domingo, 28 de novembro de 2010

Globalização, Comércio Exterior e Vigilância Sanitária

André Medici

Desde a 8ª. Conferência Nacional de Saúde, realizada em 1986, o Brasil vem progressivamente realizando mega-eventos em saúde. Gerais ou temáticos, esses mega-eventos cristalizam a expressão política e vocalização de interesses da sociedade organizada do setor (profissionais de saúde, usuários, gestores públicos ou privados) permitindo a discussão e disseminação de aspectos técnicos, doutrinários e organizacionais associados à implementação do Sistema Único de Saúde (SUS). Eles tem tido um papel essencial na disseminação da Reforma Sanitária Brasileira e na construção progressiva de um consenso que tem garantido a estabilidade do SUS nos últimos vinte anos. A Associação Brasileira de Saúde Coletiva – ABRASCO – é uma das entidades que tem tido papel ativo na organização destes Congressos e na construção desses consensos.

Organizando mega-eventos desde os temas mais gerais, como os de Saúde Coletiva, até os específicos como Recursos Humanos em Saúde, Epidemiologia ou Vigilância Sanitária e Economia da Saúde, a ABRASCO tem se associado a distintas organizações de saúde no Brasil para na busca de parcerias para estes eventos. No campo da Vigilância Sanitária, com o apoio institucional da Agência Nacional de Vigilância em Saúde (ANVISA), a ABRASCO já organizou cinco Simpósios Brasileiros de Vigilância Sanitária (SIMBRAVISA).

O V SIMBRAVISA, realizado entre 13 e 17 de Novembro de 2010, ocorreu na cidade de Belem, capital do Estado do Pará, contando com mais de 2000 participantes. Fui convidado a coordenar de uma mesa sobre Globalização, Comércio Exterior e Vigilância Sanitária durante este evento. Participaram da mesa Neilton Araujo de Oliveira, Diretor Adjunto da ANVISA, José Manoel Cortiñaz Lopez, técnico da Câmara de Comércio Exterior (CAMEX) e Marcelo Liebhart da Associação da Indústria Farmacêutica de Pesquisa (INTERFARMA). Tanto as apresentações como as discussões suscitaram interessantes questões que me levaram a escrever esta postagem.

Globalização e Comércio Exterior

Em poucas palavras, globalização é o aumento da interdependência entre as nações que ocorre através da intensificação da troca de informação entre distintos países, com impactos diretos na vida cultural, nos valores, nos hábitos e costumes, nos padrões de consumo e consequentemente no comércio exterior.

Como resultado no plano do comércio exterior, os países reduzem suas barreiras alfandegárias e tarifárias, aumentam os acordos internacionais e a padronização dos produtos, as exportações e importações, colocando em prática o aproveitamento das vantagens comparativas e competitivas de cada país. As importações/exportações como proporção do PIB tendem a aumentar com impactos importantes na qualificação e especialização dos mercados de trabalho e o direcionamento dos investimentos de infra-estrutura.

A globalização constuma se expandir durante os períodos de prosperidade econômica internacional. Nesse sentido, os efeitos da globalização podem se registrados desde a época dos fenícios, mas tem aumentado vertiginosamente nas últimas décadas com a revolução trazida pelas tecnologias de informação e de comunição on line.

Analogamente, a globalização tende a se retrair nos períodos de crise econômica, e quanto mais profunda são as crises, mas intensa é a reversão dos processos comerciais (e com o tempo, comportamentais) associados à globalização. Portanto, as crises são inimigas naturais dos processos de globalização. Em geral elas aumentam o comportamento defensivo dos países na proteção de seus mercados nacionais de forma a privilegiar a produção doméstica e reduzir as importações. Nos anos mais recentes, de rápida propagação e transferibilidade da informação, conhecimento e tecnologia, os países em desenvolvimento são os que mais ganham com a globalização. São eles que se beneficiam da queda (ainda que parcial) do protecionismo dos países desenvolvidos com o favorecimento e maior exposição de suas indústrias nacionais aos mercados globais, e com o consequente crescimento da qualidade e empregabilidade de sua força de trabalho. Mas as crises também afetam proporcionalmente mais os países em desenvolvimento, com a reversão da globalização. O crescimento do protecionismo dos países desenvolvidos desacelera a dinâmica das indústiras exportadoras nos países emergentes o que nem sempre pode ser contrabalançado pela absorção do excedente de produção pelos mercados internos. Países como a China e o Brasil, que tiveram um crescimento acelerado de suas classes médias consumidoras na última década tem de certa forma ocupado parcelas do mercado interno com a crise financeira que se instalou na economia mundial em 2008, por exemplo.

Uma das perguntas mais frequentes sobre a globalização é associada a sua reversibilidade. A globalização pode acabar? Dependendo da severidade das crises, ela pode ser profundamente afetada. Em distintos momento ao longo da história a globalização se reverteu, trazendo como resultados mudanças nos padrões de consumo e investimento e até mesmo nos paradigmas sociais, econômicos e culturais. Mas sempre ficava algo para ser retomado na próxima onda expansiva da economia, pelo menos no que se refere aos ciclos econômicos de longo prazo (os kondratiefs, em homenagem ao economista que os descobriu, detentor deste sobrenome). Podemos dizer que o que vivemos hoje representa o estágio mais avançado que a globalização já enfrentou na história mundial. As pequenas reversões recentes certamente não ameaçam estruturalmente o estágio de globalização já alcançado pela humanidade.

Uma outra pergunta frequente se associa aos fatores que atrapalham o processo de globalização. Do ponto de vista comercial, os fatores mais comuns são: (a) Movimentos defensivos que estabelecem tarifas comerciais de importação ou exportação. Sempre perdem os países que exportam imposto ou os que são involuntariamente afetados pelo aumento de seus preços finais devido a impostos cobrados por países que importam seus produtos; (b) Desequilíbrios artificiais na taxa de câmbio que reduzem involuntariamente a competitividade do país que tem o câmbio super-valorizado, ou aumentam injustamente a competitividade do país que desvaloriza artificialmente sua moeda; (c) Práticas comérciais não adequadas como dumping, geração de subsídios a exportação e outras que reduzam artificialmente os preços finais dos produtos exportados e (d) taxas elevadas de juros, que costumam afetar negativamente a contração de créditos de curto prazo que auxiliam o financiamento das atividades de exportação e importação.


Efeitos da globalização nas políticas de saúde e vigilância sanitária


Historicamente, a saúde tem sido um dos setores que demandam mais tempo para adaptar-se as mudanças trazidas pela globalização, mas isto, recentemente, tem mudado rapidamente e vários fatores tem contribuido para tal, destacando-se:

(a) a difusão global de tecnologias e protocolos médicos;

(b) o papel das indústrias de medicamentos e equipamentos médicos que tendem a mobilizar recursos mundiais em suas estratégias de pesquisa e na difusão comercial de seus produtos e;

(c) os meios de comunicação de massa e a internet, que colocam nas telas todos os avanços possíveis da medicina que passam a ser objeto de cobiça e de consumo, dado que na sociedade contemporânea a longevidade saudável passa crescentemente a ser uma das maiores aspirações de consumo da humanidade.

Nesta perspectiva, aumenta constantemente o peso dos bens e serviços de saúde nas pautas de importação, aumentando também o papel dos órgãos de vigilância sanitária dos distintos países, como é o caso da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (ANVISA) no Brasil. As tarefas destas agências que se associam aos processos de globalização são:

(a) a conformidade dos produtos e serviços importados com padrões de uso e normas de segurança aceitáveis nacionalmente;

(b) a adaptabilidade destes bens e serviços aos padrões e estruturas de demanda nacional (tanto intermediária como final);

(c) a prioridade dos produtos, estratégias e protocolos importados ou exportados ao quadro epidemiológico nacional e

(d) a sua relação custo-efetividade e, portanto sua sustentabilidade em relação à renda das familias e aos gastos governamentais.

Migrações internacionais, remessas de recursos, intensificação do turismo e de viagens comerciais são fatores que também se intensificam com a globalização, exigindo mudanças nos aparelhos educacionais e de formação profissional e nos sistemas de saúde, que passam a aumentar suas ações de vigilância sanitária e geram acordos internacionais sobre fronteiras saudáveis e normas técnicas de procedimentos de saúde para viagens internacionais. Em épocas de globalização epdiemias (1), especialmente as de fácil transmissão como as gripes de alta letalidade (como aviar, suina, etc.) se tornam um risco que exige medidas especiais de preparação dos sistemas de saúde (2).

Os Desafios da ANVISA frente ao Processo de Globalização

A exposição de Neilton Araujo de Oliveira, concentrou-se na complexidade do papel da ANVISA, entidade marcada pelo controle da produção na área de saude, pelo controle da publicidade e rotulagem destes produtos e pelo controle de seus efeitos antes (registro e certificação) e depois (tecnovigilância e inspeção) de passarem pelo mercado.

A ANVISA é o orgão federal que controla o Sistema Nacional de Vigilância Sanitária (SNVS). Esse sistema conta com 3 mil funcionários federais, 2500 nos Estados e cerca de 50 mil nos Municípios Brasileiros. A ANVISA fiscaliza a produção de quase um quarto do Produto Interno Bruto (PIB) nacional. Passam sob o crivo de sua inspeção cerca de 80 mil farmácias, 23 mil empresas cadastradas, 450 fábricas de medicamentos, 4000 empresas de cosméticos, 3,4 mil empresas produtoras de produtos para a saúde, 3000 empresas saneantes, 2000 distribuidoras de medicamentos, 12 mil laboratórios de análises clínicas, 11 mil empresas de radiodiagnóstico, 6,7 mil hospitais, 2,6 mil serviços de fisioterapia, 600 serviços de hemodiálise, 250 empresas de medicina nuclear, 150 de radioterapia, 155 aeroportos, 46 portos e 111 pontos na fronteira nacional.

A ação da ANVISA se estrutura na redução do risco sanitario, o qual decorre de distintas circunstancias associadas a infra-estrutura do setor, aos processos de trabalho em geral e a natureza dos produtos de saúde. Também existe o risco inerente a escolha da tecnologia a ser utilizada em saúde a qual deve ter evidência comprovada para seu registro. Ambos os processos, frente a globalização, tendem a sofrer um maior conjunto de influências externas o que exige novos desafios da ANVISA no âmbito da regulação. Para enfrentar a redução do risco sanitário a ANVISA tem que coletar dados sobre estruturas, produtos e processos, transfor estes dados em informação, através de processos de ordenação e seleção; transformar a informação em conhecimento através da análise e sua compreensão via interpretação e julgar e tomar decisões a partir das evidências encontradas.

Os principais desafios da ANVISA são a modernização dos processos de gestão na administração pública para enfrentar o risco sanitário, o desenvolvimento e aprimoramento do processo regulatório associado a vigilância sanitária e a ampliação e fortalecimento da participação e controle social nestes processo regulatório. A globalização potencializa ainda mais estes desafios, dado que eleva o risco sanitário frente a necessidade de disseminar medidas regulatórias de grande interesse público e impacto nacional, frente aos desafios da globalização, à velocidade na geração de novos produtos, aos conflitos entre o interesse nacional e o internacional e às assimetrias culturais e políticas das distintas regiões. A necssidade de aplicar a regulação, através de fiscalização, leva a ANVISA a um esforço permanente de comunicação com a sociedade e com as autoridades e com organismos internacionais. E por este motivo que a ANVISA vem se integrando com organismos internacionais (OPAS, BVS, OECD) com processos de harmonização internacional de legislação sanitária, capacitação de agentes de vigilância, etc.

A exposição de José Manoel Cortiñaz Lopez da CAMEX enfatizou o desafio em harmonizar procedimentos para a melhoria da logística das empresas brasileiras que exportam para o mercado internacional de saúde. Observou que grande parte da melhoria da competitividade destas empresas dependem da ação da ANVISA.

A CAMEX foi criada em junho de 2003 pelo Decreto 4732. Sua função básica é coordenar a atuação dos órgãos federais vinculados com registros, anuências e controles em operações de importação e exportação. Seu objetivo é melhorar os aspectos logísticos das empresas que operam com contratos de comércio exterior, com vistas a transformar vantagens comparativas da produção brasileira em vantagens competitivas.

A CAMEX é gerida por um Conselho que envolve 7 Ministérios, mas o Ministério da Saúde não é um desses órgãos, apesar de seu grande peso no registro e licenciamento de produtos de saúde. As decisões da CAMEX se tomam através de um grupo técnico de facilitação do comércio exterior (GTFAC). A ANVISA tem sido convidada a participar das reuniões do GTFAC, mas como observadora. A atuação do GTFAC e da CAMEX, tem sido bastante eficiente, e resultou na redução de 29% das anuências de exportação e no aumento de 1,4% das anuências de importação.

A CAMEX tem sugerido aumentar a participação da ANVISA nos processos de melhoria das cadeias logísticas no setor saúde. Os principais problemas identificados pela CAMEX se associam aos seguintes fatos: (a) a legislação setorial de regras para licenciamento de produtos no Brasil é dispersa e defasada; (b) existe, por um lado, repetidos processos que poderiam ser simplificados, ao lado de incompatibilidades entre as exigências de múltiplos órgãos; (c) os procedimentos são complexos e burocráticos; (d) as intervenções dos distintos órgãos não são coordenadas gerando, em muitos casos, uma sequência inadequada das operações; (e) a logística costuma ser onerosa e ineficiente.

Todos estes temas são de grande importância, dado que a globalização dificilmente irá se reduzir nos próximos anos, gerando novos desafios onde as questões de harmonização interna e externa das regulações e da logística dos produtos de saúde e seu impacto nas cadeias produtivas internas do setor deverão ser cada vez mais relevantes.

Notas

(1) Sobre o impacto da globalização nas doenças transmissíveis, ver Medici, A.C., “As Infernais Doenças Democráticas” in Revista Insight Inteligência, Rio de Janeiro (RJ), Jul-Set de 2003, pp. 154-179. O artigo pode ser baixado na página: http://www.insightnet.com.br/inteligencia/22/PDFs/1122.pdf

(2) Sobre o tema da gripe aviar e seus efeitos no Brasil ver Medici, A.C., “A Influenza e a Capacidade de Resposta dos Ministérios da Saúde: O Brasil Está Preparado?”, in Revista Interessa Nacional, No. 7, Outubro-Dezembro de 2009, Sao Paulo (SP), 2009, pp. 65-76. O artigo podera ser encontrado em: http://interessenacional.com/artigos-integra.asp?cd_artigo=56
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Uma agenda estratégica para a saúde no Brasil !

UMA AGENDA ESTRATÉGICA PARA A SAÚDE NO BRASIL 2011

Em 22 anos de SUS, foram muitos os avanços nas políticas de saúde. Esses avanços, contudo, não escondem as dificuldades que ameaçam a própria manutenção das conquistas. Ninguém desconhece que, nas condições atuais, há limitações importantes à efetivação dos princípios e das diretrizes do Sistema Único de Saúde.


O principal obstáculo a ser superado é político. Os sinais sobre a via de integração e proteção social ainda não são suficientemente claros. Ora acena-se em direção aos modelos universalizantes, ora no sentido da adoção de políticas de saúde focalizadas, para quem não tem cobertura de planos e seguros privados de saúde. Hoje, as ambigüidades subjacentes às relações entre desenvolvimento econômico e social e a política de saúde impõem desafios renovados ao Brasil. O país vive uma nova conjuntura com taxas de crescimento econômico sustentadas, uma composição demográfica em que é elevada a proporção da população economicamente ativa e o incremento dos empregos formais fixa a perspectiva de mobilidade social conjugada à melhor distribuição da riqueza. Neste contexto, é imprescindível remover obstáculos estruturais à efetivação do SUS e da Reforma Sanitária Brasileira.

Destacam-se, entre esses obstáculos, as estreitas e iníquas bases de financiamento das ações e dos serviços públicos de saúde. Enquanto o investimento per capita do SUS foi de R$ 449,93, em 2009, o sistema de assistência médica supletiva despendeu R$ 1.512,00 por usuário. Esses valores são ainda mais contrastantes quando se leva em conta que cerca de 60% dos gastos públicos são destinados à assistência médico-hospitalar e os 40% restantes aplicados em ações essenciais de saúde pública para toda a população. Se, em termos de proporção do PIB, os gastos em saúde já alcançam cerca de 8,5% - e parece razoável, de acordo com as experiências dos países com melhores sistemas de proteção social, um aumento até 10% -, a proporção dos gastos públicos em saúde não ultrapassa 4% do PIB, o que é, segundo as mesmas experiências, extremamente pouco.


Em segundo lugar, vem a questão da relação público-privado na saúde. Está claro que a segmentação da atenção à saúde dos brasileiros avança celeremente: é grande o risco de consolidação de um apartheid no sistema de saúde, no qual os ricos e os remediados utilizam serviços privados, razoavelmente financiados, em parte com subsídios públicos, enquanto os pobres utilizam serviços públicos, nitidamente sub-financiados. É preciso cessar os fluxos que transferem recursos públicos para as redes de mercantilização e financeirização da saúde, atendendo aos interesses de empresas de planos e seguros privados e de fabricantes de insumos, notadamente grandes empresas estrangeiras. No que toca à regulação do setor privado, tem sido visível e preocupante a incapacidade do Estado – seja através da administração direta (Ministérios e Secretarias de Saúde), seja através da Agência Nacional de Saúde Suplementar – de assegurar que as operadoras e os prestadores de serviços atuem dentro dos limites do respeito ao interesse público.


Outra questão quanto à relação público-privada se refere aos benefícios fiscais e creditícios que detém o setor privado filantrópico ou de excelência, que aprofunda a segmentação dos serviços, resultando em discriminação e ineficiência. Grandes hospitais e centros clínicos e de apoio diagnóstico e terapêutico, inclusive públicos, adotam portas de entrada duplas, ao atender com padrões diferentes usuários do SUS e de planos privados, enfraquecendo a possibilidade de formação de redes integradas de serviços saúde. É socialmente iníquo, sanitariamente ineficaz e economicamente insustentável oferecer saúde à população através de planos privados que organizam o acesso aos serviços de saúde com base na capacidade de pagamento e não na necessidade de cuidados.


Em terceiro lugar, o SUS deve assegurar aos trabalhadores da saúde condições adequadas ao exercício de suas atividades. Considerando que se trata de uma política de Estado, é inadmissível a falta de estabilidade do quadro de pessoal da saúde, o que compromete a continuidade dos programas de saúde e, sobretudo, a criação de vínculos duradouros entre as equipes de saúde e as comunidades às quais devem servir.


Em quarto lugar, há os problemas de gestão e organização do sistema e dos estabelecimentos de saúde, especialmente relacionados à pessoal, à compra de bens e serviços e à qualidade das ações de saúde. Neste aspecto, seguem abertos os debates e as experiências sobre organizações sociais ou fundações estatais, com relatos contraditórios acerca da sua efetividade, da qualidade do uso de recursos e da garantia do interesse público.

Outra parte dos problemas de gestão se atém à incipiente profissionalização dos quadros gestores, problema relacionado ainda à política de pessoal e ao uso político-partidário dos cargos de direção e assessoramento.


Em quinto lugar, o modelo de atenção à saúde do SUS, com predomínio de práticas individualistas, biologicistas, curativistas e hospitalocêntricas, se contrapõe à

efetivação do princípio da integralidade, mesmo com a ampliação da cobertura da atenção primária. A explicação das dificuldades de transformação das práticas de atenção reside, certamente, no padrão de relacionamento e atuação do complexo econômico-industrial da saúde, ou mais precisamente, nos interesses econômicos dos produtores e fornecedores de insumos – medicamentos e equipamentos médico-hospitalares. Na sua atual configuração, o complexo econômico da saúde negligencia o investimento em tecnologias de promoção da saúde e prefere reproduzir e expandir a lógica de atendimento sintomático e curativo, baseado no consumo de procedimentos.


Ademais, a rede de serviços de saúde precisa ser ampliada desde uma perspectiva conceitual, orientada para a articulação com as demais redes sociais, valorizando as características sócio-demográficas, culturais e epidemiológicas da população. Ao mesmo tempo em que oferta serviços e ações de qualidade, com ambientação e infraestrutura funcional e atualizada.

A implantação acelerada de novas unidades de atenção primária de saúde, particularmente através da estratégia de saúde da família, é um requisito essencial para viabilizar a efetividade e a eficiência do SUS. Além da rede básica de saúde, o SUS precisa priorizar a ampliação e a qualificação de serviços especializados ambulatoriais e hospitalares, tanto próprios, quanto contratados.


Por último, mas não menos importante, a valorização negativa atribuída ao SUS desde os quadros dirigentes do país até as entidades de representação da sociedade civil reflete-se nas possibilidades de avanços da saúde. A inovadora estrutura de controle social – conferências e conselhos –, consagrada legalmente, não tem sido capaz de assegurar um debate substantivo sobre as políticas de saúde e os rumos do SUS. Ao contrário, questões corporativas e paroquiais têm dominado a pauta de discussões. Na melhor das hipóteses, certas questões centrais, como a do subfinanciamento, são discutidas, mas sempre em uma perspectiva conjuntural. Ainda em relação ao controle social, o papel da mídia precisa ser melhor discutido.


Estas são as questões centrais a serem enfrentadas. As propostas de políticas de saúde não podem ser reduzidas ao seu escopo setorial, enfraquecendo a sua potência transformadora da realidade social.

O momento eleitoral deveria servir para o aprofundamento do debate sobre os rumos das políticas de saúde junto ao conjunto da população. Infelizmente, predominaram as propostas pontuais, determinadas antes pelas estratégias de marketing

eleitoral do que pela consistência técnica e política (de política como policy e não politics).

Passadas as eleições, está nas mãos do novo governo a responsabilidade de apresentar proposições mais concretas de ações governamentais, mantendo sempre a postura democrática de diálogo com as entidades representativas da sociedade civil organizada, que, no setor da saúde, tem forte tradição participativa.


Dentro desta postura e buscando honrar esta tradição, a Abrasco, o Cebes, a Rede Unida e Conasems tomam a iniciativa de apresentar à consideração da presidente eleita e de sua equipe de transição, propostas que visam a enfrentar os problemas de caráter estrutural, e não apenas conjuntural, do sistema de saúde brasileiro:


a) Financiamento da saúde: avançar, nos quatro anos de governo, até alcançar a aplicação de 10% do PIB no setor da saúde, sendo cerca 75% de recursos públicos. De imediato, buscar a aprovação no Congresso Nacional de lei que regulamente a EC-29 e assegure fontes estáveis e suficientes de financiamento, incluindo o fim da incidência da Desvinculação de Recursos da União sobre o orçamento da saúde.

b) Regulação do setor privado: garantir a capacidade de intervenção da Agência Nacional de Saúde Suplementar, orientada pelo interesse público. Ao longo dos quatro anos de governo, para eliminar os subsídios públicos aos planos e seguros privados de saúde, incluindo aqueles do funcionalismo público, nas três esferas de governo. Além disso, nos futuros processos de contratualização, considerando valores justos de remuneração, os serviços filantrópicos, se desejarem continuar mantendo os benefícios e as renúncias fiscais a que têm direito, deverão realizar atendimento exclusivo ao SUS. Os serviços que não optarem pela vocação pública deverão buscar no mercado regulado da saúde suplementar a realização de seu capital.

c) Política de gestão do trabalho em saúde: valorizar o trabalho em saúde, eliminando a precarização, adotando parâmetros nacionais de cargos, carreiras e vencimentos para os trabalhadores da saúde e assegurando o co-financiamento das políticas de gestão do trabalho pelas três esferas de governo. É preciso preservar, expandir e organizar ações vigorosas de educação permanente em todos os âmbitos do sistema, desenvolvendo as parcerias e os dispositivos necessários. Ademais, é fundamental intensa articulação entre as políticas de saúde, educação e ciência e tecnologia para suprir as necessidades estruturais de profissionais de saúde no SUS, aproximar o perfil e a distribuição das ofertas de formação, bem como a produção de

conhecimento em relação às necessidades de saúde da população e de organização dos serviços. Ocultar tudo

d) Modelos de gestão pública: fortalecer a capacidade gerencial do Ministério da Saúde e os processos de coordenação interfederativa, contemplando metas de elevação da qualidade e da efetividade das respostas das instituições de saúde. Ademais, avançar na implantação de modelos próprios para a gestão da saúde, que assegurem a efetividade e a qualidade dos serviços, preservando o seu caráter público e superando a lógica fragmentada e dispersa do planejamento e da tomada de decisão no SUS. Concretamente, é preciso (1) valorizar o critério de qualidade técnica, assim como o encurtamento de prazos nos processos licitatórios para contratação de serviços ou compra de bens, buscando relações de custo-efetividade; e (2) adotar mecanismos de responsabilização de gestores, profissionais e técnicos quanto ao desempenho dos serviços de saúde. Está clara a necessidade de alterações na legislação referente à administração pública da saúde que garantam autonomia administrativa, orçamentária e financeira para os serviços e as redes regionalizadas de atenção à saúde e fortaleçam os mecanismos de coordenação.

e) Modelos de atenção à saúde: fortalecer e expandir as estratégias de promoção da integralidade e da universalidade da atenção à saúde por meio da configuração de redes de atenção organizadas regionalmente em consonância com a situação de saúde, assegurando o financiamento para intervir na gestão do quotidiano dos serviços e assegurar a qualificação e a flexibilização da oferta, de acordo com as diferentes realidades locais.

f) Desenvolvimento tecnológico e inovação em saúde: buscar a articulação entre as políticas de saúde, de ciência e tecnologia e de indústria e comércio de modo a proporcionar ao SUS os insumos necessários ao enfrentamento dos problemas de saúde dos brasileiros. Um passo concreto pode ser dado com a adoção de incentivos financeiros, via acesso privilegiado às compras públicas ou via outros meios, à indústria nacional, especialmente aos seus setores mais inovadores, que priorizam a realização de investimentos em tecnologias que atendam as prioridades sanitárias.

g) Controle e participação social: valorizar os movimentos sociais, acatando as deliberações políticas dos fóruns legítimos de participação como as Conferências e Conselhos de Saúde. Priorizar a saúde na agenda do governo federal e apresentar à sociedade os seus principais dilemas buscando no debate organizado da XIV Conferência Nacional de Saúde os encaminhamentos e consensos democraticamente construídos. As estruturas de governo devem estabelecer estratégias de comunicação que levem as questões da saúde e seus encaminhamentos ao conjunto da sociedade, valorizando sua participação das soluções.

Ao apresentar estas propostas, as entidades do Movimento da Reforma Sanitária, abaixo-assinadas, se baseiam na noção de justiça social, ainda que buscando serem pragmáticas. Consciente dos enormes desafios do país, em particular, no setor da saúde, nos propomos a realizar uma interlocução permanente com o governo federal buscando ampliar as fronteiras de democratização no Brasil para garantir não apenas os direitos civis e políticos, mas também os direitos sociais e ambientais a toda a população.


Associação Brasileira de Pós-Graduação em Saúde Coletiva (Abrasco)

Centro Brasileiro de Estudos de Saúde (Cebes)

Rede Unida

Conselho Nacional de Secretarias Municipais de Saúde (Conasems)

Associação Paulista de Saúde Pública (APSP)

Sociedade Brasileira de Medicina de Família e Comunidade (SBMFC

sábado, 20 de novembro de 2010

Prevenção em segundo plano


Especialistas criticam falta de prioridade com atenção básica; ministério pede mais verba

Roberto Maltchik


A articulação pela volta da CPMF, liderada pelos governadores e respaldada pela presidente eleita, Dilma Rousseff, esconde um dos mais gritantes dilemas do Sistema Único de Saúde (SUS): ao investir em saúde o mínimo - ou até menos - do que prevê a Constituição, o governo prioriza o atendimento dos serviços de alta e média complexidade em detrimento dos gastos com proteção e prevenção, a chamada atenção básica. Especialistas ouvidos pelo GLOBO asseguram que essa é uma das principais armadilhas do sistema, que pode criar uma bomba relógio para o próximo governo. O Ministério da Saúde admite que há distorções e alega que, para resolver o problema, é preciso criar uma nova fonte de receita, como o ressurgimento da CPMF.
Dados do Sistema Integrado de Administração Financeira do governo federal (Siafi) apontam que, no Orçamento deste ano, os gastos com atenção básica em saúde devem alcançar R$ 10 bilhões. Entretanto, para pagar procedimentos hospitalares e ambulatoriais de média e alta complexidade a despesa chega a R$ 31 bilhões.
Apresentação feita pelo Ministério da Saúde ao Conselho Nacional de Saúde (CNS), este mês, mostra que os gastos com procedimentos de média e alta complexidade sextuplicaram entre 1998 e 2010. No mesmo período, os recursos para atenção básica apenas triplicaram.
O resultado dessa distorção aparece no cotidiano dos brasileiros, que observam índices a cada ano mais alarmantes de doenças que poderiam ser prevenidas e que já poderiam estar sob controle.
É o caso da dengue, cujo número de casos aumentou quase 100% entre 2009 e 2010, segundo dados divulgados na última quinta-feira pelo Ministério da Saúde. O número de infectados este ano já chega a quase um milhão de pessoas.
Tamanha discrepância, de acordo com o pediatra Gilson Carvalho, especialista no financiamento público da saúde, é provocada pela negligência dos gestores e pela pressão tanto da sociedade quanto da indústria médico-hospitalar: - A média e alta complexidade têm pressão permanente dos cidadãos, dos profissionais e dos prestadores (deserviços).
Quando me pedem para calcular recursos a mais para essa área, eu digo: não se preocupem que no fim do ano aparece esse dinheiro de qualquer outro lugar, inclusive de áreas neglicenciadas, para as quais se nega gasto durante o ano e depois se abocanham os recursos - afirma Carvalho.
O presidente do Conselho Nacional de Saúde (CNS), Francisco Batista Junior, defende uma mudança radical no cálculo dos gastos com saúde.
Para ele, o sistema universal e de atenção integral só vai funcionar corretamente quando a atenção básica tiver mais recursos do que a média e a alta complexidade.
- Quando falta dinheiro para prevenir você estimula a indústria da doença. Cria-se um ciclo vicioso que, em última análise, encarece profundamente o preço do Sistema Único de Saúde. Não basta ter mais dinheiro, é preciso que se invista muito melhor - avalia.
De acordo com o presidente do CNS, a fórmula para pagar os serviços complexos, como hemodiálise e transplantes, alimenta as distorções.
Ele defende que o orçamento desses serviços seja definido previamente, considerando o planejamento das ações em determinado município por um período mínimo de três anos. Atualmente, os pagamentos são feitos por cada procedimento ou pela chamada Autorização de Internação Hospitalar (AIH).
A secretária-executiva do Ministério da Saúde, Marcia Bassit, admite que o reforço dos investimentos em atenção básica é um dos mais antigos e sensíveis dilemas do SUS. Ela culpa as gestões anteriores à do ministro José Gomes Temporão pela consolidação das distorções entre saúde básica e a de média e alta complexidade.
- Não houve preocupação com a prevenção. Já há uma demanda curativa, que não diminui.
Não podemos pensar só em números.
A pressão não é só da indústria, a população também demanda cada vez mais os métodos sofisticados de diagnóstico - diz Bassit.
Assim que venceu a eleição, a presidente eleita, Dilma Rousseff, afirmou que segurança e saúde são os dois maiores desafios para o começo de seu governo. Entretanto, de acordo com a secretária-executiva do Ministério da Saúde, é praticamente impossível melhorar o sistema, oferecendo à atenção básica mais recursos, sem a criação de uma nova fonte de recursos, como a CPMF: - Eu acredito que não há como melhorar sem pensar em outra fonte de financiamento. Não é a CPMF, o retorno. Acredito que poderemos encontrar uma solução no conjunto de uma reforma tributária - afirma ela.
Desde o segundo mandato do presidente Fernando Henrique Cardoso, passando pelos dois mandatos de Luiz Inácio Lula da Silva, a reforma tributária é chamada de prioridade.
Entretanto, até hoje não foi aprovada pelo Congresso Nacional.
Entre os especialistas, porém, aumentar os recursos para a saúde não significa garantia de melhora no sistema.
- Com mais recursos, imediatamente teremos uma melhoria no atendimento das demandas.
No entanto, os benefícios tendem a desaparecer a médio e longo prazo, se não houver uma revisão completa na forma de aplicação do dinheiro - analisa o presidente do CNS.
Segundo o Ministério da Saúde, o orçamento da pasta neste ano deve alcançar R$ 62,9 bilhões.
Com isso, o governo apenas atende, no limite, o piso previsto pela Constituição - o orçamento e o crescimento nominal do Produto Interno Bruto (PIB) do ano anterior. Para 2011, a previsão é de gastos de R$ 68,5 bilhões.
De acordo com estudo do professor Gilson Carvalho, esse valor precisaria de um incremento de pelo menos R$ 12,5 bilhões para assegurar o "mínimo atendimento" a todos os usuários do SUS. Para um atendimento ideal, segundo o especialista, o orçamento deveria receber outros R$ 100 bilhões.

Fonte: O GLOBO