da fauna e da flora.
A criação de uma opção digna de moradia, certamente, levaria Maria e sua família a sair do mangue possibilitando sua regeneração e preservação.
No entanto, a preservação ambiental não pode ser feita à custa da criminalização dos miseráveis, mas sim daqueles que desviam dinheiro público e empurram as pessoas para o exercício da sua “liberdade” de morar debaixo das pontes ou em áreas proibidas.
A propósito do caso acima referido, o juiz poderia absolver Maria reconhecendo que a mesma agiu em estado de necessidade, mas preferiu absolvê-la por outros motivos técnico-jurídicos.
O principal é que ficou claro que Maria não é “criminosa” mas sim uma grande vítima de um sistema que exclui e depois pune que os que teimam em sobreviver.

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