domingo, 31 de outubro de 2010

Descentralização da saúde pós constituição de 1988: entre (boas) intenções e gestos desencontrados.


Flavio Goulart[1]

INTRODUÇÃO

A ênfase na descentralização do texto constitucional de 1988 é bastante expressiva, traduzindo-se não só por ação legislativa concorrente entre os níveis de governo, como por delegações de competências e atribuições aos estados e municípios. Inúmeras ações desses níveis de governo são ampliadas em relação aos textos constitucionais anteriores, com maiores responsabilidades e prerrogativas atribuídas aos mesmos. Assim, aumenta o poder legiferante dos estados e dos municípios em aspectos tão variados como saúde, educação, preservação da natureza, patrimônio artístico e cultural. Novas competências são estabelecidas em assuntos de interesse local também na tributação, na aplicação de receitas, na organização do território. Na área social as mudanças são altamente expressivas, estabelecendo novas responsabilidades e também prerrogativas diversas em relação à saúde, à educação, ao meio ambiente, à assistência social.
O quadro abaixo, que não chega a ser exaustivo, procura trazer uma súmula de diversos aspectos da Constituição Federal de 1988 em que novas responsabilidades e competências são estabelecidas para os estados e municípios brasileiros. Ele foi baseado diretamente na Carta promulgada em 1988, sem o cotejamento com as emendas constitucionais que promoveram mudanças em vários dispositivos, considerando que o que se almeja é demonstrar as expectativas dos constituintes da época, não propriamente o estado atual do texto constitucional.



QUADRO I – CONTEÚDOS DA CONSTITUIÇÃO FEDERAL DE 1988 RELATIVOS Á DESCENTRALIZAÇÃO DAS POLÍTICAS PÚBLICAS.


Da Organização do Estado


Art. 18 – Afirmação da autonomia da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios
Da União
Art. 20 – Assegura-se aos entes federativos participação no resultado da exploração de recursos naturais ou de compensação financeira por essa exploração.
Art. 23 – Define competências comuns da União e dos outros entes federativos: saúde e assistência pública; obras e outros bens de valor histórico; acesso à cultura, à educação e à ciência; meio ambiente, florestas, fauna e flora; fomento da produção agropecuária e abastecimento; construção de moradias; saneamento básico; pobreza e fatores de marginalização; concessões de direitos de pesquisa e exploração de recursos hídricos e minerais.
Art. 24 – Define competências concorrentes de legislação por parte da União e dos demais membros, entre elas: conservação da natureza e dos recursos naturais; patrimônio histórico, cultural, artístico, turístico e paisagístico; dano ao consumidor; educação; desporto; previdência social, saúde; assistência jurídica; portadores de deficiência; infância e juventude; direito tributário, financeiro, penitenciário, econômico e urbanístico; produção e consumo.
Dos Estados Federados
Art. 25 – Estabelece as prerrogativas dos Estados (UF) na instituição de regiões metropolitanas, aglomerações urbanas e microrregiões, constituídas por agrupamentos de Municípios limítrofes, para integrar a organização, o planejamento e a execução de funções públicas de interesse comum.
Dos Municípios
Art. 30 – Estabelece competências legislativas municipais sobre assuntos de interesse local; tributos; aplicação de rendas próprias; organização de território; programas de educação pré-escolar e de ensino fundamental; saúde; ordenamento territorial; proteção do patrimônio histórico-cultural local.
Do Poder de Intervenção
Art. 34 – Restringe a intervenção da União nos demais membros da Federação, salvo apenas exceções restritas e pontuais, como manter a integridade nacional; repelir invasão estrangeira; por termo a grave comprometimento da ordem pública; garantir o livre exercício dos Poderes; reorganizar finanças públicas.
Da Segurança Pública
Art. 144 – Define que as prerrogativas principais são da União e dos Estados, mas faculta aos Municípios constituir guardas municipais destinadas à proteção de seus bens, serviços e instalações.
Do Sistema Tributário Nacional
Art. 149, 155, 156 – Institui e define tributos das três esferas de governo, inclusive contribuições sociais em casos específicos por parte dos Estados e dos Municípios.
Art. 157, 158, 159, 160 – Estabelece parcelas de arrecadação da União de que constituem direito dos demais entes federados.
Da Política Urbana
Art. 182 e 183 – Estabelece competências municipais no desenvolvimento urbano, incluindo: planos diretores, regulação sobre a propriedade urbana; titulações, usucapião, desapropriações; penalidades por uso indevido de imóveis etc.
Da Seguridade Social
Art. 195 – Define o processo de financiamento da Seguridade Social, com participação de toda a sociedade, de forma direta e indireta e também mediante recursos provenientes dos orçamentos da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios, além de contribuições sociais.
Da Saúde
Art. 196, 197, 198: Estabelece que a Saúde é dever do Estado, garantido por políticas sociais e econômicas, acesso universal e igualitário, dotada de relevância pública, cabendo ao Poder Público dispor sobre sua regulamentação, fiscalização e controle, com a execução direta ou através de terceiros, organizada mediante regionalização e hierarquização, de forma descentralizada, com direção única em cada esfera de governo e financiada com recursos do orçamento da seguridade social, da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios, além de outras fontes.
Da Assistência Social
Art. 204 – Preconiza diretrizes de descentralização político-administrativa; coordenação e normas gerais pela esfera federal, com coordenação e execução pelas esferas estadual e municipal, bem como a entidades beneficentes e de assistência social, além da participação da população.
Da Educação
Art. 211 – Estabelece a organização, pela União, Estados, Distrito Federal e Municípios, em regime de colaboração, dos respectivos sistemas de ensino com assistência técnica e financeira da União. Estabelece para os municípios a atuação prioritária no ensino fundamental e pré-escolar.
Art. 212 – Define o financiamento da Educação: União aplicará, anualmente, nunca menos de 18%, e os demais entes 25% da receita resultante de impostos na manutenção e desenvolvimento do ensino.
Da Ciência e Tecnologia
218 – Faculta aos Estados e ao Distrito Federal vincular parcela de sua receita orçamentária a entidades públicas de fomento ao ensino e à pesquisa científica e tecnológica.

Sem dúvida, são desideratos ambiciosos, retratos de uma era de reconquista democrática e também de fortes expectativas, nem sempre fundadas na realidade, em relação a determinados aspectos da mesma, frutos de contingências na verdade mutáveis a cada dia, particularmente diante das transformações políticas, econômicas e culturais dos últimos anos. Devem ser registradas, também, mudanças de índole epidemiológica, demográfica, tecnológica, além daquelas culturais, ligadas à própria percepção de direitos por parte dos cidadãos, que constituem um panorama fluido, não só no Brasil como no Mundo e que muito se transformou desde o ano em que a CF foi promulgada. Isso pode significar que a ambição dos constituintes, embora legítima, não teria encontrado terreno propício para se concretizar em muitos casos e, em outros, talvez, não tivesse encontrado correspondência real com a evolução dos fatos sociais.
Em síntese e para início da reflexão que ocupará estas páginas, a CF 88 representou um exuberante fato jurídico, que a diferencia e qualifica em relação às suas antecessoras. Mas enquanto fato social concreto – e isso é bastante notório na área da saúde – como nos versos de Fernando Pessoa, a Constituição de 1988 ainda falta cumprir-se...
Este trabalho tem por objetivo demonstrar que, na área da saúde, algumas das disposições constitucionais não se realizaram, no todo ou em parte. Seu foco essencial será colocado na questão da descentralização das ações e serviços de saúde, uma das palavras de ordem mais fortes na formação do Sistema Único de Saúde, criado através da CF 88. Essa não-realização pode ter ocorrido por mera impossibilidade factual, diante das mudanças sociais inesperadas e até mesmo insuspeitadas nos anos 80, ou então por decisão política fragmentada, lenta, desencontrada, incoerente ou mesmo ausente.
Além da consulta às fontes credenciadas, a análise aqui realizada procurou também valorizar os artigos produzidos por determinados autores que também foram ou são atores do processo de descentralização em saúde. Tal categoria engloba aquelas pessoas que, a par de sua militância na área de gestão da saúde em instâncias relacionadas diretamente com descentralização, geralmente no Governo Federal, publicaram também suas reflexões e opiniões sobre tal tema na literatura especializada. É digno de nota, também, que isso não chega a ser um acontecimento raro na área da saúde, tanto em termos da história do SUS como ainda na atualidade. A importância e a riqueza de tal combinação de ação-reflexão podem ser traduzidas pelo fato de que foi possível localizar e analisar escritos dos diversos Secretários de Assistência à Saúde do Ministério da Saúde, área responsável diretamente pela condução do processo de descentralização, entre 1993 e 2008, com uma única exceção.

DESCENTRALIZAÇÃO: MARCO CONCEITUAL


Segundo BOBBIO (2004), centralização e descentralização não são instituições jurídicas únicas, mas formulações relativas a possíveis modos de ser dos aparelhos político-administrativos. Igualmente não chegam a ser conceitos operativos de forma imediata, antes, representam valores entrelaçados, entre os quais se estabelece uma troca contínua, ou também situações ideais ajustados ao entendimento de cada sociedade. A verdade é que todos os ordenamentos jurídicos conhecidos são parcialmente (e imperfeitamente) centralizados e descentralizados. Pode-se dizer que descentralizações não surgem da mesma forma em toda parte, sendo indispensável compreendê-las dentro do contexto social, da história e do tipo de sociedade.
Há que se considerar, preliminarmente, que diferentes manifestações de centralização e de descentralização possam ocorrer em distintos tipos de Estado, federativos ou unitários. Tais diferenças não são apenas quantitativas, remetendo a discussão para a distinção entre a descentralização administrativa e aquela efetivamente política, que pressupõe, esta última, garantia de maior autonomia, o que seria mais factível nas federações. Mas mesmo nas federações de história e tradições robustas, como seria o caso da Alemanha, por exemplo, a questão das regiões – e não apenas dos entes federados formais – costuma ser um dilema mal resolvido, pois que as obrigações do estado federado vigoram imperfeitamente face ao recorte de regiões, que não dispõe efetivamente de uma real independência com relação ao poder central, como, aliás, é bem o caso brasileiro (ABRUCIO & SOARES, 2001).
Há uma vasta problemática e confrontos envolvendo as formulações teóricas sobre a descentralização, por exemplo, entre aquela que aponta o espaço local como lócus natural de virtuosismo e igualmente sua oposta, de que a descentralização constitua um mero redirecionamento para o mercado e para os atores locais, reduzindo as possibilidades de politização. A este respeito, aliás, muitas das formulações teóricas disponíveis têm como foco a realidade dos países industrializados, com bases conceituais e metodológicas nem sempre aplicáveis a outros países. Da mesma forma, há que precaver contra o habitual confronto entre as formulações marxistas, de um lado, que explicam a centralização e a descentralização como correspondentes aos movimentos mundiais do capitalismo, aspecto ao qual pode faltar base empírica, versus teorias opostas, ditas da escolha pública, nas quais a descentralização é vista como fator importante na limitação da voracidade dos burocratas, políticos, eleitores e outros agentes maximizadores de despesas. Na verdade, essas duas visões são de difícil aplicação em países em desenvolvimento, conforme aponta Souza (1998).
Existe certa tendência, corroborada pelo senso comum, de correlacionar positivamente descentralização com liberdade, pluralismo e democracia. Isso, entretanto pode ser apenas o resultado de observações relativas a realidades circunscritas. Tal raciocínio tem como ponto de partida a falsa dicotomia entre centralização e descentralização, categorias que não chegam a ser contrapostas. Mas, sem dúvida, a descentralização é tomada contemporaneamente como valor e, na prática, comparece como meta política inserida no programa de todos os partidos políticos, independente do matiz ideológico. Além disso, como lembra Arretche (1997), a possível associação entre centralismo e autoritarismo deveria ser explicada mais profundamente, de forma a revelar o modo com que se associaram, no processo de formação nacional, as estruturas de governo central e as elites locais, ou seja, é o grau de incorporação ou de cooptação de tais elites no seio do Estado é que as estimularia a identificarem e acolherem a descentralização e a democratização em suas demandas por maior participação no processo político.
Da mesma forma, a descentralização tem sido correlacionada com o desenvolvimento das sociedades, ou seja, é vista como um instrumento de desenvolvimento social e como estratégia para a redução do papel do Estado, além de mecanismo de incremento de eficiência. Entretanto, há problemas teóricos e empíricos mal resolvidos também nesta questão, pois para cada princípio a favor da descentralização, pode-se igualmente identificar outro que o contrarie. Além disso, a descentralização às vezes é vista apenas como uma concessão do centro para a periferia dos sistemas, ignorando os níveis intermediários de governo. Como se não bastasse, não existem garantias, de fato, de que os benefícios de políticas descentralizadoras são sempre distribuídos com equidade, como ainda aponta Arretche (1997).
Há também dúvidas sobre a capacidade dos processos de descentralização acarretar certo esvaziamento das funções do governo central. A experiência brasileira, mesmo no período pós-constitucional, mostra, particularmente na área da saúde, expansão seletiva das funções do governo central, com fortalecimento da condução e da regulação das políticas decorrentes do próprio processo de descentralização.
Como conseqüência, caberia indagar também se a descentralização traria condições de viabilizar mecanismos de controle sobre a ação dos governos. Arretche (1997) considera que, se por um lado se dá maior aproximação entre eleitos e eleitores, isso pode também resultar em desvios clientelistas. Assim, importaria mais a natureza das instituições de prestação de serviços do que a escala de prestação dos mesmos, bem como a capacidade de governo e do controle dos cidadãos sobre suas ações.
Falar de descentralização implica em considerar associadamente a questão do federalismo, aspecto particularmente relevante no Brasil, pelas características, até certo ponto inéditas, de forte autonomia – referida às vezes até mesmo como soberania – de seus entes constituintes. O Brasil, na verdade, é um país federativo caracterizado pela existência de múltiplos centros de poder, gerando um complexo sistema de dependência política e financeira entre as esferas governamentais, não-governamentais e multilaterais, pela existência de vários caminhos para a prestação de políticas públicas e por grandes disparidades inter e intra-regionais, o que se acentuou com a redemocratização na década de 80, conforme afirma Souza (2002).
Assim, na peculiar organização federativa brasileira, cada ente é praticamente autônomo e soberano e, assim, as transferências de atribuições e competências encontram-se diretamente relacionadas com as chamadas barganhas federativas. Trata-se de um sistema político no qual convivem enormes desigualdades estruturais e administrativas, aspectos agravados pela dimensão territorial do país. Dentro de tal contexto, Souza (2002) propõe fatores que permitiriam entender e explicar a descentralização no Brasil, quais sejam: (a) estruturais, como a capacidade fiscal e a capacidade administrativa; (b) institucionais, as políticas prévias, as regras constitucionais e a engenharia operacional inerente à prestação de bens e serviços, além da ação política indutiva das esferas de governo interessadas em transferir responsabilidades, (d) tradição de participação política local, ou cultura cívica.
Diante de tal modalidade peculiar de federação como a brasileira, ganha especial destaque o que Arretche (2000) chama de ações políticas positivas para a descentralização, enumerando entre elas: coordenação, incentivo, indução, cálculo, escolha, decisão, todas elas associadas a dimensões estruturais e institucionais. São especialmente destacadas as estratégias de indução, desenhadas e implementadas para compensar os fortes obstáculos à descentralização derivados dos atributos estruturais de estados e municípios ou mesmo dos atributos institucionais das políticas. Afinal, trata-se de uma federação na qual alguns estados e milhares de municípios possuem baixa capacidade fiscal, administrativa, técnica e política, o que justificaria tal ação deliberada dos governos centrais, embora estas venham a depender do cálculo dos governos locais sobre os custos e benefícios de assumir competências.
A discussão sobre federalismo implica em detalhamento relativo a certos aspectos indissociáveis do mesmo, quais sejam: poder local, autonomia, redes federativas. O Brasil, como resultado de um processo de redemocratização e descentralização, pós anos 80, passou por grande fortalecimento do poder político dos governos subnacionais, embora suas capacidades de realizar tarefas típicas de governo não tenham evoluído da mesma forma. Tal fortalecimento não acarretou que os benefícios da descentralização se distribuíssem uniformemente, aspecto agravado pela vasta dimensão territorial e pelas desigualdades sociais e regionais do país. Assim, as relações governamentais, a autonomia local e os efeitos da descentralização variaram substancialmente, com resultados dependentes das forças políticas locais.
Além disso, mesmo com a descentralização financeira correndo a favor das esferas estaduais, reduziram-se as possibilidades de ajuda, seja federal ou mesmo estadual, aos governos municipais, apesar da existência dos fundos de participação, potencialmente favorecedores de um equilíbrio vertical do sistema tributário. Assim, milhares de municípios que não podem sobreviver sem a ajuda adicional da União e dos estados também não teriam condições de iniciar, sozinhos, esforços assunção de responsabilidades. Neste aspecto, deve-se evitar um equívoco derivado do senso-comum, ou seja, o de que se o Estado ou o governo não vão bem, então seu oposto, ou seja, o mercado, a competição, os conselhos comunitários, as ONG etc. devem ser as alternativas substitutivas ao mesmo, conforme é lembrado por Souza (1998).
O papel do governo local varia em cada época e circunstância, de acordo com os atores que participam da definição da cena política e das funções exercidas pelo Estado no qual o governo local está inserido. Além disso, e ainda mais em um país como o Brasil, cada município é único e singular, dentro de um contexto complexo de fatores sociais, demográficos, políticos e econômicos, o que faz com que propostas de reformas nos governos locais pressuponham a identificação e a compreensão de tais fatores. Isso é particularmente importante nos países marcados por profundas desigualdades regionais, como no caso nacional, no qual existem inúmeros casos em que reformas isoladas da administração pública local resultem em escassa capacidade de transformação das práticas políticas, da alocação de recursos locais ou da melhor operacionalização das políticas públicas, lembra a mesma autora.
Sobre a autonomia, Abrucio & Soares (2001) chamam atenção para o fato de que a mesma, embora constitua aspecto fundamental no debate sobre a descentralização das políticas públicas, ainda é questão complexa e mal resolvida no Brasil. No limite, e em termos locais, pode até mesmo resultar em uma verdadeira disfunção, o chamado neo-localismo, que representa incremento do poder oligárquico, só que agora com nova localização – o município. Portanto, cabe indagar: de qual descentralização se fala? É preciso rejeitar, lembram os autores em pauta, a dicotomia entre centralização e descentralização; o foco deve estar nos mecanismos de coordenação entre governos, com busca de um equilíbrio fundado na diversidade e moldada permanentemente pelos princípios contratualistas versus o viés competitivo entre os entes da federação brasileira. É assim que surge a idéia das redes federativas, com a criação de instituições, políticas e práticas entre níveis de governo, de forma a reforçar os laços entre os entes, sem prejuízo do pluralismo e da autonomia.
Um novo federalismo distorcido e característico de uma federação de múltiplas faces, todavia, poderia estar começando a acontecer no Brasil, apontam com certo pessimismo os autores referidos acima, resultante da combinação entre a demanda política por descentralização e a crise do modelo centralizado de intervenção estatal. Exemplo disso seria o municipalismo autárquico, resultado das mudanças tributárias pós-88, cuja marca registrada são os acordos não-cooperativos e até mesmo predatórios ente os entes federados – a chamada guerra fiscal. Os autores preconizam o revigoramento da consciência regional como um dos aspectos favoráveis à manutenção e ampliação da cooperação intermunicipal e da formação de redes (ABRUCIO & SOARES , 2001).
Ainda no campo da análise sobre a crise de governabilidade derivada das relações competitivas e predatórias entre níveis de governo, Viana (2001), tendo em foco o caso da saúde no Brasil, evidencia o paradoxo de que a política descentralizadora precisou se apoiar em forte indução estratégica central, mas ao mesmo tempo não expressou meramente estratégias constrangedoras aos níveis sub-nacionais de governo, com novos espaços de negociação e de pactuação, novos ordenamentos e novos atores no cenário. Abriu-se, assim, a transição para um novo pacto federativo atualmente em curso no país, com reflexos notáveis na área da saúde, pelo menos.

A DESCENTRALIZAÇÃO DA SAÚDE PÓS CONSTITUIÇÃO DE 1988


A história das políticas de saúde no Brasil é bem conhecida e, em linhas gerais, segue o mesmo padrão de alternância entre centralismo (predominante até os anos 90) e descentralização, instaurada formalmente com a Constituição de 1988 e as Leis Orgânicas da Saúde (leis 8080/90 e 8142/90) (CONASS, 2003) que vieram em sua esteira.
No caso específico da saúde, surgem como marcos peculiares a emissão das chamadas NOB – Normas Operacionais Básicas, em 1992, 1993 e 1996, seguidas da NOAS – Norma Operacional de Assistência à Saúde, de 2001-02 (CONASS, 2003). O espírito destas normas, emitidas mediante portarias do Ministério da Saúde, foi o de conduzir a implantação do arcabouço desenhado no texto constitucional e nas já referidas Leis Orgânicas da Saúde, já que tais documentos não chegavam a ter caráter auto-aplicativo, carecendo de detalhamentos operacionais. Seus focos principais eram a descentralização das ações e serviços, o financiamento, a organização de serviços e o relacionamento geral entre as esferas de gestão. A presente análise se concentrará nesses instrumentos normativos.
A descentralização nos sistemas de saúde é um fenômeno presente na maior parte dos países, embora com compreensões e práticas distintas, e pode ser considerada como fenômeno típico da década de 1990 (GUIMARÃES & GIOVANELLA - 2004). No Brasil, a descentralização teve como objetivo melhorar as respostas dos sistemas de saúde e é um processo ainda em curso. Sua complexidade deriva de que, no SUS, ocorre transferência expressiva de poderes e recursos da União para os outros níveis de governo. Não seriam poucos os avanços obtidos com tal processo, mas ainda permanece como objeto longínquo o alcance de uma concepção de sistema de saúde de cunho federativo, no qual a cooperação seja o elemento fundamental das relações intergovernamentais, combinando autonomia, iniciativas locais e solidariedade entre níveis de governo.
O modelo de descentralização da saúde no Brasil entre 1990 (ano em que efetivamente foram dados os primeiros passos da implementação dos dispositivos constitucionais) e 2002, mediante as normas operacionais referidas, pode ter representado uma real prioridade em termos políticos, um processo político-administrativo sem precedentes na saúde e mesmo em outras áreas, embora sob forte regulação federal. As políticas correspondentes teriam resultado da confluência de duas grandes agendas, a da reforma sanitária propriamente dita e a da reforma do Estado, nem sempre congruentes entre si. Na primeira vertente, os traços marcantes são: descentralização associada à noção de sistema e de novas relações entre entes de governo, serviços e instituições em geral, além do valor agregado de democratização. Na agenda da reforma de Estado a descentralização é tomada também como valor, mas com conotações diferentes, do tipo transferência de encargos e restrição de custos, sem focalizar necessariamente o processo democrático (MACHADO, 2007).
Parece ocorrer, sem dúvida, uma linha de continuidade entre as diversas políticas implementadas desde os anos 80 (AIS e SUDS), nas quais a descentralização de um modo ou de outro esteve implicada. Nestes movimentos iniciais e nos que ocorreram após 1990 ocorre, de fato, uma progressiva transferência de ações e serviços estatais da esfera central para as mais periféricas, mantendo-se, entretanto, o controle da esfera central. A principal mudança dos anos 90 consistiria em uma descentralização restrita ao plano administrativo, portanto parcial e incompleta, configurando uma essencialidade conservadora, dado o controle político e financeiro exercido pelo poder central, conforme é apontado por Elias (2001). Daí decorreriam as formas de financiamento vigentes, determinantes das políticas de saúde tradicionais, que a descentralização em curso no Brasil não interrompeu, ao contrário reforçou. Este mesmo autor observa que houve também mudanças notórias e inegáveis no sistema de saúde, exemplificadas pela melhoria da racionalidade administrativa e financeira, pela ampliação da extensão e da cobertura dos serviços, pela melhoria na integração entre os serviços públicos de saúde, pela socialização da temática afeita ao SUS e pela ampliação dos mecanismos de participação social.
A descentralização da saúde brasileira sem dúvida levanta tensões e contradições derivadas dos diferentes interesses dos municípios, dos estados e da União. Entre os fatores restritivos estão: o descompasso entre atribuições e recursos; o aumento da competição entre estados e municípios por recursos cada vez mais escassos; as dificuldades históricas do modelo centrado nas práticas curativas e de alto custo, com baixo foco na promoção da saúde, além do reconhecido perfil dos municípios brasileiros caracterizado por dispersão, baixa população, qualificação precária, baixo dinamismo econômico. Tudo isso agravado por uma insuficiente articulação com outras políticas públicas de desenvolvimento econômico e social (MACHADO, 2007).
A emissão das normas operacionais, com seus erros e acertos, continua como objeto de muito debate. O Sistema Único de Saúde ainda está em processo de organização, com inegáveis avanços, por exemplo, em relação à extensão da cobertura das ações públicas, aportes de recursos para melhoria da infra-estrutura, introdução de instâncias de negociação intergestores e existência de experiências efetivamente resolutivas e inovadoras. Como lembra Silva (2001), o SUS da Constituição de 1988 ainda é uma imagem-objetivo a ser perseguida no que diz respeito principalmente à redução das desigualdades no acesso e na qualidade da atenção.
De modo geral, os trabalhos analíticos disponíveis (e que não são poucos) sobre o processo de descentralização da saúde no Brasil no período pós-constitucional, se dividem em duas categorias: aqueles escritos por autores que também foram atores do referido processo e aqueles que traduzem uma visão de fora da instituição gestora ou de serviços, tendo como autores pesquisadores ligados à academia, geralmente. Os primeiros costumar destacar os resultados positivos obtidos, embora variem no foco das ações e no grau de alcance; os demais fazem valer, de modo geral, uma visão mais crítica, sem impedimento de reconhecerem alguns dos avanços possibilitados pelo processo de descentralização. Neste texto, quando se tratar da contribuição dos referidos “autores-atores” o nome dos mesmos será seguido das iniciais “AA”.
O fato é que o processo de descentralização da saúde no Brasil vem sendo marcado por critérios não apenas conceituais ou técnicos, mas também ideológicos e de defesa de posições, já que parte da produção intelectual a respeito do assunto foi realizada por autores que foram também atores do processo político administrativo.
As normas operacionais já nasceram sob o signo da transitoriedade, o que, por si só, representa dificuldade não só na interpretação como na verificação dos efeitos das mesmas. Cada uma, além disso, ganhou de certa forma coloração ideológica correspondente ao período em que veio à luz. Assim, as NOB de 91 e 92 foram associadas ao governo Collor e a um momento centralizador da política de saúde, ainda capitaneado pelo antigo INAMPS. A NOB de 1993, principalmente na visão de seus formuladores, veio com a marca de um renascimento na saúde, com o recém empossado governo de Itamar Franco tentando recuperar a credibilidade e a ética nas práticas administrativas públicas; seu lema, muito adequadamente foi a ousadia de cumprir a lei. A defesa do documento de 1996, feita por seus autores em diversos textos aqui selecionados, procura mostrar marcas de avanço conceitual, sob a égide de um novo governo que procurava se impor sob signos de modernização administrativa e reforma do Estado. Na sua seqüência veio a NOAS de 2001-02, com pretensas marcas de continuidade e aprofundamento desejáveis na NOB anterior. O novo governo entronizado em 2003 encontrou a NOAS pronta, mas apenas semi-aplicada. Não criou nova norma operacional, mas também não deu seguimento ao aprofundamento, revisão e detalhamento que a complexidade da NOAS estavam a exigir; ao invés disso, a preferência do Governo Lula foi pelo lançamento de uma pretensamente nova política, o Pacto pela Saúde (MINISTÉRIO DA SAÚDE, 2006).
Como lembra Viana (2001), cada norma criou uma série de contradições que passaram a ser resolvidas por aquela que lhe sucedeu, mediante tentativas de ajustá-las a uma racionalidade sistêmica, que incluiria financiamento dentro dos princípios federativos e de acordo com determinados modelos de saúde e de assistência regionalizados.
Entre os aspectos positivos da era das NOB, Machado (AA) (2006) aponta como fato marcante a transição dos modelos de descentralização, de uma forma tutelada e convenial até a descentralização com regionalização, com resgate do papel dos estados e partilha definida das funções dos entes federativos, sem abrir mão da forte regulação federal.
É relativamente consensual a visão de que desde a NOB de 1993 tenha havido incremento no papel da gestão local termos de capacidade gerencial e de produção de serviços, com aumento da força de trabalho, incrementos incontestáveis no dispêndio municipal com a saúde e, além disso, ampliação das responsabilidades e incentivo à contenção de custos. Esta é a posição de Costa (2003), um observador externo, mas também de outros autores.
Viana (2001), outra observadora externa, sem embargo de posicionamento crítico em relação a outros aspectos, aponta que as NOB podem não ter expressado apenas estratégias indutivas ou constrangedoras da descentralização, mas que abriram também espaços de negociação e de pactuação de interesses na área da saúde, originando novos ordenamentos, além da emergência e do fortalecimento de novos atores e centros de poder na arena política. Além disso, destaca que a estratégia de descentralização da NOB de 1996 pôde melhorar as condições institucionais, de autonomia gerencial e de oferta, conforme ­ aferido por variáveis tais como recursos financeiros federais transferidos, capacidade instalada, produção e cobertura dos serviços ambulatoriais e hospitalares, essencialmente nos municípios habilitados em gestão plena. Os resultados foram menos brilhantes, contudo, no que refere aos padrões de iniqüidade, tanto na distribuição de recursos como nos indicadores de doença. Conclui que a descentralização da saúde sob a égide das NOB foi ­ caracterizada por forte indução federal, com adesão dos municípios baseada em critérios nacionais, mas que esta sem dúvida serviu como estímulo para o fortalecimento institucional dos municípios envolvidos.
Oliveira (AA) (2003), analisando a implantação inicial da NOAS, destaca na mesma a característica de ser um instrumento de indução do planejamento estadual, favorecendo o papel coordenador de tal instância federativa. Considera ainda que um pré-requisito importante para o sucesso da norma teria sido a existência de regiões de saúde efetivamente qualificadas, o que implicaria em municípios igualmente qualificados para se habilitarem, o que não teria ocorrido de forma completa. A NOAS, segundo esta autora, seria um instrumento adequado para a descentralização, embora necessitando aperfeiçoamento mediante uso.
Outro dos autores/atores do contexto da descentralização da saúde, Souza (AA) (2001), destaca os grandes avanços no âmbito da descentralização político-administrativa, com fortalecimento dos gestores locais e as mudanças na organização da atenção básica induzidas pela NOB SUS 01/96. Segundo ele, a NOAS traduziu o resultado de um amplo e franco processo de construção de um consenso mínimo sobre os principais desafios e as correspondentes estratégias de enfrentamento a serem adotadas pelos gestores.
Entre os avanços permitidos pelo modelo de descentralização adotado, está sem dúvida a ampliação da municipalização da gestão, bem como da explicitação das funções estaduais. O nível federal, por sua vez, ampliou seu poder indutor e regulador ao introduzir novos mecanismos de transferência vinculados às ações e programas assistenciais. As NOB foram consideradas necessários instrumentos de regulação do processo de descentralização, dentro do contexto de um país com um modelo federalista peculiar e com um sistema tributário relativamente centralizado. Além disso, a ampliação dos mecanismos de transferência fundo a fundo, a criação do PAB e a introdução de incentivos financeiros aumentaram a autonomia do gasto para a maioria dos municípios e estados, conforme afirmam Levcovitz, Lima & Machado (AA) (2001).
Outros possíveis saldos positivos do processo de implantação da NOAS foram o fortalecimento das ações de regulação, controle e avaliação na pauta dos gestores do SUS e a ampliação do emprego da Programação Pactuada Integrada (PPI). Solla (AA) (2006), que coordenou o processo de descentralização no MS entre 2003 e 2004 lembra, entretanto, do descompasso existente entre a descentralização da assistência e das vigilâncias em saúde, fato especialmente marcante na NOAS Afirma que a partir de 2003 registram-se avanços no processo de descentralização do SUS como um todo, com um conjunto de ações de intensificação e qualificação do processo, mediante mecanismos de indução financeira e cooperação técnica. Outro avanço, ocorrido em 2004, foi possibilitado pela portaria ministerial que fez cessar o antigo processo de habilitação de municípios, uma das marcas do processo normativo federal desde os anos 90.
Este mesmo autor aponta ainda alguns limites e contradições da descentralização no SUS, que não deve ser considerada, segundo ele, um fim em si mesmo. Lembra que os avanços obtidos no processo de descentralização do SUS não devem ser atribuídos exclusivamente a um dos níveis de gestão do sistema, sendo resultado de uma somatória de esforços e de um processo decisório pactuado entre os três níveis de governo. Registra as fortes resistências a uma efetiva e ampla descentralização, especialmente originária do poder político hegemônico conservador, com profundos interesses tanto na execução direta dos serviços de saúde como prestação de serviços privados. Aponta ainda a resistência e o despreparo das SES em assumir um novo papel no sistema, não mais o de prestadoras de serviços. Além disso, o Ministério da Saúde não chega a ter poder de decisão sobre o volume de recursos financeiros federais que chega a cada município para custeio do SUS.
Entre as visões não exatamente otimistas, Carvalho (AA) (2001), que foi Diretor de Descentralização e depois Secretário da SAS entre 1993 e 1995, aponta, por exemplo, que as NOB não se ativeram a realizar a mera operacionalização do que vinha expresso nas leis; antes, desobedeceram-nas explicitamente e acabaram por retardar o cumprimento das mesmas. Faz exceção à NOB 93, de cuja elaboração, aliás, participou, considerando-a como instrumento que tentou resgatar o cumprimento da lei, em forma gradual, até se chegar ao cumprimento pleno da mesma. Já a NOB de 1996 teria tentado avançar, mas correu riscos conceituais e práticos e nem chegou a acontecer de fato, sendo na prática substituída por uma norma oculta, que ele denomina de “NOB 98”, não existente de direito, mas de fato, dados os acréscimos que se fez à NOB 96, perpetrando mais uma flagrante desobediência as leis. A NOAS, segundo ele, apenas coroou o processo burocrático recentralizador, com hegemonia agora absoluta do Ministério da Saúde, embora tenha havido uma apenas discreta divisão do poder com os estados, que até então se julgavam à margem do SUS.
Posição semelhante à anterior é defendida por Barros (AA) (2001), que também exerceu cargo de direção no Ministério da Saúde entre 1993 e 1995, tendo participação na elaboração da NOB de 1993. Para esta autora, a NOAS redefiniu indevidamente as funções das esferas de governo e fragmentou a gestão do sistema segundo níveis de complexidade tecnológica da assistência, subtraindo ao gestor municipal poder de decisão sobre determinadas áreas do sistema, com objetivo aparente de especializar as instâncias de governo segundo níveis de complexidade da atenção.
Igualmente crítica ao processo, mas partindo de um ator ligado à pesquisa em saúde coletiva, é a posição de Cohn (2001). Para ela, o pacto federativo que vigora no país, repousa no berço nada esplêndido de um modelo econômico que sufoca o equilíbrio orçamentário das esferas de governo, particularmente das estaduais e municipais, dificultando que assumam mais responsabilidades e tarefas na provisão das ações de atenção à saúde. Em tal contexto, a minuciosa regulamentação da implantação do SUS via NOB-NOAS, inclusive da descentralização, por parte do nível central de governo, mesmo com a participação não devidamente equilibrada dos gestores dos outros níveis, faz com que os repasses de recursos se dêem de forma estrangulada, provocando um crescente fracionamento setorial e intra-setorial e enfraquecendo as políticas.
Aspecto destacado criticamente por diversos autores é o da verdadeira pletora de instrumentos de regulação e indução emanados pelo governo federal ao longo de todo o processo de implementação do SUS, o que é denominado de portarização (MACHADO, 2007).
Os percalços à reforma da saúde como um todo, em particular referente às oscilações, avanços e recuos que traduzem ambigüidades, conflitos e contradições em relação às mudanças no papel do Estado brasileiro a partir da década de 1990, são muito destacados. Em tal contexto, o papel do Estado brasileiro com sua perda sua capacidade de formular e implementar políticas nacionais de desenvolvimento, focalizando o ajuste fiscal, permeado que está pelas pressões da globalização do capital, é especialmente analisado e denunciado por Cordeiro (2001), um militante histórico tanto da refroma sanitária, tendo também sido presidente do INAMPS durante a etapa mais acelerada e radical de sua descentralização.
Alguns conflitos potenciais e reais do processo de descentralização brasileiro devem ser registrados, por exemplo, a ênfase municipalista evidente das NOB iniciais, que se chocava com uma racionalidade de base regional; o excesso e a complexidade das regras, por um lado e as lacunas normativas, de outro; a ausência de uma política conseqüente de investimentos no setor; a desconsideração da diversidade macro e meso-regional e das especificidades das regiões metropolitanas na formulação da política; a insuficiente articulação com outras políticas públicas de desenvolvimento econômico e social. Assim analisa Machado (AA) (2007), que embora defenda o processo normativo vigente, partícipe que foi da construção do mesmo, não deixa de registrar críticas a alguns de seus aspectos.
Analisando o processo de implementação do SUS em termos globais, Fleury (2007), destaca que o modelo do SUS combinou instrumentos de gestão descentralizada com mecanismos políticos de participação e negociação entre as partes, o que é essencial para a construção de um sistema democrático, embora de forma ainda não suficientemente radicalizada de forma a ser levada até o interior dos serviços. Julga ser possível aprofundar o atual modelo e ampliar a democratização da gestão pública, desde o interior do setor saúde até o conjunto do Estado. Para tanto, todavia, seria necessário, mais que uma gestão eficiente, a reconstrução de alianças entre as forças democráticas para além dos limites estreitos dos SUS – o que, segundo a autora, não vem acontecendo de forma satisfatória no País.
A necessidade de um acompanhamento do SUS mais intenso e mais qualificado, mediante estabelecimento de etapas e metas passíveis de serem cumpridas, mesmo levando-se em conta o denso e complexo labirinto normativo vigente, além da não superação da imposição de modelos baseados na oferta, em conflito permanente com as necessidades da população, constituem, segundo Santos (2007), aspectos extremamente problemáticos no processo de descentralização em curso no país. Segundo ele, o próprio processo de descentralização não escapa às contradições decorrentes da existência de uma política implícita apenas nas entrelinhas versus a uma outra explícita, traduzida nas linhas constitucionais e da legislação complementar.
Costa (2003), também um observador externo aos órgãos de gestão, aponta que algumas ponderações críticas sobre o processo de implantação do SUS como um todo e da descentralização, em particular, inclusive algumas formuladas pelo Banco Mundial, deveriam ser mais levadas em conta, sem preconceitos. Com efeito, algumas delas são notórias na realidade nacional, como, por exemplo, a insuficiência de capacidade técnica e política dos governos locais, o desvio de recursos transferidos para setores estranhos à saúde, a pulverização de recursos, além da relativa ausência de uma cultura de gestão. Isso acarretaria diversas interrogações e incertezas, entre elas, uma a capacidade reduzida de controle pelos cidadãos (accountability), o formalismo, a baixa autonomia das organizações públicas; as condutas oportunistas dos dirigentes e políticos.
Não restam dúvidas de que existem sintomas tanto de crescimento quanto de degradação no SUS, em particular na descentralização. O SUS é também percebido como uma reforma incompleta, de implantação heterogênea e desigual, no qual mecanismos institucionais de responsabilização, desde os entes federados até os serviços e as equipes de saúde são incipientes. Esta é a posição de Campos (AA) (2007), ator/autor que exerceu o cargo de Secretário Executivo do Ministério da Saúde entre 2003 e 2004, o qual defende a necessidade de uma autêntica revolução cultural na saúde, com real mudança nos padrões de gestão. Para ele não se pode conceber autonomia dos entes federados sem responsabilidade definidas de forma correspondente.
Outro desafio a ser superado diz respeito a algumas tensões existentes entre a agenda setorial e os projetos de governo, o que limita a governabilidade do Ministério da Saúde, o qual, diante de conjuntura desfavorável à expansão da proteção social, tenderia a adotar posturas mais pragmáticas e orientadas para programas específicos, dentro de uma perspectiva de curto prazo. Isso poderia comprometer o enfrentamento de problemas estruturais, que exigiria a construção de um projeto nacional mais abrangente e o reforço da atuação estatal em áreas estratégicas, incluindo as políticas de ciência e tecnologia e industrial e a regulação de mercados em saúde (MACHADO (AA), 2006).
Parece claro que o processo normativo relativo à descentralização, nos anos 90 em diante, alterou de fato as relações de poder na saúde, incrementando a disputa política dentro do setor. Há diferenças, contudo, entre as posturas e a atuação política dos diversos gestores no cenário. Para Oliveira (2003), uma parte do problema é que os gestores estaduais estariam muitas vezes mais preocupados com a assistência ás pessoas do que com as responsabilidades de coordenação e gestão, que lhes seriam típicas. O fato é que a oferta de serviços ainda é um forte eixo orientador do sistema e, neste contexto, estados com tradição na prestação de serviços teriam mais dificuldade de assumir suas tarefas de coordenação da descentralização.
O que se percebe, de maneira geral, é que o sistema de saúde brasileiro enfrenta ainda marcantes desafios, agravados pelos marcos das políticas econômicas de ajuste introduzidas desde a década de 1990. Os possíveis avanços conquistados no SUS através das várias normas operacionais, mesmo com os agentes políticos interessados na sua preservação, estão sob risco de serem tragados, a partir do mundo extra-setorial, pela contração de investimentos públicos e pela cisão irrecorrível do sistema de saúde, conforme já advertiam, desde o início da década presente, Noronha (AA) e Soares (2001). Da mesma forma, a sub-remuneração dos profissionais e a precariedade das relações trabalhistas vigentes têm diminuído a adesão dos mesmos ao SUS. Concluem estes autores que a associação destes fatores tem levado a uma crescente ruptura dos preceitos constitucionais de saúde como direito de todos, dever do Estado, universalidade e igualdade.
Observação comum a diversos dos autores aqui relacionados é a excessiva concentração do processo normativo da descentralização em aspectos ligados à assistência médica individual e curativa, deixando de lado outras práticas de cunho coletivo, preventivo e promocional em saúde. Teixeira (2002), por exemplo, analisando a questão no âmbito municipal e microrregional, ressalta a necessidade de ser envolver os mais intensamente as autoridades locais em um movimento nacional de reorientação do modelo de atenção à saúde.
Dadas as contradições e mesmo possíveis retrocessos do processo de descentralização da saúde, poderia ser levantada mesmo a hipótese de existir, nos marcos atuais, esgotamento do modelo de descentralização até agora vigente, calcado na habilitação cartorial relativa a requisitos e capacidades, feita por adesão e vontade política do gestor local e sempre em função da concordância das outras esferas, tendo a indução financeira, por meio de recursos federais, como seu grande motor. São preocupações levantadas, entre outros autores, por Solla (AA) (2006), que defende a necessidade de uma reformulação em aspectos substanciais do processo de descentralização e de criação de legislação que faça frente a estas dificuldades, tendo como exemplo paradigmático o projeto de “Lei de Responsabilidade Sanitária”, que aponta para um modelo de contratualização entre gestores e faria com que a responsabilização deixasse de ser uma mera decisão do gestor local com a concordância dos demais, passando a ser assumida de modo negociado, com a criação de capacidade progressiva de gestão, o que daria a base legal aos pactos criados a partir de 2004. Lamenta o autor, que teve papel central na condução do processo de descentralização do SUS entre 2003-2004, que o referido projeto de lei, elaborado no MS nesta mesma época, tenha tido sua tramitação abortada posteriormente.
Fica a dúvida se não seria melhor conduzir a política de descentralização de forma mais modesta e realista, mediante pactos ou até mesmo, em determinadas circunstâncias, de declarações de intenções mais pontuais, de forma a se instalar um processo de negociação que seja fundamentado, ao mesmo tempo, em normas (leves) e jurisprudências firmadas, com as últimas assumindo gradativamente maior importância. Assim, o foco poderia estar em se concentrar e manter a atenção nos processos criativos fundamentados na negociação entre os gestores da mesma esfera, de esferas diferentes, entre setores diferentes, envolvendo Estado e Sociedade. São desafios lançados por Goulart (AA) (2001), que defende o que denomina de um jeito pós-NOB, também pós-burocrático, criativo e dinâmico, ao invés de apenas gastar energias com as NOB/NOAS que se sucederão ad infinitum, clamando, em síntese, por um sistema de saúde fundado em pactos, em jurisprudência descentralizada e em negociação entre gestores, com menos normatização rígida burocrática e complexa. Rejeita, assim, o que chama de um SUS esculpido a golpes de portaria.
Atualizando a discussão, a partir de 2003 o Ministério da Saúde, diante das pressões dois demais gestores, mas também, certamente, procurando introduzir no cenário da saúde a marca de um governo recém iniciado, começa a discutir mais intensamente a idéia de pactuação, em anteposição ao processo normativo duro até então vigente. Entre as mudanças que ocorreram, destaca-se o fim do processo cartorial de habilitação e sua substituição pela formalização de termos de compromisso de gestão que passariam a definir a responsabilidade sanitária e os compromissos de cada esfera de governo, com a criação de novos mecanismos de indução e incentivo para a adesão ao Pacto de Gestão, lançado em 2006. Além disso, com o objetivo de reduzir a pletora de rubricas diferentes para repasses de recursos federais estados e municípios foram criados cinco blocos de financiamento: atenção básica; atenção de média e alta complexidade; vigilância em saúde; assistência farmacêutica e gestão do SUS.

CONSIDERAÇÕES FINAIS
A descentralização das políticas públicas e das funções estatais em geral tem longa história no Brasil, passando por períodos de maior ou menor intensidade e avanço. De maneira geral, após a Constituição Federal de 1988 uma tendência descentralizadora passou a fazer parte da maioria das políticas públicas sociais no Brasil, com reflexos palpáveis na distribuição dos recursos federais aos demais membros da Federação.
Entretanto, ao contrário, por exemplo, do conceito clássico de democracia, existe de fato uma “descentralização à brasileira”, se não propriamente no sentido conceitual, mas, com certeza do ponto de vista operativo. Com efeito, o estágio atual do processo de descentralização de políticas públicas no país, particularmente na área da saúde, reflete um contexto político e institucional, além de uma cultura e de uma história específicas. Dois fatores, pelo menos, devem ser considerados em tal processo: a arraigada história de centralismo presente em nossas instituições, desde o período colonial, bem como o caráter altamente peculiar da federação brasileira, com forte autonomia dos estados e dos municípios.
Decorrência marcante disso é a fragmentação e mesmo o desequilíbrio existente nas relações entre os entes federativos. Isso não impede, ao contrário, favorece que a União, ou, no caso presente, o Ministério da Saúde, tenha se constituído como grande emissor de portarias e normas diversas para a regulação do sistema. Trata-se, sem dúvida, de uma visão jurídica iluminista, que tenta dar ordem ao complexo mundo setorial através de documentos normativos, o que já foi denominado de portarização. A questão remete a uma discussão clássica do Direito, referente aos fatos sociais e aos fatos jurídicos. A descentralização no SUS (ainda) é um fato jurídico e normativo mais do que um fato social ou político.
Assim, a descentralização da saúde no Brasil é sem dúvida um processo ainda inconcluso, uma típica construção política e social, com fortes traços culturais e muita complexidade inerente, sem impedimento de que tenha acumulado importantes avanços. Uma opção contraditória de implantação vem sendo tentada, calcada em normas operacionais emanadas repetidamente pelo gestor federal, colecionando críticas e ao mesmo tempo demonstrando certa progressão qualitativa, dada pela transformação gradual do caráter normativo duro pela pactuação.
O balanço do poder entre os entes federados é outro dilema mal equacionado. Um aforismo corrente é o de que se existe uma regra na federação brasileira, além da marcante autonomia de seus entes, é a desigualdade que vigora entre eles. Como problema adicional, a vigência de relações não exatamente cooperativas entre os mesmos. Assim, a descentralização do sistema de saúde, naturalmente, padece de tal desigualdade política, que se soma à outra, já bem conhecida, de fundo social e econômico.
O dilema permanente do financiamento é outros dos constrangimentos à descentralização da saúde. Apontam-se vários problemas relacionados a tal questão, por exemplo, a escassez de recursos globais para a saúde, a retenção indevida por parte dos estados de parcelas que caberiam aos municípios, os critérios equivocados de transferência, além da má gestão. É mais uma faceta dessa federação de desiguais, tão comentada. A crítica clássica diz respeito à transferência de responsabilidades sem a correspondente contrapartida de recursos financeiros, sem embargo de alguns avanços, seja por força da Emenda Constitucional 29, ainda por regulamentar, ou por via, mais uma vez, das onipresentes portarias do Ministério da Saúde.
Os resultados da descentralização em contexto de desigualdades, como ocorre no caso brasileiro, também são contraditórios. Se ela adiciona incentivos do governo federal para os estados e municípios, a decisão final de implementação das respectivas políticas ainda está sujeita a muitas outras variáveis. Incentivou-se intensivamente – e com relativo sucesso – maior participação dos governos locais na provisão de serviços de saúde. Mas como são muito complexas e desiguais as relações entre os diferentes níveis de governo e entre estes e as instâncias da sociedade, a experiência brasileira de descentralização na verdade desnuda constrangimentos e limitações não superados, relativos à realização plena das políticas sociais. Em suma, a descentralização em países historicamente marcados por heterogeneidades regionais e sociais pode ser menos eficiente do que aquela que ocorre em nações mais desenvolvidas e igualitárias.
A forma de descentralização em saúde assumida pelo Brasil teve a tendência de se constituir como municipalização autárquica, em que os limites, inclusive geográficos e as parcas potencialidades municipais constrangem o alcance do sistema de saúde. O possível foco do processo em regiões, nas quais se exercitariam autonomamente as funções de provisão e compra de serviços, ainda é um verdadeiro fenômeno contra-cultural na realidade brasileira, mesmo que a referida autarquização demonstre estar em vias de esgotamento. Assim, seria preciso recuperar uma escala apropriada de prestação de serviços em espaços não mais meramente municipais, de forma a oferecer serviços menos onerosos e de maior qualidade, além de estimular de fato ações cooperativas entre os diversos gestores da saúde.
Assim, já caminhando para as conclusões, podem ser apontados alguns avanços indubitáveis do processo de descentralização da saúde vigente no Brasil no período pós-constitucional, os quais, entretanto, se perfilam ao lado de contradições, dilemas e questões mal resolvidas e até mesmo alguns retrocessos.
Entre os avanços, que são praticamente consensuais entre os autores e atores do processo de descentralização do SUS, podem ser citados os seguintes:
a) A descentralização da saúde desencadeada pela criação do SUS, particularmente após a NOB de 1993 é um processo sem precedentes na história das políticas sociais no Brasil, apesar de suas limitações. Sem exagero, pode-se dizer que a política passou por mudanças e aprofundamento intensivos, evoluindo, no dizer de Machado (2006), de um estatuto de descentralização tutelada e convenial ao de descentralização regionalizada com compartilhamento de responsabilidades entre níveis de governo na gestão.
b) O processo de descentralização preconizado nas NOB – NOAS também evoluiu no sentido de ter superado a chamada habilitação de estados e municípios para as diversas modalidades de gestão, que passou por diversas nomenclaturas e definições, mas sempre foi mercada por procedimentos de fundo formal e mesmo cartorial. Tal superação ocorreu desde as discussões que antecederam a emissão do Pacto pela Saúde, já no governo Lula, entre 2004 e 2006.
c) Do ponto de vista político, a era das NOB, com maior ou menor grau de “dureza” (na verdade amortecida ao longo do percurso), estabeleceu como práticas correntes no sistema de saúde, processos de negociação ou pactuação (este último um termo cunhado ad-hoc e que representa uma expressão típica da era das NOB) entre gestores, consubstanciadas na criação das Comissões Intergestores Bipartites (nos estados) e Tripartite (nível federal). Isso trouxe, sem dúvida, grande fortalecimento institucional e maior autonomia aos gestores dos estados e dos municípios, atenuando, sem, contudo eliminar, o grande poder normativo do Ministério da Saúde. A negociação entre gestores permitiu aumentar qualificar a participação dos atores envolvidos, bem como o surgimento de novos centros de poder e o incremento na responsabilização da gestão, embora nem sempre de forma equilibrada entre os vários participantes. Ocorreu também uma socialização temática, traduzida pela introdução do tema da saúde nas discussões realizadas em várias instâncias políticas e civis.
d) Devem ser valorizados, também, os incrementos notáveis obtidos na produção de serviços e ações de saúde, com a correspondente cobertura populacional, o desenvolvimento qualitativo e quantitativo da infra-estrutura sanitária. Especial destaque deve ser conferido ao crescimento da atenção básica no país, particularmente após a NOB 96, com a Estratégia de Saúde da Família alcançando hoje em torno de 95% municípios no país, com mais de 28 mil equipes implantadas.
e) Ocorreu também, ao longo da era das NOB, marcante fortalecimento da gestão da saúde, como aperfeiçoamento dos mecanismos e instrumentos de regulação, controle e avaliação do sistema e também das práticas de planejamento, com diversificação e socialização de instrumentos, tais como a Programação Pactuada e Integrada (PPI), embora com maior foco e alcance por parte dos estados do que dos municípios.
f) Aperfeiçoaram-se, também, os mecanismos internos de financiamento das ações de saúde, embora sem equacionar os dilemas relativos ao montante alocado no setor saúde. A Emenda Constitucional 29, aprovada em 2001, representou um marco histórico na questão do financiamento, embora o otimismo que a mesma despertou inicialmente tenha se dissipado, considerando que a discussão de sua regulamentação se arrasta no Congresso, ainda sem prazo fixado para terminar. Mas, de qualquer forma, entre os mecanismos positivos implementados no período estão as transferências entre fundos de saúde das diferentes esferas de governo, superando a modalidade dos convênios; a criação do Piso da Atenção Básica – PAB; a criação de múltiplos incentivos e, mais recentemente, já como fruto do Pacto pela Saúde, a constituição de blocos de financiamento que racionalizaram e simplificaram os procedimentos anteriores. Tudo isso constitui fator de incremento na autonomia do gasto em saúde por parte dos gestores do SUS.
De outra parte, entretanto, não são poucas as contradições e pendências ainda por equacionar. Resta saber se a resolução de tais dilemas seria possível dentro do panorama político-normativo e mesmo cultural vigente no País, caso em que os tópicos levantados representariam, quem sabe, decorrências exemplares de certa fúria legiferante, com criação de fatos jurídicos não absorvíveis pela realidade, mesmo com as boas intenções dos legisladores de 1986-1988. Uma lista desses aspectos é mostrada a seguir:
a) A opção normativa forte federal e o protagonismo do Ministério da Saúde constituem objetos de críticas generalizadas, mesmo por parte daqueles autores e atores que simultaneamente reconhecem os progressos auferidos ao longo do processo de descentralização pós CF 88. O gestor federal é acusado de ocupar, muitas vezes, o lugar dos estados e dos municípios em muitas decisões que poderiam e deveriam estar descentralizadas. Tudo isso mediante um cipoal normativo complexo e por vezes até mesmo contraditório, referido como portarização. A questão tem fortes conotações políticas, dada a tradição centralizadora vigente no País, mas pesam sobre ela também, sem dúvida, fatores culturais, de forte dependência dos níveis sub-nacionais de governo em relação não só aos recursos, mas às normas das políticas que vêm de cima.
b) Apesar de estar em experimentação há 15 anos, o processo de descentralização vigente não tem tido sucesso em criar ou pelo menos induzir o desenvolvimento de verdadeiras e duradouras relações cooperativas, solidárias e não-predatórias entre os níveis de governo, compatíveis efetivamente como um sistema federativo. A capacidade demonstrada em equilibrar as desigualdades e promover a equidade continua sendo muito baixa dentro de tal sistema.
c) Oscilações ou mesmo indefinições relativas ao papel dos estados, dos municípios e da própria União no regime descentralizado vigente ainda são muito freqüentes. As primeiras NOB foram acusadas ora de favorecer os estados, ora os municípios ou até mesmo de “descentralizar centralizando” em favor do nível federal de governo, como foi o caso da NOB 92. A NOAS supostamente teria resgatado o papel dos estados o que significaria, para alguns, na verdade, ter-lhes conferido privilégios em relação aos municípios. As pendências em torno do comando único permanecem pulsantes no cenário, registrando-se também a tendência de os estados com mais tradição de prestação de serviços oferecerem mais resistências à descentralização com real transferência de poder. O cenário vigente aponta para conflitos que por certo perdurarão a perder de vista, relativos ao compartilhamento equilibrado e consensual da gestão da saúde, principalmente entre estados e municípios.
d) As necessárias mudanças no modelo médico, privativista, tecnológico e baseado na oferta, sem foco na promoção da saúde, vigente historicamente no país, ocorreram de forma que alguns consideram ainda tímidas e pouco profundas, mesmo apesar dos fortes mecanismos de indução colocados no cenário pelas NOB. Neste aspecto, a evolução altamente substantiva, do ponto de vista quantitativo pelo menos, da implantação da Estratégia de Saúde da Família, permitiria a atenuação de tal crítica.
e) A desejável articulação intersetorial na formulação e implementação de políticas sociais também é um fator considerado como de fraco desempenho no país. Um exemplo seria a integração apenas incipiente vigente entre dois dos principais programas sociais do governo, quais sejam o de Saúde da Família e o Bolsa Família, em termos operacionais, pelo menos, já que a exigência de condicionalidades neste último está relativamente bem sintonizada com as diretrizes de ação do primeiro.
f) O processo normativo das NOB – NOAS foi desenvolvido sob o signo da transitoriedade, às vezes da improvisação, com a emissão de nova norma ás vezes antes mesmo de se completar o ciclo da anterior. O caso da NOB 96, que veio a substituir uma norma que parecia caduca em alguns aspectos, a de 1993, é característico, pois teve sua aplicação integral protelada sucessivamente, até que foram acrescentadas, ao longo dos dois anos seguintes, modificações que alteraram seu conteúdo original. O caso da NOAS representa uma transitoriedade precariamente administrada, sendo a mesma relançada com modificações com menos de um ano de vigência, tendo depois sua implantação protelada pela entrada em cena dos novos gestores do Ministério da Saúde no governo Lula, até que foi simplesmente substituída pelo Pacto pela Saúde, embora sem ter nenhum de seus itens revogados de direito. Criou-se assim um vazio normativo e operativo no sistema de saúde, com fortes repercussões sobre o processo decisório nos estados e municípios, que passaram a dispor no cenário de uma norma supostamente esgotada, embora não revogada, acrescida de um novo conjunto de normas intempestivas, dadas pelo Pacto, não devidamente detalhadas e regulamentadas. O fato é que os anos mais recentes, se não mais pertencem ao ciclo de transitoriedade e improvisação anterior, certamente retratam agora um novo ciclo, este de duplicidade e confusão conceitual, no qual as declarações de intenções são mais significativas do que as mudanças reais. Para agravar, o Ministério da Saúde, tendo como pano de fundo a repetida troca de ministros entre 2003 e 2007, também se notabilizou em emitir políticas sucessivas posteriores ao Pacto, como são os casos do chamado Programa Mais Saúde (PAC-Saúde), programas Redes em Saúde, TEIAS, Planeja-SUS, componente saúde do programa Territórios de Cidadania, entre outros, nem sempre congruentes com os dispositivos do próprio Pacto ou da NOAS, afinal não revogada.
g) Outra questão pendente é a da integração dos componentes de assistência à saúde individual e as vigilâncias e demais processos de saúde coletiva. Essa integração foi ignorada nas primeiras NOB, retomada com algum vigor na NOB de 1996 e novamente abandonada na NOAS. A tentativa de resgatá-la no Pacto pela Saúde ainda depende de regulamentação e implantação de novos instrumentos que ainda não aconteceram de fato. Essas idas e vindas impediram que fórmulas mais criativas de financiamento das ações coletivas se viabilizassem, predominando ainda a concepção lançada pela NOB 96 (avançada para aquele momento, sem dúvida), racionalizada em parte no Pacto pela Saúde, qual seja a de financiamento dessas ações por recursos “em fatias”, processo operacionalmente complexo, além de trazer pouca ou nenhuma integração com as ações de atenção individual.
h) Sistemas de controle relativos aos recursos descentralizados ainda são falhos, embora os mecanismos de transferência dos mesmos estejam bem estruturados do ponto de vista legal-normativo, como é o caso do repasse fundo a fundo – uma real conquista do sistema de saúde pós-constitucional. O controle social, denominado na Constituição de 1988 de forma menos ambiciosa como participação social, ainda é um processo em construção no país, sendo muitos os seus problemas e omissões, persistindo dilemas entre o componente de controle e o de participação, apontando os fatos reais em direção ao segundo elemento. A Lei de Responsabilidade Sanitária não passou de mais uma boa intenção, atropelada, entretanto, pelas sucessivas mudanças na condução da política de saúde. O resultado é que avanços ocorreram, mas de modo geral são considerados apenas discretos, em termos de accountability e responsabilização de gestores.
Em síntese, tais situações negativas ou “desencontros” no processo brasileiro de descentralização da saúde podem ser, de forma tentativa, sistematizadas em algumas categorias-chave explicativas, não se devendo tomá-las, entretanto, de forma absoluta, pois é bastante provável que existam acontecimentos que pertençam a pelo menos duas de tais categorias. São elas (a) questões estruturais, derivadas de cenários que os legisladores constituintes ou os gestores, particularmente do Ministério da Saúde, que emitiram respectivamente a Carta, as leis bem como as normas não puderam prever ou, se previram, não enfrentaram devidamente, podendo ser incluídas aqui as diversas situações que derivam do caráter da própria federação brasileira e de seu entorno político e cultural, por exemplo, a extrema dependência do governo “de cima”, as limitações no enfrentamento das desigualdades sociais, as diferentes motivações dos níveis estaduais e municipais na implementação das políticas etc.; (b) decisão política equivocada ou incompleta por parte dos gestores, tendo como exemplos: a opção pela regulação federal radicalmente dura e portarizada, além do mais, transitória, intempestiva e fragmentada; a indefinição dos conteúdos de gestão e assistência em cada nível de governo, em função de conflitos político-partidários entre os estados e municípios, além de outros fatores; (c) não-decisão ou não-enfrentamento de questões, de que são exemplos a manutenção ou a mudança apenas superficial do modelo assistencial, ainda muito focalizado na oferta de serviços, nas tecnologias e na assistência hospitalar; a não integração inter-setorial das políticas sociais; a debilidade dos mecanismos de controle; a integração incompleta entre assistência individual e coletiva, entre outros aspectos.
Enfim, a descentralização das ações de saúde no Brasil, preconizada pela Constituição Federal de 1988, embora tenha se processado com relativo sucesso, particularmente em anos recentes, padece de um dilema essencial, ainda não resolvido: entre as boas intenções dos constituintes, dos gestores ou dos militantes da Reforma Sanitária e as ações concretas de governo que se sucederam ocorre um enorme desencontro, de fundo político, mas também cultural, conceitual e operacional. Nisso certa postura comum na militância da saúde de não se abrir para a discussão de mudanças no SUS, atribuindo a qualquer moção neste sentido pecha de reformismo (reforma da reforma) não só dificulta os avanços que ainda são necessários, como também polariza e carrega de ideologia, de forma equivocada, o que deveria na verdade se constituir como debate necessário entre sociedade política e sociedade civil do país. A verdade é que, na saúde, muitas das promessas da celebrada Constituição Cidadã ainda faltam cumprir-se...


REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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[1] Médico, Mestre e Doutor em Saúde Pública pela Escola Nacional de Saúde Pública/FIOCRUZ. Consultor OPAS-OMS do Departamento de Apoio à Descentralização / Secretaria Executiva / Ministério da Saúde (mas as idéias aqui defendidas são de responsabilidade exclusiva do autor). E-mail: goulart.fa@gmail.com

sábado, 30 de outubro de 2010

Os cinco grandes desafios na saúde a serem enfrentados pelo futuro presidente do Brasil.

Gilson Carvalho[1]

Tentando fazer uma síntese e contribuir para o debate, apresento abaixo os 5 grandes desafios na área de saúde. O novo Presidente do Brasil, a ser eleito em 31/10/2010, terá que enfrentá-los , principalmente, superá-los.

1. SUBMISSÃO À CONSTITUIÇÃO FEDERAL E ÀS LEIS DA SAÚDE.

“Ter a ousadia de cumprir e fazer cumprir a lei”
Parece óbvio, mas, não é real que os administradores transitórios da coisa pública, do Presidente ao aprendiz-estagiário, todos só podem fazer aquilo que está explícito na lei. De tão pressupostamente óbvio, ninguém vigia se isto está acontecendo. Nem os órgãos de controle interno, nem externo, nem o Ministério Público e nem o Judiciário. A lei do SUS é reconhecida, no mundo inteiro, pela excelência da conteúdo e pelo avanço de uma visão futurística de processo de conquista. O que menos fazem governantes, seus agregados (como tem!) e auxiliares é cumprir a legislação. Podem até alardear seu cumprimento, mas descumprem-na à sorrelfa! (Lembrem-se dos processos licitatórios!) Falam alguns que o SUS não deu certo e temos que fazer a reforma da reforma sanitária! Não tenho medo de nenhuma mudança de rota, discutida e sacramentada com a sociedade e no parlamento, já lutei por várias delas, na linha de frente. Tenho, entretanto que alertar que não mudamos o que ainda não aconteceu, nem foi tentado, mesmo que legalmente obrigatório que assim fosse. Temos que tirar o SUS da CF e das Leis e colocá-los em portarias legais, até para saber se ele dá conta do recado de garantir saúde-bemestar-felicidade a todos os cidadãos brasileiros.

BUSCA DE MAIS RECURSOS FEDERIAS E ESTADUAIS PARA A SAÚDE.
“Mais que discursos, planos e propostas mirabolantes o caminho do dinheiro até seu uso final, indica a política priorizada e praticada”.
Lamentavelmente, na época da constituinte o parlamentar que chefiava a equipe que tratava da ordem econômica, em vários contatos de que participei entre muitos, impediu que se definisse o quantitativo de recursos para a saúde. Mais tarde em 2000, feito Ministro da Saúde, ressuscitou o projeto ( de 1993) do Eduardo Jorge, médico sanitarista, deputado federal por São Paulo, que obrigava a União a aplicar em saúde, no mínimo 30% do Orçamento da Seguridade Social e 10% dos recursos fiscais. Para Estados e Municípios os mesmos 10% de suas receitas próprias. Infelizmente foi apenas a fachada da PEC do Eduardo Jorge, uma utilização para legitimação. Por pressão do governo FHC-MALAN em 2000, o que se aprovou, foi menos da metade destes recursos e não mais baseado na receita, mas na variação do PIB. Isto equivaleu a que, tomados os recursos federais, per capita, entre os anos de 1995 e 2008 o maior valor tenha sido o de 1999, um ano antes da aprovação da EC-29! Governo pressionou o Parlamento a aprovar uma nova redação do projeto que adulterou a idéia inicial. Desresponsabilizou-se a União em mais da metade dos recursos previstos e onerou-se Estados em 20% (de 10% para 12%) e Municípios em 50% (de 10% para 15%).
Existe um subfinanciamento grave principalmente praticado pelos Estados e pela União. Entre 2000-2008 a União ficou devendo (ainda deve) , cerca de R$20 bi (corrigidos) por descumprimento da EC-29 inclusive contando recursos de restos a pagar cancelados, condenado pelo TCU e MPF. O conjunto dos Estados, deve, entre 2000 e 2008 cerca de R$27 bi corrigidos. E os municípios, a cada ano, gastam mais com saúde que o mínimo prescrito de 15%. A média a mais chega a 20% o que equivale a 30% acima dos mínimos. Em 2009 colocou cerca de R$11 bi a mais que o mínimo!
Só isto seria suficiente? Não. Mesmo que a União cumpra com os mínimos é necessário repactuar os valores federais. Estas propostas de repactuação estão no parlamento desde 2003, o que demonstra que executivo e legislativo se completam neste pacto de desfinanciar a saúde. A situação acompanhando o governo que não quer gastar mais com saúde e oposição se opondo ao melhor financiamento da saúde para complicar a vida do governo. Dentre os projetos de regulamentação da EC-29 que pode dar mais recursos federais para a saúde, existe o já aprovado no Senado e objeto de desejo da Conferência Nacional de Saúde, do CNS, do CONASS e do CONASEMS. O projeto aprovado no Senado é melhor para a saúde (10% da Receita Corrente Bruta) e o da Câmara, bancado pelo Governo e defendido pela maioria dos parlamentares da situação, pode acrescentar apenas mais 4 bi (ainda que vá buscar na sociedade cerca de 13,5 bi de uma possível nova Contribuição Social para a Saúde - CSS) ou perder mais de 6 bi.
Os Estados têm que colocar mais recursos na saúde. Tem Estado cumprindo apenas menos da metade dos recursos mínimos constitucionais e outros cerca de 1/3. A luta é para que eles cumpram a lei existente deixando de gastar dinheiro de saúde para pagar atividade de previdência (aposentadorias); saneamento (condicionante da saúde, mas não ação de saúde); serviços de saúde próprios de seus funcionários (quebra da universalidade) e outras questões menores.

O MODELO DE ATENÇÃO À SAÚDE: FOCO NOS PRIMEIROS CUIDADOS DE SAÚDE
“Toda vez que não prestamos, de maneira eficaz e efetiva, os primeiros cuidados com saúde, impingimos às pessoas mais sofrimento físico e moral e ao sistema maiores custos.”
Os primeiros cuidados com saúde sempre começam pelas primeiras queixas das pessoas, de forma emergencial ou de rotina. Mais tarde se juntou a isto a idéia de fazer puericultura com acompanhamento de crianças aparentemente sadias, pré-natal, vacinação, aleitamento materno, prevenção e diagnóstico precoce de hipertensão e diabetes, saúde do trabalhador etc. Estes são os principais primeiros cuidados com saúde ao qual se somam as urgências-emergências traumáticas ou não. Esta parte da saúde precisa ter precedência, destaque entre os demais cuidados, sem a visão maniqueísta de cancelar uma para garantir a outra com investimento financeiro e humano.
O novo modelo de fazer saúde é investir mais recursos na Atenção Básica. Isto não pode ficar no discurso, nos programas. Tem que sair para a prática abundantemente. Investir nas atividades de promoção da saúde (mexer com as causas dos problemas de saúde), de proteção da saúde (trabalhar os riscos do adoecer com medidas específicas como vacinas, exames preventivos, uso do flúor, uso de equipamentos de proteção individual e outras muitas ações) e cuidar dos que necessitam quando adoecem e não se conseguiu fazer com que não adoecessem. Gasta-se pouco nesta área (cerca de apenas 20%) dos gastos com saúde e ainda gasta-se, reconhecidamente mal, como em todas as áreas de saúde inclusive no público e no privado.

TRABALHADORES DA SAÚDE“Os trabalhadores de saúde são, atualmente, o maior problema do Sistema de Saúde, mas, sabidamente a única saída passa por eles, o cerne e a alma de qualquer sistema de saúde.”
Tem-se que investir na força de trabalho de saúde. Trabalhar com a equipe multiprofissional de saúde, em equipe, a favor do cidadão. Isto implica num trabalho de formar melhor os profissionais nas universidades e escolas técnicas e aprimorar o conhecimento daqueles que já estão na rede de serviços de saúde.
Existem distúrbios na formação e conhecimento técnico dos profissionais, na formação humana e no compromisso dos profissionais com a sociedade. De outro lado os empregadores públicos e privados devem garantir condições de trabalho e salário e educação permanente para os trabalhadores de saúde. A área básica, dos primeiros cuidados com saúde exige mais e melhor conhecimento de saúde, ainda que as pessoas imaginem que sejam as áreas especializadas, que trabalham com alto custo e aparelhos, exijam mais conhecimentos. As especialidades ao se louvarem nos aparelhos e na limitação do campo do saber, geralmente são mais valorizadas pela sociedade.
Os profissionais de saúde, em sua quase totalidade, não têm, nem usufruem de um plano de cargos, carreira e salário, ainda que a Lei 8142 desse o prazo de dezembro de 1992 para que todos estados e municípios fizessem seu plano. Confirma-se assim, mais uma vez, o virtual do cumprimento da lei. Não fizeram, não fazem e nada acontece.
Quem assumir a Presidência da República tem que investir mais nos profissionais de saúde, com PCCS, melhores condições de trabalho e salário e educação permanente. Esta é a primeira condição para fazer os cuidados de saúde melhorarem em quantidade e qualidade.

PARTICIPAÇÃO DO CIDADÃO
“Resolver os problemas de saúde do cidadão é a razão de ser do sistema. Tem-se que centrar o sistema no cidadão e incentivar que dele participe como dono e proprietário do Sistema.”
Neste tema estamos nos perdendo. Podemos enxergá-lo sob duas óticas. A primeira é dar espaço ao cidadão para que ele seja mais ativo em relação a seus cuidados com saúde, que receba informação devida e que possa ter autonomia em suas decisões. Deixar da visão que o conhecimento de saúde de profissionais e serviços seja único e soberano. As pessoas precisam participar mais nos seus cuidados, na sua promoção, proteção e recuperação da saúde. Uma das obrigações, também dos governos, é estimular esta responsabilidade individual e coletiva com saúde.
A segunda ótica da participação da comunidade na saúde são os Conselhos e Conferências de Saúde. Uma rede de espaços para que as pessoas possam participar através de proposições e do controle idéia mestra que iniciamos na saúde já no período pré-constitucional em 1983 com as Ações Integradas de Saúde. Os Conselhos precisam assumir seu papel constitucional e legal tanto de participar na proposição dos planos de saúde que devem ser ascendentes, como no controle das ações e serviços de saúde, inclusive nos aspectos econômicos e financeiros. O Conselho é obrigado a acompanhar e fiscalizar o Fundo de Saúde onde devem ser aplicados todos os recursos financeiros da saúde.
Considero estes os cinco, os maiores desafios para o novo Presidente do Brasil.

domingo, 24 de outubro de 2010