sábado, 26 de maio de 2012

Já não somos os mesmos????

Por Raymundo Costa | De Brasília

Valor Econômico - 25/05/2012


Há 20 anos, uma entrevista do empresário Pedro Collor desencadeou um processo de final traumático: o impeachment de seu irmão Fernando Collor de Mello, o primeiro presidente da República eleito pelo voto popular no pós-64. Passadas duas décadas, Collor passou da condição de réu a de algoz na CPI do Cachoeira, onde a todo custo tenta resgatar uma biografia perdida nas trapaças de seu curto governo. Curiosamente, em sociedade com o PT, que em 1992, ainda exibindo a aura de "partido ético", ajudou a empurrar o presidente para um longo período de ostracismo político, durante o qual foi rejeitado inclusive por seus antigos eleitores alagoanos - findo o prazo de oito anos de suspensão de seus direitos políticos, ele tentou retornar ao governo estadual em 2002, mas perdeu a eleição para o socialista Ronaldo Lessa (PSB).

Collor caiu em pouco mais de quatro meses após a entrevista, algo inimaginável na virada dos anos 1990, no fim de uma campanha eleitoral inovadora, moderna para os padrões dos marqueteiros da época, que o levou ao Palácio do Planalto com os votos de 35 milhões de brasileiros, no segundo turno da eleição de 1989. Político sem expressão nacional, quarto de cinco filhos da oligarquia de Arnon de Mello, Collor, a exemplo de Jânio Quadros na última eleição direta antes do golpe militar de 1964, empolgou o país com um discurso moralista, de combate à corrupção. A diferença é que Jânio tinha como símbolo a vassoura, com a qual, dizia, varreria "a bandalheira". Collor encarnou o "caçador de marajás" - como batizou servidores públicos que recebiam altos salários, especialmente no Judiciário alagoano, numa afronta à população de um dos menores e mais pobres Estados do país.

O que o país não tardou a descobrir, e Pedro Collor confirmaria em entrevistas e depoimento à CPI, é que Collor era um farsante. O discurso da moralidade com o qual empolgara o Brasil era tão falso como uma nota de 3 reais. Enquanto o presidente hipinotizava o público caçando marajás, seu tesoureiro de campanha, Paulo César Farias, o PC, assassinado em circunstâncias misteriosas em 1996, extorquia empresas públicas e privadas em nome do presidente. Estima-se que PC Farias tenha arrecadado alguma coisa em torno de US$ 1 bilhão. Os números variam conforme a fonte. Na entrevista que concedeu à revista "Veja", edição de 27 de maio de 1992, Pedro Collor disse que o presidente e o tesoureiro eram, na realidade, sócios na roubalheira, na proporção de 70% para 30%, respectivamente, para cada um.

A CPI para apurar as denúncias de Pedro Collor e as atividades de PC Farias no governo teve momentos épicos e, no fim, chegou a dar a impressão de que o país finalmente achara o caminho para erradicar a erva daninha da política nacional: a corrupção. As palavras do deputado Benito Gama (PFL-BA), na abertura da CPI, traduziam com exatidão o sentimento de esperança que perpassava a sociedade: "O Brasil não será o mesmo após a CPI. Nem nós seremos os mesmos". Fazia, assim, remissão adaptada à circunstância de um verso do poeta chileno Pablo Neruda: "Nosotros ya no somos los mismos".

Transcorridos apenas 67 dias de CPI, seu relator, o senador Amir Lando, já considerava possível afirmar "a procedência e o acerto" da previsão de Benito Gama. O parecer de Lando, lavrado numa linguagem mais empolada, também tinha conexão com as ruas nas quais jovens cara-pintadas pediam o impeachment de Collor, em nome da moralidade pública. "A CPI foi um momento de purgação dos desvios da conduta administrativa, uma tentativa de pôr a limpo parcela do lodaçal de corrupção que molesta a nação, um apelo de sobrevivência da virtude na vida pública", escreveu Lando no relatório final da CPI. "É preciso renovar a face do país."
Collor com Paulo César Farias, seu tesoureiro de campanha, assassinado em 1996: 35 milhões de votos e nebulosa contabilidade de milhões de dólares

Passadas essas duas décadas, é lícito perguntar se não somos os mesmos. A luta contra a corrupção já não move as ruas, o Congresso perdeu a inibição para absolver sem constrangimento seus pares acusados do que hoje se chama "malfeitos" e Collor - sim, Fernando Collor de Mello - é novamente protagonista de uma CPI do Congresso. Agora não mais na condição de alvo, mas de quem a todo custo quer resgatar uma biografia perdida. Na CPI do Cachoeira, ele repete a cantilena que já entoou na internet e no plenário do Senado, cujos versos dão conta de que, na verdade, ele foi vítima de uma conspiração, golpe congressual levado a cabo, com a ajuda da imprensa, pelos setores mais atrasados da elite de um país que ele tentava modernizar com sua política de abertura econômica.

O próprio PT, no poder há quase dez anos, deu sua contribuição para o país se manter entre os primeiros do mundo nos rankings da corrupção. Provavelmente ainda neste ano, alguns dos principais líderes do partido na época da CPI do PC serão julgados no Supremo Tribunal Federal (STF) pela criação de um esquema de compra de votos no Congresso - o mensalão, que apagou a aura de "partido ético" do PT e levou a pique lideres partidários como José Dirceu, Luiz Gushiken e José Genoino, e estrelas da nomenclatura como Delúbio Soares e Sílvio Pereira. Não é à toa que o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva começou um processo de renovação dos quadros do PT paulista - os antigos foram destroçados pelo mensalão ou outros escândalos posteriores, como o que abateu Antônio Palocci do Ministério da Fazenda (a quebra do sigilo bancário de um caseiro que testemunhara suas visitas a uma casa de encontros num bairro nobre de Brasília). Todos eram do PT de São Paulo. Alguns aspiravam à sucessão de Lula na Presidência, casos de Dirceu e Palocci.

A CPI do mensalão não foi a única. No período pós-Collor, só para citar alguns casos mais notórios, houve um escândalo no Ministério da Saúde envolvendo nada menos que 84 parlamentares, os chamados sanguessugas. Houve também as operações de repercussão da Polícia Federal. A PF prendeu gente como Daniel Dantas, dono do Opportunity, os senadores Jader Barbalho (PMDB-PA), ex-presidente do Senado (casa à qual voltou agora, mesmo com os apuros que viveu por conta da lei da Ficha Limpa), e o ex-senador Luiz Estevão (PMDB-BR). O líder do PMDB no Senado, Renan Calheiros, perdeu espaço quando foi revelado que uma empreiteira pagava suas contas pessoais. Até o aparentemente indestrutível Paulo Maluf (PP-SP) dormiu algumas noites numa cela especial da PF.

Cachoeira, que agora tem a própria CPI, nesse período frequentou as CPIs dos Correios, uma das que apuraram o esquema do mensalão e a dos Bingos, na qual falou bastante e da qual saiu indiciado. No depoimento que prestou à CPI dos Bingos, Cachoeira confirmou que um antigo assessor de José Dirceu na Casa Civil da Presidência, Valdomiro Diniz, tentara achacá-lo com pedido de propina. O indiciamento deu em nada, uma vez que desde 2005 Cachoeira esteve livre para articular os tentáculos de sua organização criminosa nas entranhas do Estado brasileiro.

Aparentemente, o país e seus congressistas continuaram os mesmos, ao contrário do que previa Benito Gama, no relatório da CPI do PC, em 1992. Aparentemente porque, se não mudou a "ética do poder", como se prenunciava em 1992, algumas coisas mudaram, e mudaram para melhor. Na época de Collor, por exemplo, era proibido o financiamento privado de campanhas eleitorais. Uma "hipocrisia", como classificou PC Farias em um de seus depoimentos mais dramáticos à CPI, pois o dinheiro rolava solto nas campanhas eleitorais, principalmente naquelas com a condição de favoritas. Como a de Fernando Collor, que começou desacreditada. Os cálculos mais precisos indicam que PC Farias arrecadou cerca de US$ 52 milhões na campanha collorida.

Desde 1994, as doações para campanhas eleitorais, que estão no DNA da corrupção, são reguladas em lei eleitoral. Mudanças ainda insuficientes, como demonstra o exemplo de Delúbio Soares, o tesoureiro da campanha de Lula na eleição de 2002, que atribuiu a dinheirama que rolou no suposto mensalão a "caixa 2" de campanha. Outra mudança sobre a qual há consenso, mas o Congresso não faz, é a simplificação dos códigos de processos, verdadeiros estímulos à impunidade, com as brechas que permitem aos réus protelar por anos o julgamento. Sobretudo, aqueles que dispõem de recursos para pagar um bom advogado, caso de... Cachoeira.
José Nascimento/Folhapress / José Nascimento/FolhapressLiteralmente, o país saiu às ruas, jovens à frente, para exigir o impeachment e, depois, para comemorar a queda de Collor

Com Fernando Collor, a corrupção política foi exposta à visitação pública de maneira crua, o que era impossível durante o regime militar, mas já se mostrava visível no de governo José Sarney (1985-1989), também objeto de uma CPI da Corrupção, mais tarde arquivada a golpes de caneta pela Mesa da Câmara dos Deputados. Para assegurar cinco anos de mandato, que a Assembleia Nacional Constituinte planejava cortar para quatro, Sarney foi generoso na oferta de concessões de rádios, emissoras de televisão e emprego para os afilhados.

Muito já foi escrito sobre a queda de Fernando Collor, sob todos os aspectos. O empresário Pedro Collor, antes de morrer, deixou sua versão escrita no livro "Passando a Limpo - A Trajetória de um Farsante", coordenado e editado pela jornalista Dora Kramer. O próprio Fernando Collor divulgou o que seria o primeiro capítulo de "Crônica de um Golpe - A Versão de Quem Viveu o Fato". Perguntado pelo Valor sobre os capítulos subsequentes, Collor não se manifestou. Por e-mail, informou que a seu tempo deverá conceder uma entrevista ao jornal. Sem falar de outros livros importantes sobre o período, como "Notícias do Planalto", de Mário Sérgio Conti, resta pouco ou quase nada a contar de novidade sobre os anos curtos, mas feéricos do governo de Fernando Collor. É preciso, aprofundar as especulações sobre como o "fenômeno Collor" se tornou possível.

Esse é um trabalho para os historiadores, sociólogos e cientistas políticos. Para os jornalistas, sobra o aluvião. Talvez a campanha e a eleição de Collor ajudem a entender o mito fundador do nosso presidencialismo de coalizão. Mas sempre é bom lembrar as circunstâncias que levaram um político muito jovem, em seus 40 anos (foi o mais novo presidente a tomar posse no país), governador de um Estado pequeno como Alagoas e sem pertencer a um grande partido transformar num delírio collorido a campanha de 1989, à qual concorreram pesos pesados da política nacional, como Ulysses Guimarães, pelo PMDB, Aureliano Chaves, pelo PFL, e Leonel Brizola, pelo PDT.

De início, Collor foi ridicularizado na própria família. Leopoldo, irmão que hoje vive em São Paulo amargurado, com dificuldades financeiras pelas quais culpa o ex-presidente, chegou a dizer que ele envergonhava a família com aquela atitude. Depois da eleição, Leopoldo posou como o "grande eleitor" do irmão, por ter assegurado, dizia, sua eleição em São Paulo, o maior colégio eleitoral do país. Mas em 1989 os fatos jogavam, quase todos, a favor de Fernando Collor. A começar pela superinflação do governo José Sarney, a corrupção que corria a olhos vistos e a consequente divisão da Aliança Democrática, a associação do PMDB com os dissidentes do PDS - que formaram o PFL - que assegurou a vitória de Tancredo Neves na eleição indireta, em 1985, pelo Colégio Eleitoral já não mais dominado por um regime militar exaurido.

Na prática, como se vê, o presidencialismo de coalizão, na redemocratização, vem desde a aliança que retirou de cena a "Revolução de Março de 1964" - até há bem pouco tempo, o 31 de Março era uma data celebrada no calendário das Forças Armadas, só retirado da folhinha há pouco tempo, por determinação do ex-ministro da Defesa Nelson Jobim.

Detalhe que em geral passa despercebido é o fato que a eleição de 1989 foi uma eleição solteira, apenas para presidente da República, o que favorece o surgimento de fenômenos ou aventureiros que prescindem dos partidos políticos. Collor tirou a sorte grande quando passou para o segundo turno da eleição, com seus 22,6 milhões de votos (28,52% do total), contra Luiz Inácio Lula da Silva, que teve 11,6 milhões de votos (16,08%). Brizola, que não conseguiu entrar no eleitorado paulista, ficou logo atrás de Lula, com 11,1 milhões de votos (15,45%). É impossível dizer que a história seria diferente se Brizola tivesse passado ao segundo turno. Mas é fato que aquela foi a "eleição do medo". Medo de Lula, seja na elite ou nos "descamisados" e "pés descalços", como Collor se referia aos mais pobres.

O ex-ministro, ex-senador e ex-diplomata Roberto Campos costumava dizer que qualquer empresa ou banco não hesitaria em dar 10% de seu faturamento para impedir a vitória de Lula. Mário Amato, ex-presidente da Fiesp, chegou a dizer que 300 mil empresários deixariam o país se Lula fosse o vitorioso. Lula iria confiscar a caderneta de poupança, tiraria os apartamentos da classe média. Eram esses os boatos que minavam sua candidatura. Já eleito presidente da República, na quarta tentativa, Lula reconheceu que fora melhor perder a eleição de 1989, pois não estava suficientemente preparado para a Presidência. Boa parte do que o empresariado temia sobre ele era verdade, na época. Não foi por outro motivo que, 13 anos depois, teve que fazer aliança com um empresário do Partido Liberal (José Alencar) e escrever a Carta ao Povo Brasileiro, quando se rendeu a princípios para os quais antes torcia o nariz.

Os cara-pintadas foram às ruas pedir a saída de Collor na onda do discurso da moralidade. Na prática, queriam derrubar o sistema e a política econômica. Itamar Franco, que sucedeu Collor, avançaria mais na agenda neoliberal que o presidente deposto, assim como Lula, 13 anos depois.

Com Sarney no "auge" da impopularidade, a Aliança Democrática se dividiu, é verdade, mas também as forças do centro para a esquerda compareceram com candidatos próprios à eleição. Ao todo, 22 candidatos concorreram a presidente da República em 1989, número recorde. Havia um acordo no PFL: Aureliano Chaves abriria mão da candidatura, em junho, mês das convenções, se não estivesse entre os três primeiros colocados na pesquisa, o que permitiria ao partido escolher outro candidato para apoiar. Aureliano era assíduo frequentador da rabeira das pesquisas, mas não abriu mão. No PMDB, outros três pré-candidatos disputaram a indicação partidária com Ulysses Guimarães, o Senhor Diretas. Todos foram ultrapassados pelo "novo" que chegava - Collor e Lula. O próprio Collor passou a achar que tinha chances, pela fragilidade, fraqueza eleitoral dos outros candidatos.

O PFL apoiou Collor no segundo turno, contra o voto do senador Guilherme Palmeira (AL), hoje aposentado. Palmeira, de certa forma, é o responsável pela carreira política de Collor. Foi ele quem, em 1979, nomeou o jovem empresário prefeito de Maceió (na época, não havia eleição para prefeito das capitais). Logo se arrependeu. Nas eleições para o governo estadual de 1986, Collor disputou com o padrinho político e venceu a eleição. Numa tentativa de tirar o PFL das mãos de Collor, o então senador e outros líderes pefelistas procuraram obter o apoio da TV Globo ao candidato do PSDB, Mário Covas. Roberto Marinho, o proprietário da emissora líder em audiência no país, chegara a acenar com essa possibilidade. A conversa até foi animadora, o tucano ganhou algum espaço, mas Covas não decolou e Marinho, que fora amigo do pai do candidato, o falecido senador Arnon de Mello, logo se voltou para Collor. A hipótese que o dono da Globo não admitia, em 1989, era apoiar Lula ou seu arqui-inimigo Leonel Brizola. O PFL ficou com Collor, mas devidamente advertido por Guilherme Palmeira, irmão de Vladimir Palmeira, o incendiário líder estudantil dos anos 1960, hoje acomodado no PT.
O presidente da Câmara, Ibsen Pinheiro, recebe o pedido de impeachment de Collor, apresentado por entidades da sociedade civil (no centro, de óculos, o presidente da ABI, Barbosa Lima Sobrinho)

Numa reunião do alto comando pefelista na casa do atual presidente do Democratas (DEM), senador José Agripino (AL), Palmeira pediu a palavra: "Eu não tenho condições de votar em você, eu acho que você não tem preparo para ser presidente da República. Convivi com você e não vou fazer esse mal para o Brasil". Palmeira, no entanto, deixou aberta a porta para o partido: "Se o PFL achar que você é menos ruim, eu não vou atrapalhar, não vou criar obstáculos. Agora, o meu voto, meu amigo, você não vai ter nunca. Eu vou votar no Lula".

Palmeira é personagem importante no enredo da crise, por sua participação em alguns momentos cruciais. Além do apoio do PFL, o senador, alagoano como o presidente, participou de duas dramáticas tentativas de salvamento do governo do conterrâneo.

Ao contrário do que costuma dizer Collor, seu primeiro ministério também tinha políticos de profissão, como Carlos Chiarelli (RS), chamado para a Casa Civil, e Alceni Guerra (PR), no Ministério da Saúde, um dos maiores orçamentos da República. Os dois representavam a cota do PFL no governo. O PMDB também tinha gente no ministério, como Bernardo Cabral, escolhido para a Justiça mais por desinformação de Collor do que por indicação partidária: o presidente eleito achava que Cabral, por ser o relator da Constituinte, fora o grande inspirador da Carta de 1988. Não tardou a perceber quanto estava enganado. Por outro lado, é verdadeiro que o núcleo consistente de apoio a seu governo era constituído por apenas 160 dos 503 deputados que então integravam a Câmara - o menor de todos os presidentes, desde Sarney.

Collor dispunha de outros 160 considerados de "apoio eventual", distribuídos pelos diversos partidos, com os quais podia contar nos termos em que as negociações se dão no Congresso, na base do toma lá dá cá. Justiça seja feita, Collor, do alto de seus 35 milhões de votos e de uma arrogância que o impedia de assimilar o que se passava em volta, não tinha muita paciência para cuidar do balcão. Bem antes da entrevista de Pedro Collor ele já enfrentava dificuldades diversas com os parlamentares. Por meio de Carlos Chiarelli, ele se reaproximara de Guilherme Palmeira, que sabia ser amigo de Jorge Bornhausen, um dos principais caciques do PFL. Collor queria levar Bornhausen para o governo, mas o senador por Santa Catarina relutava, pois sabia das histórias que se contavam sobre os achaques de PC Farias. Aliás, Guilherme Palmeira também era amigo de Pedro Collor, sobre o qual tinha alguma ascendência - Pedro chegou a se filiar ao PFL alagoano, presidido pelo senador. Palmeira convenceu Bornhausen a aceitar a Secretaria de Governo de Collor, cargo essencialmente político. "Bornhausen, aceita esse negócio, foi você que inventou de apoiar o Collor, agora ajude a ver se contorna", pediu.

Bornhausen assumiu em abril, pouco antes da bombástica entrevista que Pedro Collor havia semanas anunciava aos quatro cantos de Maceió e Brasília. Guilherme Palmeira frequentemente conversava com Pedro, ouvia as ameaças, que foram num crescendo, e resolveu avisar Fernando Collor. "Eu era contra o Collor, mas nunca pensei em derrubá-lo. Além disso, ele é de Alagoas, podia fazer algo mais pelo Estado que outros presidentes", disse Palmeira ao Valor. O mensageiro foi PC Farias. Mas Collor não levou os avisos a sério.

Tanto a Palmeira, algum tempo depois, como a outros intermediários que o procuraram, a resposta de Collor sempre foi a mesma. "Não tem nada", dizia sobre as denúncias que Pedro Collor armazenava contra PC Farias. Pelo menos Bornhausen não acreditou e pediu para sair. Além de observar a desenvoltura com que PC agia, o presidente também passara a ouvir mais outro ministro do PFL, Ricardo Fiúza, integrante da tropa de choque de Collor no Congresso.
Pedro Collor e sua mulher, Thereza: denúncias do irmão do presidente expuseram a cumplicidade do chefe do governo com PC Farias em amplo esquema de corrupção

À exceção de Antonio Carlos Magalhães (PFL-BA), que o apoiou até o fim - e com isso assegurou um grande volume de verbas para a Prefeitura de Salvador -, Collor foi sendo largado por todos os principais líderes do Congresso. Com ele ficaram nomes inexpressivos e de reputação política duvidosa, como os senadores Ney Maranhão (PRN-PE) e Odacir Soares (PTB-RO), os amigos de juventude, como Luiz Estevão, que anos mais tarde teria cassado o mandato de senador, e Paulo Octávio, que era vice-governador de José Roberto Arruda, em Brasília, mas não teve condições de assumir depois que o titular renunciou, após ser divulgada uma série de filmes exibindo farta distribuição de dinheiro entre os políticos da cidade.

Quando Pedro Collor enfim falou ao jornalista Luiz da Costa Pinto, da revista "Veja", Brasília de fato tremeu, como previa o empresário. Collor parecia catatônico, como se nada daquilo fosse com ele. Mas a família, a matriarca Leda à frente, fez um derradeiro apelo para Guilherme Palmeira tentar intermediar um entendimento entre os dois irmãos - todos os que haviam tentado antes fracassaram. Consultado, Collor condordou: "Vamos ver o que ele diz". Guilherme Palmeira e Pedro se reuniram em São Paulo, onde toda a família estava num hotel de luxo. "Rapaz, você vai derrubar seu irmão se continuar com esse negócio, vai levar a um impasse", disse. "Um impasse que não resolve o seu problema e ainda vai criar um problema para o Brasil." Não que Collor fosse um grande presidente, argumentou o senador, mas a inviabilização de seu governo criaria um problema institucional, às vésperas da Rio-92, quando a antiga capital estaria repleta de chefes de Estado.

Neste ponto, Collor, Palmeira, o ex-porta-voz Cláudio Humberto e o próprio Pedro concordam: o irmão do presidente queria US$ 50 milhões para investir na "Gazeta de Alagoas", condomínio de jornal, rádio e televisão de propriedade da família, e assegurar que continuaria no comando da empresa. Pedro tinha a convicção de que a disputa de Collor era pelo controle da "Gazeta" (leia entrevista de Thereza Collor na página 10). A diferença nas versões é que Pedro diz que preparava uma armadilha para PC Farias - ele gravaria a conversa, para depois denunciar o tesoureiro da campanha eleitoral de 1989.

"A CPI do Collor foi o evento que levou a uma série de mudanças importantes em legislação", diz Antonio Augusto Queiróz, pesquisador do Departamento Intersindical de Assessoria Parlamentar (Diap). "A relação no governo Sarney era mais fisiológica que nos tempos atuais, fazia-se a concessão individual de televisão, de rádio, dava-se emprego. A partir de Fernando Henrique Cardoso, o presidente começou a fazer de modo seletivo, atendendo segmentos, como os ruralistas, e compartilhava com a base partidária as votações no Congresso." Além de atender no varejo.

Mudanças que, no entanto, não eliminaram a sensação de impunidade, em razão da morosidade da Justiça ou o corporativismo do Congresso. Quem puniu foram as urnas. Veja-se o caso dos 84 sanguessugas - 4 conseguiram se reeleger. No caso do mensalão, o Congresso absolveu mais de uma dezena dos acusados, mas só dois voltaram pelas urnas: João Paulo Cunha (PT-SP) e Valdemar da Costa Neto (PL-SP).

Para o sociólogo e cientista político Luiz Werneck Viana, os escândalos revelam "a imperfeição do sistema de representação, mas escondem as deficiências estruturais da República". Há consenso de que o fim da bandalheira passa por uma reforma política que o Congresso se recusa a fazer. Por enquanto, o governante precisa de três concessões, basicamente, para fazer maiorias parlamentares: compartilhamento da gestão (leitura simplificada: distribui cargos para os partidos da base, nem sempre com critérios republicanos), negociação do conteúdo das políticas públicas (e permitir que os aliados participem dessas políticas) e liberar recursos do orçamento, seja por emendas, por convênio, por liberalidade. Nos três casos, os limites são impostos pelo presidente da República; ele é mais liberal quanto mais se comprometeu na campanha eleitoral. Dilma Rousseff pode ser mais dura, por exemplo, porque não botou a mão na massa da campanha. Ela não tratou de sua eleição com grandes financiadores. Deve-a apenas a Lula.

São fatores que contribuíram com alguma parcela para a queda de Collor. Mas não foram o principal. Tudo aponta para a montanha de dinheiro arrecadado por PC Farias. Enquanto isso, Collor procura outros fantasmas na CPI do Cachoeira, a ponto de ouvir uma lição de moral de um senador inexpressivo de seu partido, Silvio Costa, de Pernambuco, em uma intervenção na CPI: "Senador Collor, o povo de Alagoas lhe deu oportunidade histórica. O senhor faz política com muita coragem, firmeza. O senhor tem uma oportunidade histórica, porque com Alagoas o senhor já se reencontrou; e o senhor tem oportunidade de se reencontrar com o Brasil".

sexta-feira, 18 de maio de 2012

O avanço do privado...

Por Maíra Mathias
O que a nova classe média, um banco público e a Bolsa de Valores têm a ver com os rumos do SUS?

Afinal, qual é o papel do setor privado na prestação de assistência à saúde no Brasil? Hoje, pode-se fazer uma distinção clara entre o que é interesse público na área da saúde e o que é interesse privado? Como o processo de financeirização da economia afeta o chamado “mercado da saúde”? E a regulação, o que pode fazer diante desse novo cenário? Colocadas dessa forma, a relação entre as perguntas acima pode não ser muito clara em um primeiro momento. Entretanto, os questionamentos fazem parte da complexa teia de fatores que estão em jogo para a efetivação (ou enfraquecimento) da noção ampliada de saúde presente no SUS constitucional, aquele sistema sonhado por militantes da Reforma Sanitária como um direito de todos.

Se dependesse apenas da Constituição brasileira, a resposta para a primeira pergunta poderia ser dada sem maiores dificuldades. O texto é bastante claro quando determina que se “a assistência à saúde é livre à iniciativa privada”, o papel desse setor deve ser complementar ao SUS e segundo as diretrizes deste. No entanto, a realidade diz outra coisa. Em 2011, 47 milhões de pessoas buscaram a saúde privada, de acordo com dados da Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS). No mesmo ano, o setor movimentou cerca de R$ 80 bilhões, enquanto o orçamento da União para a saúde ficou em R$ 72 bi.

A percepção do conjunto da sociedade sobre qual deve ser o peso dos planos e seguros de saúde na vida dos brasileiros vem sendo auferida exaustivamente por pesquisas encomendadas principalmente por entidades privadas. Os resultados tendem a expressar uma insatisfação com o SUS, embora não estejam isentos de contradição. De acordo com pesquisa Datafolha encomendada pelo Instituto de Estudos de Saúde Suplementar (IESS) e divulgada no ano passado, planos e seguros de saúde constituem o segundo objeto de desejo da população brasileira, só perdendo para a casa própria em uma lista que inclui itens como carro, seguro de vida, seguro residencial, eletrodomésticos e computador. Já segundo pesquisa Ibope encomendada pela Confederação Nacional da Indústria (CNI), 95% dos brasileiros concordam, total ou parcialmente, que o governo tem a obrigação de oferecer serviços de saúde gratuitos a todos.

A combinação do aumento de postos de emprego com carteira assinada, facilidade no acesso ao crédito e ganhos reais no salário mínimo é apontada como responsável pela incorporação de um segmento mensurado em 30 milhões de pessoas em nichos de mercado antes exclusivos da classe média, caso dos planos e seguros de saúde. Pesquisa do instituto Data Popular encomendada pelo jornal Valor Econômico este ano estima que 4,4 milhões de pessoas da classe D já possuam esse tipo de plano. E há para onde crescer, já que esse número corresponde a apenas 9,3% do total residente em cidades.

No entanto, a voracidade do mercado não vem acompanhada por qualidade na assistência, como lembra o pesquisador do Departamento de Medicina Preventiva da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (USP), Mário Scheffer: “Esse mercado está crescendo mais de 10% ao ano sem planejamento. É um cenário de aumento da compra de planos populares, que são baratos, em média custam menos de cem reais a mensalidade. São planos com uma rede credenciada muito diminuída que não dá atenção de qualidade. Hoje tem overbooking, filas de espera, demoras e dificuldades em conseguir atendimento. Se anuncia um apagão da saúde suplementar por essa voracidade de se vender planos de saúde para uma suposta nova fatia da população que está descontente com o SUS e hoje tem poder aquisitivo”.

A frustração com os planos e seguros vem sendo mensurada pela ANS. Cerca de 20 milhões de brasileiros têm planos de saúde considerados ruins ou medianos, fatia que representa nada menos do que 45% dos usuários de planos de saúde no país. Pesquisa encomendada pelo Conselho de Medicina ao Datafolha no ano passado aponta que 58% dos usuários dos planos de saúde vivenciaram alguma situação negativa com o atendimento das operadoras no período de um ano. As reclamações mais recorrentes envolvem fila de espera e demora no atendimento em pronto-socorro, laboratórios e clínicas (26%). Também é alvo de críticas a pouca variedade de médicos, hospitais e laboratórios (21%). Dos entrevistados na pesquisa, 19% relataram dificuldade em marcar consulta e 18% se sentiram prejudicados com o descredenciamento do médico procurado. Quatorze por cento dos usuários relataram que precisaram recorrer ao SUS por terem atendimento negado pelas empresas. “É um engodo achar que a assistência suplementar é um paraíso. A falta de regulação, as brechas, as inúmeras restrições de atendimento, as negações de cobertura, empurram as pessoas de novo para o sistema público. Tudo aquilo que é caro, complexo, os idosos, os doentes, os desempregados, enfim, tudo o que não dá lucro retorna para o SUS”, enfatiza Scheffer.

Banco público, saúde privada

O anúncio foi feito no dia 19 de abril de 2010. Durante o lançamento de editais de patrocínio a projetos culturais, a então presidente da Caixa Econômica Federal (CEF), Maria Fernanda Gomes Coelho, informou aos presentes que a instituição estava desenvolvendo um estudo de viabilidade para entrar no ramo de seguros de saúde. “É um segmento do qual participam as demais instituições financeiras e é estratégico para nossa instituição oferecer esses produtos e serviços, sobretudo para as camadas mais baixas da população”, justificou na ocasião, de acordo com matéria da Agência Brasil. Assim, cerca de um ano depois, também sem muito alarde, a intenção do banco público se materializou no âmbito da empresa privada Grupo Caixa Seguros, da qual a CEF detém, hoje, 48,21% das ações.

A entrada do banco, mesmo que indiretamente, no mercado de planos e seguros de saúde privados teve repercussão escassa até agora. O Centro Brasileiro de Estudos de Saúde (Cebes) foi uma das poucas entidades a se manifestar publicamente sobre o caso. Em fevereiro, publicou em seu site a nota ‘Caixa Econômica Federal contra o direito à saúde’ em que questionava: “Se a saúde é, de fato, prioridade do Governo, esta prioridade deve se expressar, também, nas medidas do conjunto das instituições estatais”, lamentando, por fim: “Enquanto a correlação das forças políticas for favorável ao capital financeiro não há por que estranhar notícias como essa”.

“A decisão da Caixa é uma aposta na contramão da construção de um sistema público. Isso não condiz com a história de um banco público orientado para o desenvolvimento não só econômico, mas social do país. Como instituição voltada para a efetivação de programas sociais e direitos dos trabalhadores, há um significado muito forte quando a Caixa aposta na falência do SUS para fazer negócios”, avalia Scheffer. De acordo com ele, a iniciativa da Caixa diz muito sobre o futuro papel da saúde suplementar no sistema brasileiro e, consequentemente, sobre o futuro do próprio SUS. “Nós queremos esse subsistema como complementar ao sistema público ou a política é transformá-lo na cobertura principal de grupos cada vez maiores da população? Assegurar a perenidade do SUS vai depender muito de como os recursos do crescimento econômico vão circular no sistema de saúde. Qual será o destino da nossa riqueza coletiva? Parece que há uma determinação política para que ela se desloque para as despesas privadas e para o setor privado”, acrescenta.

Mesmo tendo sido anunciado pela direção da instituição e, posteriormente, divulgado como uma ação da Caixa Econômica Federal, o negócio operado pela Caixa Seguros Saúde recai unicamente sob a responsabilidade da personalidade jurídica privada quando o interesse é defender o banco público desse tipo de críticas. Procurada pela revista Poli no começo de abril, a assessoria de imprensa da CEF aconselhou a reportagem a tratar diretamente com a Caixa Seguros Saúde. Por sua vez, também por meio da assessoria, a empresa avaliou que não cabia a ela responder às críticas e, sim, à CEF. Procurado de novo, finalmente o banco decidiu não se pronunciar sobre o assunto nem dar detalhes sobre sua participação no negócio.

Procurada para comentar a posição do banco, a presidente do Cebes, Ana Costa, questiona: “A Caixa deveria responder. Eticamente porque é um banco público, que deveria preservar o interesse público e as bases da Constituição brasileira e politicamente porque é uma instituição vinculada a um governo que deve defender o interesse público”. Ana analisa que a entrada da Caixa se soma a outros elementos que corroboram “a aposta no fracasso do SUS”. “A Receita Federal também aposta no fracasso quando promove a renúncia fiscal do pagamento da saúde privada. Isso é um contrassenso, uma política na contramão da Constituição, que não fala em privilegiar o setor privado. Mas o que está acontecendo é o contrário. O setor privado hoje regula o setor público até determinando onde ele deve se estabelecer e onde deve ser subtraído”.

A falta de um delineamento claro entre o interesse público e o privado esteve presente no processo que deu origem à Caixa Seguros. O negócio que fez da Caixa Econômica acionista minoritária da empresa remonta o período das grandes privatizações no Brasil. Em 2000, a Caixa Seguros S.A. ainda era conhecida como Sasse, sigla para Companhia Nacional de Seguros Gerais, e era controlada pelo banco público, com os mesmos 48%, e pela Funcef, o fundo de pensão dos funcionários da Caixa Econômica Federal, que detinha 50,75% das ações. O controle do Funcef é dividido entre trabalhadores e diretoria do banco. Em caso de impasse, o voto de Minerva é da Caixa.

A compradora das ações da Funcef foi a empresa francesa CNP Assurances, que continua sendo acionista majoritária da Caixa Seguros. A transação aconteceu em fevereiro de 2001, alcançando o preço de R$ 1,065 bilhão. Na época, a Federação Nacional dos Advogados do Pessoal da Caixa Econômica Federal e o Sindicato dos Bancários de São Paulo, Osasco e Região questionaram a transação na Justiça Federal, alegando que a Sasse pertencia à Funcef e, por isso, era indiretamente controlada pela União. A venda da Sasse, portanto, deveria cumprir os procedimentos de uma privatização. Mas prevaleceu o entendimento de que o fundo de pensão não era estatal. Por fim, não precisou haver um leilão e o banco público passou a ter como sócia a empresa francesa.

De acordo com dados disponíveis no site da ANS, em fevereiro, a seguradora tinha 3.383 beneficiários. No mesmo mês, uma matéria do Valor Econômico ouviu fontes oficiais e divulgou que o objetivo da empresa era chegar a 2015 com meio milhão de beneficiários. Como operadora médico-hospitalar, a Caixa Seguros Saúde comercializa seguros de saúde na segmentação de assistência médica somente para pessoas jurídicas, incluindo pequenas, médias e grandes empresas. Na segmentação odontológica, os produtos são vendidos também para pessoas físicas. A venda dos seguros está intimamente ligada à estrutura operacional da Caixa Econômica. Os gerentes das agências do banco público são incentivados a ofertar os seguros para os clientes.

“A Petrobrás é uma empresa pública, com participação de capital público, mas, ainda sim, ela é por definição uma empresa. O governo é o maior detentor de ações da Petrobrás? Sim, mas isso faz parte do nosso modelo de capitalismo, em que o governo é parceiro de empresas privadas em vários negócios. E essas organizações, como os bancos públicos e a Petrobrás, se comportam como as outras empresas se comportam no mercado”, situa Maria Angélica Borges dos Santos, pesquisadora da Escola de Governo em Saúde da Escola Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca (ENSP/Fiocruz).

Financeirização

Nesse sentido, a pesquisadora localiza a entrada da CEF no ramo dos seguros como parte de um processo recente no país chamado financeirização da saúde. “É da natureza dos bancos trabalharem em três negócios: empréstimos, aplicações e, cada vez mais, venda de seguros. Vivemos em uma sociedade de risco em que os seguros são um produto com um mercado enorme. E quais riscos com mais valor de venda? Vida, residência, carro e saúde. Isso nos diz que a saúde agora é um produto associado a essa indústria de riscos, que faz parte do portfólio dos bancos, por isso, não vejo a entrada da Caixa como uma inflexão e, sim, como mais uma expressão desse fenômeno geral de financeirização da economia e da saúde”, diz.

A Caixa Seguros Saúde tem o controle dividido pela Caixa Seguros, com 75% do capital, e pela Tempo Assist, com 25%. A Tempo Assist se apresenta em seu site como uma empresa de capital aberto listada no Novo Mercado da BM&FBovespa. Segundo Maria Angélica, essa associação é característica da financeirização. “Para oferecer o seguro de saúde, a Caixa associou-se a uma administradora de saúde capitalizada por meio de ações na Bolsa, uma sociedade anônima. E, nesse ponto, ela está cumprindo um link que é típico da financeirização”.

A financeirização da saúde tem vários efeitos no modo como as pessoas acessam, pagam e são satisfeitas em suas necessidades pelos serviços que contratam. Um dos mais imediatos tem relação com a abertura de capital das empresas, que passam a ser sociedades anônimas com ações na Bolsa de Valores. “A empresa com ações na Bolsa tem um compromisso claro com o seu acionista, que quer receber retorno do investimento. Tanto faz se o negócio é a venda de borracha ou saúde”, explica a pesquisadora. Segundo ela, essa característica cria uma distorção no mercado de saúde, já distorcido por natureza por não ser baseado no desejo do consumidor. “Na prática, grande parte da demanda por serviços de saúde não é uma livre escolha das pessoas, mas fruto da urgência. Tradicionalmente nesse processo havia uma primeira intermediação entre a pessoa e sua necessidade de atenção em saúde, que era o profissional de saúde. Em seguida, entrou outra intermediação: os planos de saúde. Com as empresas abrindo capital, temos também os acionistas. Aquela relação direta entre médico e paciente, em princípio muito mais próxima da defesa dos interesses do paciente, fica cada vez mais distante. Nessa cadeia de intermediários, onde está o compromisso?”, provoca.

Outro efeito da financeirização é a concentração do mercado. Fausto Pereira dos Santos, ex-diretor-presidente da ANS, explica que não há aumento no número de operadoras. “As operadoras estão ficando muito grandes, elas têm comprado umas às outras. Está havendo um processo de concentração. A Amil saiu de 600 mil para mais de três milhões de beneficiários, a Bradesco também tem hoje mais de três milhões, a Unimed, mais de um milhão. Hoje, menos de 40 operadoras tem mais de 60% do mercado”, afirma.

De acordo com a pesquisadora da ENSP, o fato já chamou a atenção do Conselho Administrativo de Defesa Econômica (Cade), autarquia vinculada ao Ministério da Justiça que atua na fiscalização, prevenção e apuração de abusos de poder econômico. “A financeirização na saúde é grave, não é um fenômeno periférico. O fato de o Cade começar a ver concentração é sintomático. A tendência é outras empresas seguirem muito rapidamente esse caminho, criando um mercado cada vez mais oligopólico, que é o que aconteceu nos EUA na década de 1990”.

Regulação

Para o ex-presidente da ANS, a grande questão da regulação no Brasil continua sendo definir qual é o papel do setor privado no sistema de saúde. “A Constituição fala de um Sistema Único, de diretrizes e responsabilidades. No entanto, a Lei Orgânica [lei 8.080, de 1990] é restrita em alcance porque fala de um sistema público de saúde, próprio ou contratado, e não aborda ou avança na questão da regulação do setor privado, na definição de responsabilidades e papéis”. Para ele, o resultado é que essa conformação cria, na prática, dois segmentos incomunicáveis entre si. “O segmento público é acompanhado, regulado, organizado pela Lei Orgânica, enquanto que o privado ficou sem nenhum tipo de regulação por parte do Estado”.

Em 1998, com a promulgação da lei 9.656, conhecida como Lei Geral dos Planos, a situação não foi resolvida. “A lei dos planos é endógena. Foca em como o plano deve funcionar, qual é a capacidade econômica que uma operadora deve ter para vender plano de saúde, o que o plano precisa cobrir. De novo a legislação não falou do papel do privado na conformação de um sistema, de como deve se dar a relação entre o público e o privado, das responsabilidades. A exceção é o artigo 32, que prevê que as operadoras devem ressarcir o SUS quando seus beneficiários forem atendidos pelo sistema público, mas isso é muito pouco quando imaginamos o volume e a dimensão que o privado tem hoje no sistema de saúde brasileiro. Continuamos tendo um vazio jurídico na relação público-privado no Brasil”, expõe Fausto.

Para ele, a responsabilidade das empresas que operam livremente no setor deveria ser no sentido da integralidade do processo da assistência do beneficiário. “Elas não atuam na assistência farmacêutica e na questão da promoção da saúde, por exemplo. Em algumas cidades, mais da metade da população é beneficiária de planos e várias ações como vigilância da mortalidade materna e regulação da urgência parecem não fazer parte do mundo das operadoras, que ainda em grande parte atuam apenas como intermediadoras econômicas, não são responsáveis pela saúde do conjunto dos beneficiários a elas vinculados. Não dá para ser operador do setor saúde como um intermediador econômico que recolhe um conjunto de recursos de uma parte da sociedade e contrata um conjunto de prestadores de serviços como se essa relação fosse de consumo. A saúde é muito mais ampla do que isso”, enfatiza.

Fausto acrescenta que além de rever a questão da disputa pela rede prestadora e do funcionamento paralelo, um novo marco regulatório para o setor também deveria se posicionar em relação à renúncia fiscal. “Precisamos cortar alguns vasos comunicantes, como a isenção do Imposto de Renda. São questões que fazem com que hoje o setor público financie uma parte do mercado privado. Isso aumenta a iniquidade na medida em que o conjunto da população brasileira arca com a renúncia, que favorece um conjunto menor de pessoas”.

Para Maria Angélica, não existe hoje espaço político para a discussão de um marco regulatório amplo. “A discussão de regulação hoje ainda está muito técnica e incipiente. A pauta atual da ANS hoje está muito centrada na qualidade da prestação de serviços, na resolução das disputas entre prestadores e operadoras, que são discussões posteriores à regulação. O tema do marco regulatório, pensado de forma ampla, ainda não está na agenda nem da ANS nem do governo federal”. A opinião é compartilhada por Mário Scheffer: “Nos últimos anos, são vários exemplos e indícios de que cada vez mais o governo está abdicando do compromisso com o SUS universal e público como meta constitucional. Estamos assistindo a uma reforma do sistema de saúde sem nenhuma discussão do impacto disso. Podemos estar caminhando para a hegemonia do setor privado e a discussão se faz necessária até para avaliar a viabilidade de reverter ao público tudo o que está sendo entregue para o privado, porque podemos chegar a um ponto em que isso seja irreversível”.

quinta-feira, 17 de maio de 2012

Desigualdades injustas: o contradireito à saúde.

Nesse artigo científico, a pesquisadora Sonia Fleury, da Fundação Getúlio Vargas, analisou dados coletados em hospitais públicos do Rio de Janeiro a fim de identificar fatores percebidos como condicionadores de desigualdades no acesso e utilização dos serviços de saúde. "Os resultados apontam a precariedade material das condições de atendimento, associadas a situações de discriminação social e a práticas de uso de relações pessoais para ter acesso aos serviços públicos, como formas de materialização do contradireito à saúde". Confira!
RESUMO

Na Constituição Federal de 1988, foi assegurado o direito universal à Saúde e criado o Sistema Único de Saúde- SUS. Convivemos hoje com uma avançada construção legal que assegura o bem-estar da população por meio de políticas universais, ao lado de uma institucionalidade precária. O objetivo deste trabalho é analisar os dados de pesquisa realizada em hospitais públicos do Rio de Janeiro que utilizou diferentes técnicas qualitativas a fim de identificar os fatores percebidos como condicionadores de desigualdades injustas no acesso e utilização dos serviços de saúde. Os resultados apontam a precariedade material das condições de atendimento, associadas a situações de discriminação social e a práticas de uso de relações pessoais para ter acesso aos serviços públicos, como formas de materialização do contradireito à saúde.

Palavras-chave: direito à saúde; desigualdades injustas; discriminação social.
Introdução

A partir da Constituição Federal de 1988, os direitos sociais foram inscritos na condição de cidadania sendo assegurados de forma universal pelo Estado. Em resposta ao forte movimento social que associou a luta pela democracia com a bandeira do Direito Universal à Saúde, foi criado o Sistema Único de Saúde- SUS. A originalidade do projeto do Estado de Bem-Estar Social brasileiro deveu-se à criação de formas de gestão compartilhada e de controle social por parte da sociedade civil e de arenas de pactuação das relações interinstitucionais entre os três níveis governamentais. Além disso, buscou conjugar a existência de sistemas públicos universais de proteção social, organizados como um modelo de seguridade social abrangente, com programas e políticas direcionados para a promoção e inclusão dos grupos mais vulneráveis.

A efetivação do direito à atenção integral à saúde passa, assim, a depender do processo de institucionalização do SUS, em termos legais e normativos e com relação à construção dos sistemas locais de saúde. E o exercício do direito à saúde condiciona-se à capacidade das unidades de saúde de assegurar a qualidade do atendimento e a satisfação das necessidades dos usuários.

Apesar do enorme avanço representado por este desenho constitucional para as políticas sociais nessas duas décadas de sua vigência, essas políticas têm sofrido inúmeras contingências. A institucionalização dos sistemas universais e das políticas voltadas para a inclusão social teve que se enfrentar com um ambiente macroeconômico de ajuste fiscal e estabilização monetária que implicou contenção dos recursos financeiros destinados às políticas sociais, em especial com relação às políticas universais. Essas restrições financeiras, em um momento de expansão dos direitos sociais, implicaram deterioração dos recursos materiais e humanos existentes na rede pública e na falta de novos investimentos, imprescindíveis para assegurar a exigibilidade dos direitos e a promoção da inclusão social. Tal situação afetou negativamente a base material como também a cultura institucional nas instituições públicas.

A sociedade brasileira convive hoje com uma avançada construção legal que assegura o bem-estar da população por meio de políticas inclusivas e universais, ao lado de uma institucionalidade precária que não garante o acesso ou a utilização de serviços de qualidade na medida das necessidades da cidadania.

O objetivo deste trabalho é analisar os dados de pesquisa qualitativa realizada em hospitais públicos do município do Rio de Janeiro com usuários, profissionais e gestores a fim de identificar se existem, na percepção desses agentes, condições que impossibilitem o exercício do direito e/ou fatores que favoreçam a existência de desigualdades injustas no acesso e utilização dos serviços de saúde em tais estabelecimentos.

Determinantes sociais de desigualdades injustas

A preocupação com a equidade em saúde é fundada no princípio ético da justiça distributiva e cada vez mais associada à consideração do direito à saúde como parte dos direitos humanos (Braveman, 2006). A discussão acerca dos determinantes sociais da saúde é constitutiva do campo da medicina social ou saúde coletiva, pois, desde o século XIX, os precursores desse campo já demonstraram a forte relação existente entre as condições sociais em que as pessoas vivem e sua saúde. Essa trajetória contou com iniciativas institucionais como a própria criação da Organização Mundial da Saúde em meados do século XX e os programas de medicina comunitária desenvolvidos nas duas décadas seguintes, que culminaram com o compromisso assumido na Assembleia da OMS de 1976 de alcançar "Saúde para todos no ano 2000". No ano seguinte, a Conferência de Alma-Ata assumia que o meio para realizar esse propósito era a adoção da estratégia de Atenção Primária em Saúde (APS). No entanto, essa estratégia de atenção à saúde deveria se articular dentro de uma abordagem abrangente, que tivesse em conta as causas sociais, econômicas e políticas dos problemas de saúde.

A ênfase nos determinantes sociais da saúde foi arrefecida nos anos posteriores à Declaração de Alma-Ata, tanto pelo desvirtuamento da redução proposta da APS em uma atenção de baixo custo e baixa eficácia quanto pela avassaladora reviravolta dos anos 1980 e 1990, em que o predomínio do neoliberalismo reduziu a ação pública à provisão focalizada de pacotes de atenção básica para os mais vulneráveis. A revalorização dos determinantes sociais da saúde começa a partir da constatação do fracasso das políticas focalizadas em reduzir a pobreza e as desigualdades.

O lançamento das Metas de Desenvolvimento do Milênio em 2000 inaugura essa retomada que se consolida com a criação da Comissão sobre Determinantes Sociais da Saúde- CSDH pela OMS. Com base em sólidos trabalhos de autores como Whitehead (1992) e Marmot e Wilkinson (2003), a CSDH lança o desafio de superar as iniquidades em saúde em uma geração, e o fundamenta:

Social justice is a matter of life and death. It affects the way people live, their consequent chance of illness, and their risk of premature death.

Within countries there are dramatic differences in health that are closely linked with degrees of social disadvantage. Differences of this magnitude, within and between countries, simply should never happen.

These inequities in health, avoidable health inequalities, arise because of the circumstances in which people grow, live, work, and age, and the systems put in place to deal with illness. The conditions in which people live and die are, in turn, shaped by political, social, and economic forces. (Organización Mundial de la Salud, 2008)

Pode-se dizer que a CSDH avançou ao reunir evidências sobre as relações entre as desigualdades em saúde e as desigualdades sociais, posicionando o tema dos determinantes sociais e da equidade no debate mundial sobre a saúde, contudo revelou-se insuficiente no avanço da compreensão da origem dos problemas. Ignorou as relações de poder que moldam os determinantes sociais, associando a responsabilidade das mortes das pessoas às desigualdades, e não aos que se beneficiam das alianças neoliberais que causam as desigualdades (Navarro, 2009), assim como desconsiderou o papel de atores transnacionais, culminando com recomendações políticas abstratas (Arellano, Escudero, & Carmona, 2008).

Outras lacunas são apontadas em relação ao alcance explicativo dos estudos que buscam reunir evidências e associações entre fatores determinantes e condições de saúde, pois reproduzem as limitações do paradigma dominante na epidemiologia e na saúde pública (Arellano, Escudero, & Carmona, 2008; Passos, 2009).

Venkatapuram, Bell e Marmot (2010) apontam a relação entre a saúde e os direitos humanos. Consideram que a CSDH demonstra a diferença social que afeta a saúde nos países ricos e pobres como resultado da forma de organização da sociedade através das políticas e práticas econômicas e sociais, mas preocupa-se secundariamente com a distribuição social da saúde e da doença, enfocando o controle de doenças e mortalidade por intervenções médicas e o investimento à saúde para o crescimento econômico.

Para os autores, melhorar a saúde e a equidade na saúde como uma questão de justiça social implica a promoção, proteção e cumprimento dos direitos humanos, incluindo o direito à saúde. E, nesse sentido, um papel mais central dos direitos humanos, com vistas à integração das suas análises com a epidemiologia social e medicina social, faz-se necessário. Um dos caminhos propostos é a construção de pontes de análises das causas e distribuição dos problemas de saúde e mortalidade, com o raciocínio ético sobre a justiça social. A partir desse raciocínio ético, como a consideração de que as desigualdades injustas em saúde podem ser evitáveis através de meios razoáveis, podem surgir argumentos para o avanço dos direitos e outros tipos de ação social (Venkatapuram, Bell, & Marmot, 2010).

No Brasil, foi também criada uma Comissão Nacional de Determinantes Sociais da Saúde- CNDSS, cujo relatório apontou a persistência de inúmeras iniquidades em saúde, com base em uma sólida produção acadêmica. As evidências apontam que as chances de utilização dos serviços de saúde estão fortemente associadas a variáveis sócio-econômicas, tais como raça, anos de estudo, ocupação, acesso a serviços públicos (Neri & Soares, 2002). Comparações entre pesquisas de amostra domiciliar ocorridas em 1998 e 2003 demonstram a persistência de desigualdades sociais no acesso aos serviços de saúde, sendo a renda o maior fator explicativo da restrição ao acesso. No entanto, existem padrões regionais diferenciados de desigualdades, sendo que no Nordeste este se associa com a renda e escolaridade, enquanto no Sul a relação mais forte se dá com a escolaridade (Travassos, Oliveira, & Viacava, 2006). Diagnósticos nacionais sobre situação de educação, saúde, renda e emprego apresentam fortes iniquidades em termos de gênero e raça. Eles indicam a situação de inferioridade de negros e, em especial, das mulheres negras, cujo baixo nível educacional resulta em enorme desigualdade em relação ao emprego e renda, como afirma estudo do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (2008): em 2007, enquanto as mulheres brancas ganhavam, em média, 62,3% do que recebiam os homens brancos, as mulheres negras ganhavam 67% do que recebiam os homens negros e apenas 34% do que recebiam os homens brancos.

Em um survey sobre discriminação racial e preconceito no Brasil, foi encontrada uma tendência à redução do preconceito, em especial dos graus de preconceitos forte e médio, sendo os mais baixos graus encontrados entre os jovens (Venturi & Bokani, 2004). Esses dados mostram a importância da abertura do debate sobre o tema, embora essa retórica esteja distante da realidade retratada nos indicadores socioeconômicos.

Outros estudos sobre o acesso e utilização dos serviços de saúde demonstram que as mulheres que se identificavam como pretas ou pardas tiveram menos acesso a exames de Papanicolau (Amorim, Barros, Cesar, Carandina, & Goldbaum, 2006) bem como à assistência ao pré-parto e ao parto (Leal, Gama, & Cunha, 2005). Com relação à utilização, esse estudo mostra que as mulheres negras tiveram menos acesso à escolha e aos serviços de qualidade e também receberam menos anestesia durante o parto.

Alguns estudos sobre iniquidades no acesso e utilização dos serviços do SUS introduzem a categoria racismo institucional para explicar essas diferenças, definindo-o como o fracasso coletivo de uma organização para prover um serviço apropriado e profissional para as pessoas por causa de sua cor, cultura ou origem étnica (Kalckman, Santos, Batista, & Cruz, 2007).

Enquanto jovens negros relatam vivências de discriminação em espaços públicos (Cecchetto & Monteiro, 2006), a identidade sexual também é apontada como fator de discriminação, representando um obstáculo ao acesso aos serviços de saúde (Lacerda, Pereira, & Camino, 2002).

A importância da variável oferta dos serviços de saúde na produção dessas associações foi pesquisada por Castro, Silva e Vicentin (2005) com relação às internações hospitalares. O estudo conclui que 97 a 99% da variação na chance de internação são explicadas por características do indivíduo, sendo que somente 1 a 3% da variação do uso das internações pode ser atribuído a diferenças na oferta.

Esses dados nos levam a formular o problema de nossa investigação em termos das condições e práticas que, mesmo na existência de sistemas públicos universais, reproduzem nos serviços condições diferenciais de acesso e utilização de bens públicos, gerando injustiças e negação dos direitos de cidadania.



Método

A maior parte dos estudos sobre a interação entre o usuário e os serviços de saúde situa-se no campo da epidemiologia e utiliza os modelos analíticos de acesso e utilização mais conhecidos. O acesso apresenta-se como uma categoria privilegiada de análise, pois é na unidade de relação do usuário com os serviços de saúde que se expressa concretamente o direito à saúde no cotidiano das pessoas (Giovanella & Fleury, 1996). Os estudos sobre o tema utilizam comumente a conceituação de acessibilidade formulada por Frenk (1985, citado por Giovanella & Fleury, 1996), a partir de Donabedian, associando-o à disponibilidade de recursos de atenção à saúde em determinado local e tempo, bem como as características do recurso que facilitam ou dificultam o seu uso por parte dos clientes potenciais.

Um clássico na análise da utilização dos serviços de saúde é o modelo comportamental de Andersen e Newman, que identifica os fatores explicativos para a utilização de serviços de saúde: os fatores predisponentes correspondem a um conjunto de variáveis demográficas, socioculturais, cognitivas e de atitudes postuladas como fatores pessoais que identificam o grupo de risco potencial, mas não podem ser modificadas por meio de políticas de saúde; os fatores capacitantes consistem nos fatores organizacionais e financeiros que afetam a capacidade do indivíduo para acessar um dado serviço; e as necessidades de saúde representam a percepção individual da necessidade de cuidado ou o diagnóstico por profissionais de saúde (Fleury, 2000; Travassos & Castro, 2008; Travassos & Martins, 2004).

No estudo que desenvolvemos procuramos dar ênfase às desigualdades injustas no acesso e utilização dos serviços públicos de saúde, buscando identificar a ocorrência do fenômeno da discriminação, a fim de contribuir para uma análise mais voltada ao enfoque do direito à saúde, para além da abordagem epidemiológica, comum nos estudos sobre o acesso e utilização. É, portanto, no campo dos direitos fundamentais à saúde que se insere a nossa linha de investigação, buscando identificar os fatores percebidos como condicionadores de desigualdades injustas no acesso e utilização dos serviços de saúde.

Tomamos como referência estudos sobre o exercício do direito à saúde e os estudos de Foucault (1977) nos quais afirma que, enquanto a ordem política cria laços jurídicos igualitários entre os cidadãos, as disciplinas operam um contradireito, pois produzem, por meio de laços "privados" entre os indivíduos, assimetrias insuperáveis. Ao contrário de uma contradição, Foucault (1977) vê nessa convivência paradoxal uma imprescindível complementaridade:

A forma jurídica geral que garantia um sistema de direitos em princípios igualitários era sustentada por esses mecanismos miúdos, cotidianos e físicos, por todos esses sistemas de micropoder essencialmente inigualitários e assimétricos que constituem as disciplinas. E se, de uma maneira formal, o regime representativo permite que direta ou indiretamente, com ou sem revezamento, a vontade de todos forme a instância fundamental da soberania, as disciplinas dão, na base, garantia da submissão das forças e dos corpos. As disciplinas reais e corporais constituíram o subsolo das liberdades formais e jurídicas. (p. 195)

Portanto, nossa análise dos processos de discriminação e negação dos direitos da cidadania será feita à luz dos seguintes pressupostos teóricos:

a) Os agentes sociais são distribuídos no espaço social geral, na primeira dimensão, de acordo com o volume total de capital que eles possuem e, em segunda dimensão, de acordo com a estrutura de seu capital, isto é, o peso relativo das diferentes espécies de capital, econômico e cultural, no volume total de seus ativos (Bourdieu, 1989).

b) O conceito de Sartre de "serialidade" pode ser útil para teorizar sobre o posicionamento estrutural que condiciona as possibilidades de agentes sociais sem que com isto constitua suas identidades. Posições na estrutura social - de classe, gênero, raça, e idade - condicionam de forma sequencial as vidas dos indivíduos ao viabilizar ou constranger suas possibilidades de ação, e assim conformar relações de superioridade (Young, 2000).

c) A particularidade nas formas de desrespeito, como as existentes na privação de direitos ou na exclusão social, não representa somente a limitação violenta da autonomia pessoal, mas também sua associação com o sentimento de não possuir o status de um parceiro da interação com igual valor, moralmente em pé de igualdade. Para o indivíduo, a denegação de pretensões jurídicas socialmente vigentes significa ser lesado na expectativa intersubjetiva de ser reconhecido como sujeito capaz de formar juízo moral; nesse sentido, de maneira típica, vai de par com a experiência da privação de direitos uma perda de auto-respeito, ou seja, uma perda da capacidade de ser referir a si mesmo como parceiro em pé de igualdade na interação com todos os próximos (Honneth, 2003, pp. 216-217).

Assim, para verificar a ocorrência da percepção de negação do direito à saúde e existência de desigualdades injustas no acesso e utilização dos serviços públicos de saúde, bem como analisar a lógica que orienta os atores envolvidos nestas relações, foi formulado um sistema de hipóteses centrado sobre os seguintes eixos: Formação Profissional, Cultura Institucional, Gestão e Usuários. As hipóteses gerais de cada eixo foram:

1) A formação profissional atribui poder aos profissionais, o que implica hierarquização: (a) no interior das equipes e (b) no atendimento.

2) A cultura institucional não privilegia a noção de atendimento como bem público e exercício de direitos.

3) As condições de gestão de serviços afetam as condições de atendimento.

4) As características dos usuários e dos profissionais confrontadas na dinâmica de uma determinada relação social interferem nas condições de atendimento.

Essas hipóteses e suas derivadas em cada eixo foram submetidas e reformuladas a partir de uma consulta a informantes qualificados1, que também discutiram a seleção dos cinco hospitais públicos, um municipal e quatro federais, onde foi desenvolvido o estudo: Hospital da Lagoa, Hospital do Andaraí, Hospital Geral de Bonsucesso, Hospital Municipal Miguel Couto, Hospital dos Servidores do Estado. A escolha dos mesmos ocorreu em função das localizações geográficas, pois esse é um fator a ser considerado na análise da desigualdade no acesso/utilização dos serviços de saúde; e a opção por hospitais públicos devido ao pressuposto de que o direito à saúde não pode ser negado ou sofrer discriminação em uma unidade estatal responsável pela provisão de um bem público.

A entrada nos hospitais para realização das entrevistas foi precedida pela aprovação dos seus respectivos conselhos de ética e a pesquisa desenvolveu-se de acordo com os padrões prescritos pela Resolução 196/96 do Conselho Nacional de Saúde, concernentes ao envolvimento de seres humanos.

Para estudar a efetivação do direito à saúde e a sua negação através de práticas de discriminação social no atendimento hospitalar, utilizamos metodologia qualitativa com base, inicialmente, em observação participante nas emergências, setores médicos de média e alta complexidade e setores não médicos dos hospitais estudados com base em um roteiro de observação contendo indicadores de acesso/utilização dos serviços de saúde. Através das observações, registradas em diário de campo, foi possível uma aproximação da realidade vivenciada nos hospitais e o ajuste dos roteiros das entrevistas. Posteriormente, realizamos 285 entrevistas semiestruturadas, estando assim distribuídas: 190 com os usuários (e/ou acompanhantes) dos serviços de saúde, com diferentes características e perfis, 90 com os profissionais envolvidos diretamente/ indiretamente com o cuidado em saúde, e 5 entrevistas com os gestores dos hospitais. A escolha dos sujeitos e o quantitativo ocorreram, respectivamente, em função dos critérios de acessibilidade e saturação das respostas, isto é, quando novas entrevistas já não trazem material adicional. Outras duas técnicas de pesquisa, realizadas fora do contexto hospitalar, foram adicionadas, sendo uma delas a promoção de um grupo focal com mulheres negras que atuam como lideranças comunitárias com interface com a área de saúde. A partir dessa técnica, foi possível apreender, através das falas e experiências, a frequência e as situações de discriminação vivenciadas pelas participantes nos serviços de saúde, seus tipos e lógicas, bem como as formas de reações a estas situações percebidas como discriminadoras. A outra técnica consistiu em uma oficina de dramatização - com o método do Teatro do Oprimido, desenvolvido por Boal (2005) – envolvendo um grupo diversificado de profissionais que atuavam como internos em hospitais públicos, não necessariamente os estudados. Através da dramatização eles puderam expressar suas vivências de discriminação, não facilmente captadas com outros instrumentos que apelam mais à racionalidade que às emoções.

O estudo sobre discriminação envolve aspectos culturais que dificultam a expressão de suas vivências. Alguns autores (Abric, citado por Menin, 2006) denominaram zona muda a estes elementos da representação social que não são verbalizáveis e apreendidos pelos métodos tradicionais de pesquisa. Por essa razão, foi necessário combinar diferentes técnicas de investigação de natureza qualitativa.

Resultados

Os discursos foram agrupados segundo o ator que o enuncia e alocado em categorias relativas aos grandes eixos – formação profissional, cultura institucional, gestão dos serviços e características dos usuários. Apresentaremos aqui os resultados finais do cotejamento dos discursos de diferentes atores nas várias situações estudadas.

Formação profissional

Os resultados indicam que a instituição hospitalar é altamente hierarquizada, com especial destaque para a posição do profissional médico na cúspide da hierarquia. As equipes profissionais ressentem-se dessa hierarquização, sendo que os níveis mais subalternos, como os profissionais de enfermaria, sentem-se ao mesmo tempo sobrecarregados e desvalorizados, reclamando da falta de reconhecimento do seu trabalho. Os profissionais também sentem que a hierarquização afeta o seu trabalho na medida em que os mais bem situados na hierarquia podem passar aos que estão abaixo os casos que são indesejados. A hierarquização também se dá a partir de variáveis como idade ou tempo de exercício do trabalho na instituição.

Para os usuários, essa hierarquização não parece incomodar, na medida em que compartilham valores comuns em relação à estratificação dos profissionais. No entanto, o uso de uma linguagem inacessível aos pacientes, em especial da parte dos médicos, é vista como uma forma discriminadora de subalternização dos usuários e de discriminação em relação a suas necessidades de reconhecimento.

Diferentemente do pressuposto em nossas hipóteses, não há uma maior proximidade com os usuários dos profissionais situados nos níveis hierárquicos mais baixos e/ou algumas formações mais humanísticas. Ao contrário, os maus tratos e negação dos direitos dos usuários por profissionais encarregados da limpeza evidenciam a necessidade destes se colocarem de forma superior, aproximando-se assim aos profissionais.

Algumas formações profissionais mostraram-se mais preocupadas com a necessidade de compreender os problemas dos usuários e suas linguagens. Por um lado, os enfermeiros demonstraram ser essa compreensão uma necessidade da sua prática profissional, embora isso não representasse a capacidade de minimizar os frequentes conflitos com os pacientes. Por outro lado, os assistentes sociais demonstraram uma maior aproximação com os usuários, que se justificaria pelo próprio lugar institucional que ocupa essa categoria. No entanto, essa proximidade na escuta do usuário não foi percebida pelos mesmos como efetiva, já que eles percebem o profissional da área de assistência, na maior parte das vezes, como incapaz de atender a suas demandas.

A posse e utilização de recursos de poder exteriores à relação de atendimento como forma de redução da vulnerabilidade do indivíduo na hierarquia ficou fortemente manifesta em várias formas discursivas, sejam elas o conhecimento do funcionamento do serviço, as relações pessoais com autoridades, o uso de símbolos de poder como jalecos, e até mesmo o recurso último à violência simbólica.

Cultura institucional e gestão

Formalmente, há um consenso generalizado em relação ao atendimento nos hospitais públicos como direito do cidadão e dever do Estado. No entanto, também é consensual a aceitação de que as precárias condições materiais e de exercício profissional constituem-se em limite justificador da incapacidade de tornar este direito exigível. A naturalização da precariedade nos serviços públicos é compartilhada tanto pelos profissionais quanto pelos usuários, expressando-se concretamente na afirmação: "serviço público é assim mesmo".

A percepção do seu trabalho como uma missão benfeitora é difundida entre os profissionais. Substitui-se dessa maneira a noção formal do dever, inerente à cidadania, pela compaixão, que remete mais propriamente à matriz relacional filantrópica e assistencialista. A compreensão da prática profissional como um favor e da ação estatal como uma benesse contraditam a afirmação do direito à saúde como direito de cidadania. Os próprios usuários enunciam noções contraditórias de direito e de solidariedade, afirmando a boa vontade dos profissionais como um favor. Essa lógica, ao invés de negar a noção de bem público, requalifica-a, entendendo que o SUS é uma atenção pobre para os pobres, e o direito à saúde é um favor da parte dos que atendem.

A inexistência de memória institucional relativa à punição de maus tratos e discriminações por parte da equipe profissional reproduz uma cultura institucional favorável à impunidade, na qual são reforçadas ameaças apenas quando estes atos partem dos usuários em relação aos funcionários. Mesmo a reivindicação dos usuários de que são cidadãos que pagam impostos e devem ser respeitados em seus direitos, utilizada em situações de conflito, é percebida pelos profissionais como um desrespeito.

A aceitação do jeitinho como mecanismo predominante de acesso aos serviços públicos é bastante consensual, entre todos os atores entrevistados. Alguns contrapõem essa prática discriminada à maior transparência nos processos internos, o que reduziria a força deste elemento, que, por não ser igualmente acessível a todos, aumenta as possibilidades de produzir injustiças.

A inexistência de canais de canalização das reivindicações dos usuários, ou seu desconhecimento, aumenta a vulnerabilidade destes às situações discriminadoras. Da mesma forma, a falta de preparo técnico e de formalização de regras no processo de atendimento aumenta o poder discricionário de todos os profissionais que têm contato com o usuário, em especial aqueles envolvidos na triagem.

Com relação à gestão, os dados foram insuficientes para identificar diferentes modalidades de gestão e seu impacto sobre práticas discriminadoras. No entanto, observamos que existe uma surpreendente distância entre o discurso dos gestores e dos demais atores, sejam eles profissionais ou usuários. A ênfase dada pelos gestores, por exemplo, em programas de humanização e promoção profissional, não encontrou ressonância entre os demais discursos.

Características dos usuários

A existência de características estigmatizantes aumenta fortemente a probabilidade de que o usuário seja discriminado, em especial se elas se apresentarem conjuntamente em um mesmo indivíduo. A menção frequente ao acrônimo PIMBA (pobre, indigente, mendigo, bêbado, atropelado) é prática corriqueira entre os profissionais e denota claramente a rejeição a esse tipo de usuário.

Para alguns gestores e profissionais, a principal forma de discriminação é a condição socioeconômica. No entanto, ela se soma às demais mencionadas, gerando séries de atributos que estigmatizam e provocam atitudes preconceituosas.

Algumas formas de discriminação como o racismo, por serem atualmente mais debatidas, tornam-se mais veladas, dificilmente verbalizadas. No entanto, são explícitas discriminações de gênero, por práticas religiosas de cultos africanos, por orientação sexual divergente da norma, por comportamentos considerados moral ou socialmente condenáveis, tais como praticar o aborto ou engravidar sucessivas vezes, mesmo sendo pobre. A probabilidade de sofrer algum tipo de discriminação aumenta quando se trata de mulher, negra, pobre, vítima de violência. Pacientes com algum tipo de enfermidade que provoca alguma forma de abominação do corpo, tal como odores ou aspecto asqueroso, têm seu atendimento dificultado. Essas formas de discriminação existem desde os profissionais para com os usuários, mas também entre os próprios usuários.

Os usuários têm enorme dificuldade de se colocar no lugar do discriminado. Relatam situações de preconceito e discriminação, mas esse lugar é sempre do outro, nunca de si mesmo. Os preconceitos também se apresentam desde os usuários para com os profissionais, seja por raça, gênero ou idade. Só em condições especiais, quando se trata de lideranças que se organizam para lutar contra a discriminação, é que vamos encontrar um discurso que assume a consciência tanto dos direitos negados quanto das práticas discriminadoras na atenção à saúde. Nesses casos, fica claro que a conscientização e a organização do grupo tornam-se um recurso de poder importante para fazer frente a práticas discriminadoras.

O fato de serem submetidos a dolorosas peregrinações por várias unidades da rede pública antes de serem atendidos não é percebido como discriminação, embora seja considerado desrespeitoso. Ao contrário, ela tende a ter um efeito inverso, pois quando o acesso é alcançado, o usuário sente-se privilegiado e pouco questiona as condições de sua utilização do sistema.

Conclusão

A precariedade das condições de funcionamento dos hospitais se torna um dos fatores fundamentais de concretização do contradireito à saúde. A banalização das injustiças provocadas pela inexistência das condições necessárias ao funcionamento em padrões de qualidade torna os profissionais e o usuário reféns da precariedade, o que se expressa no caso do usuário no sofrimento das peregrinações de uma a outra unidade e no caso dos profissionais, na impossibilidade de atender à demanda com qualidade.

O sentimento de ser desrespeitado na sua busca por atenção tem duas consequências cruciais para a negação da cidadania. Por um lado, o desrespeito e a negação do direito ao acesso impedem que o indivíduo se sinta partícipe de uma comunidade política de iguais. Por outro lado, transmuta o exercício do direito em favorecimento.

Outro fator determinante da persistência de desigualdades injustas na atenção hospitalar é a cultura prevalecente que considera as relações pessoais como critério de acesso aos serviços públicos, como mencionado pelos entrevistados: o QI (quem indica). Estudiosa da cultura política brasileira, Barbosa (2006) aponta o jeitinho como expressão na qual a aceitação generalizada da preponderância da lógica relacional sobre os critérios formalmente definidos de acesso impede que as regras formais sejam a garantia necessária da igualdade requerida pela cidadania (Da Mata, 1983).

Isso tem como consequência impedir que o processo decisório seja transparente, o que acarreta danos às praticas administrativas e, por outro lado, reforça o poder discricionário dos profissionais e atendentes que estão envolvidos com a decisão de negar ou aceitar o paciente. A inexistência de transparência e a inobservância de regras formais partilhadas pelos dois grupos fundamentais, dos profissionais e dos usuários, tornam o acesso um beneficio a ser alcançado na dependência da sorte, das relações pessoais ou até mesmo do uso de recurso ao enfrentamento pessoal.

O aumento do poder discricionário daqueles que selecionam os pacientes a serem atendidos, além de personalizar relações que seriam de direito, permite que a seleção seja feita em base em critérios não formalmente definidos, o que aumenta a possibilidade de discriminação.

Por fim, isto gera um profundo sentimento de insegurança por parte dos usuários em relação à atenção à saúde. Ao contrário da noção de direito social que se fundamenta em uma relação de segurança garantida pelo poder público, o contradireito à saúde está imerso no sentimento de uma profunda insegurança e desamparo. Isto não quer dizer que a atenção hospitalar no SUS não se realize de forma eficaz e efetiva, mas não se materializa como um direito igualmente distribuído à cidadania.


Sonia Fleury é Doutora em ciência política, mestre em sociologia e psicóloga. Professora titular da Fundação Getúlio Vargas.

quarta-feira, 16 de maio de 2012

Gastos em Saúde crescem, mas Brasil continua abaixo da média do mundo.

Publicado em: 16/05/2012 09:34:17
O Estado de S. Paulo - 16/05/2012

Parcela do orçamento investida é inferior à média dos países africanos, aponta levantamento da OMS; mais da metade do dinheiro gasto na área vem do bolso do cidadão ( Assim fica muito difícil fazer um SUS de qualidade )!!!
O Brasil pode ser a sexta maior economia do mundo, mas em termos de gastos com a saúde, o governo brasileiro ainda se equipara à realidade africana e destina ao setor menos do que a média dos governos pelo mundo. Dados da Organização Mundial da Saúde (OMS) alertam que não faltam médicos no País. Ainda assim, a proporção de leitos é inferior à média mundial e comparável a vários países africanos. O Brasil é ainda um dos 30 países onde a população paga de seu próprio bolso mais de 50% dos gastos de saúde.

Os números mostram que, na última década, as autoridades brasileiras incrementaram o orçamento destinado aos serviços de saúde. Este incremento, no entanto, não é suficiente nem mesmo para que o País chegue ao patamar da média mundial. A distância entre o que se gasta no Brasil com a saúde e o que se gasta nos países ricos é ainda ampla.

Segundo a OMS, em 2000 o governo brasileiro destinava 4,1% de seu orçamento para a saúde. Dez anos depois, a taxa subiu para 5,9%. A média mundial é de 14,3% e a taxa brasileira chega a ser inferior à média africana. Do total que se gasta no País com a saúde, 56% vem do bolso dos cidadãos e não dos serviços do Estado. Apenas 30 de 193 países vivem essa situação. Em 2000, a taxa era ainda pior, com 59% dos custos da saúde vindo do bolso do cidadão. Desta forma, a taxa de 56% está distante da média mundial, de 40%. Nos países ricos, apenas um terço dos custos da saúde são arcados pelos cidadãos.

Em uma década, o governo triplicou o gasto por habitante. Mas ainda assim destina a cada brasileiro apenas uma fração do que países ricos destinam a seus cidadãos. No Brasil no ano de 2000, o governo destinava em média US$ 107 pela saúde de cada brasileiro por ano. Em 2009, ao final da década, a taxa havia sido elevada para US$ 320,00. O valor é inferior aos US$ 549,00 que em média um habitante do planeta recebe em saúde de seus governos.

Nos países europeus, os gastos médios dos governos com cada cidadão chega a ser dez vezes superior aos do Brasil. Em alguns casos, como Luxembrugo, gasta-se mais de US$ 6,9 mil por cidadão, quase 25 vezes o valor no Brasil. Na Noruega, o gasto é similar, enquanto a Dinamarca destina 20 vezes mais a cada cidadão em saúde que no Brasil. Mesmo na Grécia, quebrada e hoje sem governo, as autoridades destinam seis vezes mais recursos a cada cidadão que no Brasil. Os dados, porém, são do início da crise.

Governos como os da Romênia, Sérvia, Arábia Saudita ou Uruguai também destinam mais recursos por habitantes que no Brasil.
Outro dado preocupante: o País conta em média com 26 leitos para cada 10 mil pessoas. Os indicadores se referem ao período entre 2005 e 2011. 80 países tem um índice melhor que o do Brasil, que está empatado com Tonga e Suriname. A média mundial é de 30 leitos por cada 10 mil habitantes. Na Europa, a disponibilidade é três vezes superior a do Brasil.

Em termos de médicos, o Brasil vive uma situação mais confortável. Segundo a OMS, são 17,6 médicos para cada 10 mil habitantes, acima da média mundial de 14 por 10 mil. Mas ainda assim a taxa é a metade do número que se registra Europa. Já na África, são apenas dois médicos para cada 10 mil pessoas.

segunda-feira, 14 de maio de 2012

Em vez de saúde, negócios.

 
Publicado em: 14/05/2012
O Globo - 14/05/2012
Autor(es): Ligia Bahia

Neste ano, a incômoda sensação de pagar muito imposto e não dispor de serviços públicos suficientes e bons não se prolongou. De todo modo vai ficando cada vez mais evidente a importância da política fiscal para a privatização da saúde. Mesmo que para uma parte dos contribuintes a dedução seja encarada como uma espécie de bônus - para tirar da fila do Sistema Único de Saúde (SUS) quem pode pagar -, fica uma pulga atrás da orelha.

Da constatação que, quanto mais se pagar por assistência privada, maior será o abatimento, deduz-se que os incentivos fiscais podem contribuir para a formação de várias classes de assistência privada. Mas o impacto das medidas e expectativas para reduzir juros e expandir o crédito talvez tenha deixado os questionamentos sobre as disparidades entre a magnitude da arrecadação e o destino dos tributos para trás.

Temas eletrizantes e complexos como as tensões entre banqueiros e governo sobre os spreads e desoneração de setores produtivos, mesmo sem tradução fácil, se tornaram palpáveis. Os anúncios de redução de IPI nos preços estampados em qualquer loja de eletrodomésticos e a variedade de oferta de empréstimos são diretos e objetivos. A economia a pleno, médio ou até pouco vapor também mudou o rumo das conversas sobre saúde.

Em tempos bicudos só tinha plano privado de saúde quem fosse trabalhador especializado de empresas de grande porte ou servidor público. Para somar os poucos empregados autônomos com domésticos e indivíduos com maior renda vinculados a planos de saúde bastavam seis dígitos. Tinha-se, então, a forte impressão de gigantismo do SUS e nanismo dos planos e seguros de saúde. Não era bem assim. Mesmo nas décadas recessivas, as dimensões da medicina privada sempre foram muito maiores do que as de seus potenciais consumidores e bagunçavam explicações simplistas. Mas, para fins de uma introdução ao sistema brasileiro, a ideia de um SUS para todos e poucos planos de saúde se coadunava com uma visão genérica sobre a distribuição de renda.

A situação atual é completamente distinta. A aterrissagem nos planos de saúde das aspirações de melhor atendimento dos denominados segmentos C e D alterou a fisionomia do sistema de saúde.

O intenso ritmo de crescimento dos negócios conduziu o Brasil ao limiar de uma americanização da saúde pré-Obama. Nessa marcha, e com a renovação dos incentivos à privatização, poderemos atingir, em médio prazo, a marca de 60% da população coberta por planos e seguros. Essa previsão não é um chute. Entre 2000 e 2010, a taxa de crescimento da população, 12,3%, foi bem menor do que a do aumento do número de contratos de planos de saúde, 48%. O potencial de expansão dos mercados tem sido a principal justificativa utilizada para a abertura do capital e da fusão e tomada de empréstimos de bancos de investimentos de diversas empresas de saúde.

Trata-se, é claro, de uma americanização à nossa moda. Como aqui tem SUS, os planos de saúde desenhados para atender às novas demandas são pouco abrangentes. Quem estiver vinculado a um plano relativamente mais barato e precisar utilizar serviços de saúde tem que tirar dinheiro do bolso para superar as restrições das coberturas e em certos casos pegar o caminho de volta para o SUS.

Pode-se dizer que não há nada de novo, a segmentação é uma regra comum a qualquer mercado. Os bancos e outros serviços customizam produtos. Porém, não é admissível diferenciar a qualidade de exames, transplantes ou consultas de acordo com o status básico ou vip dos clientes. Consequentemente, as legislações existentes pressupõem a igualdade biológica dos seres humanos e garantias assistenciais padronizadas.

A comercialização de planos com preços relativamente mais baixos colide com a democracia e a tendência inexorável de elevação das despesas com saúde.

A fragmentação das coberturas situa o Brasil na contramão dos países desenvolvidos. As propostas do recém-eleito presidente Hollande para a saúde, puxadas pelo compromisso de reduzir o tempo de espera do atendimento para no máximo meia hora, concentraram-se em torno do fortalecimento do sistema público. Na França, dizer que a saúde é um cimento do pacto republicano dá votos.

No Brasil, a Agência Nacional de Saúde Suplementar permite a atuação de planos com coberturas restritas, eufemisticamente alcunhadas flexíveis. Questionar as convicções sobre a suposta perfeição do sistema de saúde brasileiro (um SUS pobre para pobres e planos de saúde com garantias assistenciais precárias) costuma irritar determinados líderes da privatização.

A imposição de uma racionalidade de curto prazo sobre as reflexões acerca das alternativas para garantir o direito à saúde parece ser um suplemento vitamínico necessário à prosperidade dos negócios. A criação de um vasto e pouco sustentável mercado de planos de adesão (os denominados falsos coletivos) deixará para um SUS desprestigiado e subfinanciado a tarefa de assistir doentes graves e pagar tratamentos caros. Por isso, a chamada penetração do mercado exige o controle da faca, do queijo e da mão para extirpar desacordos. Uma verdade inabalável já anunciada dispensa esforços para avançar o conhecimento.

A rejeição a uma pesquisa realizada com o objetivo de estudar a reestruturação do mercado de planos de saúde pode ter sido movida por sinceras certezas. Mas a intolerância não pode se repetir. A desqualificação das reflexões críticas distrai, atrapalha, mas não desata os nós do sistema de saúde.

LIGIA BAHIA

é professora da Universidade Federal do Rio de Janeiro.

sexta-feira, 4 de maio de 2012

Medicamento-mercadoria, quanto custa?

"Em um país em que os medicamentos ocupam o primeiro lugar entre as causas de intoxicações em seres humanos, havendo um atendimento hospitalar por este motivo a cada 20 segundos , a ideia de comercializar medicamentos livre de prescrição em gôndolas de supermercados, sem que haja qualquer orientação ou indicação, seria no mínimo discutível". Confira o artigo de Felipe Assan Remondi e Renne Rodrigues, os dois são farmacêuticos e membros do Núcleo do Cebes de Londrina.
Em um país em que os medicamentos ocupam o primeiro lugar entre as causas de intoxicações em seres humanos, havendo um atendimento hospitalar por este motivo a cada 20 segundos , a ideia de comercializar medicamentos livre de prescrição em gôndolas de supermercados, sem que haja qualquer orientação ou indicação, seria no mínimo discutível.
Ainda assim, na quarta-feira, dia 25 de abril, o Senado Federal aprovou esta possibilidade evidentemente sem a devida apropriação e amadurecimento sobre o assunto. Mais curioso, a possibilidade de comercialização de medicamentos em supermercados foi aprovada em um projeto de lei com o objetivo de isentar tributos para produtos destinados a pessoas portadoras de necessidades especiais.

No âmago do sistema capitalista a saúde é tida não como um direito universal e necessário a dignidade humana, mas como um bem passível de comercialização e, portanto, de estratégias que visem o estímulo à produção e ao consumo. Esse processo pode ser denominado medicalização da sociedade.

Além da “doentificação” da vida – sim, doentificação da vida, ou em outras palavras a invenção de doenças a partir de situações até então normais – e do estímulo a realização de exames diagnósticos de alta especificidade (e elevado custo), uma das marcas características da medicalização é, sem dúvidas, o uso desenfreado e distorcido de medicamentos. Não precisamos fazer muito esforço para compreender como medida aprovada “oportunamente” pelos senadores reflete este processo e reforça o desvio da função social e clínica do medicamento. Mas cabe a reflexão: ao que ou a quem uma medida desta beneficiaria?

Existe inegável conexão entre a política econômica, industrial, científico-tecnológica e a construção de símbolos sociais pró-capitalismo. No contexto da medicalização, o medicamento representa um bom exemplo de como interesses se articulam para fomentar a propagação de interesses privados em detrimento ao bem coletivo. São inúmeras as estratégias: propaganda de medicamentos, patentes, lançamento de produtos que pouco acrescentam ao arsenal terapêutico, financiamento de campanhas eleitorais, disseminação de informações sobre os fármacos por meio de propagandistas, amostras grátis, brindes, bonificações, venda indiscriminada, entre muitas outras.

Na medida em que o consumo e o lucro são favorecidos, os efeitos colaterais de tal circunstância tornam-se evidentes. A Organização Mundial de Saúde aponta que o mau uso de medicamentos é um problema em todo mundo e revela alguns números alarmantes:
• 15% da população mundial consome mais de 90% da produção farmacêutica.
• Até 70% do gasto em saúde nos países em desenvolvimento correspondem a medicamentos, nos países desenvolvidos esse índice é menor que 15%.
• 50-70% das consultas médicas geram prescrição medicamentosa.
• 50% de todos os medicamentos são prescritos, dispensados ou usados inadequadamente.
• Somente 50 % dos pacientes, em média, tomam corretamente seus medicamentos.
• Os hospitais gastam de 15% a 20% de seus orçamentos para lidar com as complicações causadas pelo mau uso de medicamentos.

Mesmo frente a esses dados, poderíamos ainda pensar – ingenuamente – que a venda de medicamentos nos supermercados facilitaria o acesso e contribuiria para a melhoria da qualidade de vida da população. Mas isso seria verdade?

Essa indagação perde sentido quando analisamos o número de farmácias no país, um total de mais 82 mil no ano de 2010. O Brasil é um dos países com maior número de farmácias no Mundo ! Considerando a população no mesmo ano (190 milhões de habitantes), existem 3,45 farmácias a cada 8 mil habitantes distribuídas de forma pouco racional, número bem superior ao recomendado pela Organização Mundial de Saúde, que é de 1 farmácia a cada 8 mil habitantes. Se cada farmácia representasse mais saúde e qualidade de vida seríamos, sem dúvidas, o povo com maior longevidade!

A aprovação da liberação da venda de medicamentos em supermercados ainda necessita da sanção da Presidência da República. Ao que tudo indica essa incongruência deverá ser vetada, de acordo com os princípios defendidos pelo próprio Ministério da Saúde. Ufa!

Por outro lado este acontecimento chama a atenção para um problema muitas vezes despercebido, porém de raízes profundas. O estado brasileiro precisa desempenhar com veemência seu papel regulador para garantir a saúde como um direito social, distante de interesses econômicos nocivos. Ao fortalecer o Sistema Único de Saúde deve-se primar pelo uso racional dos medicamentos como estratégia de socialização da medicina.

É inadmissível tratar o medicamento como uma mercadoria isenta de riscos, de relevância social, e, principalmente, de interesses políticos e ideológicos. Precisamos ir além. Aceitar que mesmo os fármacos de venda livre sejam vendidos em gôndolas de mercado é tão prejudicial quanto permitir que farmácias, que são estabelecimentos de saúde por natureza, se constituam como empórios, pratiquem uma dispensação irresponsável e estejam isoladas do SUS e da Atenção Primária.

Deparamo-nos com a uma situação que privilegia o uso descomedido – e o lucro – em detrimento à saúde da população. Uma situação que comercializa a saúde ao nível da obscenidade, que seria possibilitar a venda de medicamentos como qualquer outro produto, por exemplo, sabão em pó.

Mais um, dentre tantos, desfavores prestados pelo congresso a saúde e a cidadania do brasileiro. E o ano sequer chegou a sua metade!