segunda-feira, 2 de maio de 2011

O SUS tira leite de pedra

 

 
por Emerson Elias Merhy, professor visitante da UFRJ e professor aposentado da UNICAMP

Campinas, 29 de abril de 2011

Quando o Clinton foi candidato à presidência dos Estados Unidos da América (EUA) tive a noção de um movimento de profissionais de saúde, naquele país, que defendia uma reforma do seu sistema de saúde – sabidamente ineficiente por ter um gasto enorme de recursos na produção de resultados bem aquém de outros, que com muito menos conseguem resultados muito mais efetivos – tendo como parâmetro o modelo construído no Canadá.
Dentre muitas coisas, diziam que com metade do gasto por habitante conseguia-se impactos muito mais substanciais em termos da saúde individual e coletiva dos canadenses, além de uma cobertura universal, na qual todos tinham direito ao cuidado com qualidade, adequado ao seu tipo de necessidade.
Contrapunham também à imagem de que nos EUA não só havia um contingente enorme de americanos excluídos do cuidado, bem como a qualidade da assistência prestada era precaríssima no campo da saúde pública, com falta de cobertura básica para certos grupos populacionais no cuidado de certas endemias.
Aprendi em detalhe essa perversidade do modelo americano de (des) cuidar em saúde com os trabalhos interessantes de Howard Waitzkin, médico americano que tem uma produção muito minuciosa sobre situações de desigualdade no campo da saúde, indicando em seus materiais da época a exclusão de uma população de 50 milhões de americanos de qualquer cuidado minimamente decente.
Em um estudo que pudemos construir junto com outros parceiros da América Latina – da Argentina, Chile, Equador – vimos como o Brasil vivia uma situação muito peculiar: a de remar contra a maré, como diziam os companheiros da Prefeitura de Santos nos anos de Davi Capistrano naquela cidade (1990 – 1998). Isto é, brincávamos com Howard que se em vez de adotarem o modelo canadense adotassem o nosso, do SUS, tirariam leite de pedra: seriam o sistema mais eficiente do mundo à exceção do modelo cubano, que ao não ser monetarizado não permite comparações muito equivalentes para um estudo de eficiência, apesar de sabidamente impactante e muito efetivo. Não é a toa que Cuba usufrui de indicadores de saúde bem destacados em relação a vários outros países e incomparáveis àqueles que são tão pobres quanto ele.
Brincávamos muito com aquele fato, que inclusive depois mereceria uma fala do Lula, já como presidente, para o Obama, há pouco tempo, dizendo a mesma coisa. Fato que vem sendo tão reconhecido que até um número especial do Lancet, um dos ícones da produção científica na saúde mundial, será dedicado à reforma sanitária brasileira e que independente de quem irá escrever este material para essa revista, algo de muito significativo nas nossas conquistas deverá ser evidenciado.
Pois, de fato tiramos leite de pedra. E muitos leites, de muitas pedras.
Nesse momento do texto, que terá outras partes, destaco exatamente essa imagem que estou construindo: apesar de todas as dificuldades e de muitos problemas, o SUS produz uma quantidade enorme de intervenções em saúde, com impactos significativos, com gasto muitas vezes irrisórios, comparado com outros lugares do mundo.
Não que isso não venha sendo feito com grandes distorções e mesmo que não tenha batido em um certo teto. Estão aí as precarizações do trabalho, estão aí a enormidade de gastos inúteis com procedimentos diagnósticos, estão aí incontroláveis endemias, estão aí corrupções e desmandos, estão aí as privatizações duvidosas e por aí vai. Mas, indiscutivelmente, estão aí a melhora de muitos indicadores de saúde como queda da mortalidade materna, da mortalidade infantil, aumento do diagnóstico precoce de vários cânceres, aumento da cobertura vacinal, aumento do acesso aos cuidados e os inovadores cuidados no campo das doenças transmissíveis e da saúde mental, de alta relevância e referência internacional.
Há margem para tudo no SUS. Criticas pertinentes e reconhecimentos de conquistas fundamentais em um país tão desigual como o brasileiro, que faz um esforço gigantesco em construir um campo de direito, o da saúde, desde à luta contra a ditadura, onde a vida sempre foi avaliada de modo muito discriminatória desde a longa tradição escravocrata, na qual há vidas para serem vividas e há vidas nuas, não merecedoras de nada a não ser sua exploração em benefício de um outro.
O SUS tira leite de pedra desse país. E só consegue tirar esse leite porque conseguiu ser produto de um movimento social, plural e democrático na sua origem, que soube produzir novos recursos para suas pretensões, além de redirecionar alguns dos “fundos públicos” já existentes, que eram usados para outras finalidade.
Faço-me entender melhor sobre isso, pois é um ponto fundamental para tirar leite de pedra, mesmo considerando que iremos voltar a outras dimensões dessa questão. Pois, aqui estou interessado em destacar uma ação fundamental que muda o processo histórico e social brasileiro em relação ao campo da saúde a partir do movimento sanitário brasileiro: a criação e o manejo de “fundos públicos” para novos interesses.
Apesar de tratar de um modo muito genérico, diria que a produção da riqueza econômica no Brasil, durante o século XX, reconhecidamente uma das mais significativas no plano mundial, esteve de mão dada com a capacidade de se produzir socialmente o que chamo de poupança pública, ou seja, a criação de uma reserva de capital, fundos públicos, que na disputa social entre vários atores altamente interessados neles, vai se desenhando a construção de setores de ações sociais fundamentais para o desenho do campo das políticas sociais, de várias ordens, do estado brasileiro. (diria que minha inspiração, com muita adaptação, vem de estudos como de Francisco de Oliveira sobre o desenvolvimento brasileiro, muitos dos quais publicados pelo Cebrap em certa época)
Um exemplo clássico seria o esforço enorme no começo da República Velha, nos anos 1890, de criar recursos públicos, com taxações de diferentes ordens, para abrir novos campos de ações do estado, criando outros eixos de produção de riqueza. Por exemplo, andam de mão dadas tanto os fundos públicos criados para bancar a produção, distribuição e exportação do café; quanto os fundos para criar um setor de saúde pública que não existia antes, mas chave para essa mesma produção de riqueza. Já em estudo anterior produzi muita informação sobre isso no meu livro O capitalismo e a saúde pública, publicado em 1987. (muito do meu material pode ser acessado no www.uff.br/saudecoletiva/professores/merhy)
Essa capacidade de produção de novas questões sociais e de construir recursos públicos para o seu enfrentamento é nuclear no movimento da sociedade brasileira, na qual a poupança privada sempre foi muito restritiva.
Pois bem, o enorme movimento social na luta pela ditadura e em particular uma de suas expressões, o movimento sanitário brasileiro, soube agir nesse terreno. O SUS é bem exemplar sobre isso, mas a duras penas nos dias de hoje.
Com toda sua institucionalização, criando um forte movimento em direção ao processo de municipalização do sistema de saúde nacional, abriu um novo território de poupança pública: os recursos dos municípios. O que permitiu avançar a construção do SUS mesmo tendo havido, e há até hoje, momentos fortes de diminuições dos gastos em saúde das outras esferas de governo, as estaduais e a federal.
Não é pouco o que os municípios colocaram e colocam de recursos públicos no campo da construção do SUS e graças a eles, disputadíssimos pelos vários atores sociais interessados no seu uso, o SUS se consolida como uma nova forma de se fazer política de saúde no Brasil, com arenas institucionais mais ampliadas, com o envolvimento mais plural de vários grupos sociais.
Nessa direção, temos que entender que o verdadeiro ordenhador dessa produção de novos recursos não foram os governos formais, mas sim uma quantidade enorme de militantes e atores sociais que batalharam e batalham pela mudança substantiva dos rumos das políticas sociais no país, apontando para novos focos de interesses, muito mais amplos e democráticos, no que toca seus sentidos. Além de uma luta encarniçada pela produção de novos espaços de formulação e gestão dessa política.
A bandeira da construção cidadã na saúde, a produção desses novos fundos públicos e a forte e organizada ação militante de milhares de brasileiros, de todos os agrupamentos sociais, nas novas arenas institucionais criadas tiraram leite de pedra. Mas, que do meu ponto de vista, vive hoje um limite nítido, de várias ordens e que procurarei tratar em textos a seguir. Muito para além dos limites exclusivamente financeiros.
Quero dizer com isso que apesar de ser fundamental a Emenda 29, ela passa a ser um detalhe, nesse momento.
Por exemplo, porque a proposta que o governo atual tem feito de que o SUS tem que se mostrar mais eficiente é uma falácia, pois o SUS só é isso. A demonstração da eficiência; quem tem que mostrar que é o setor privado, como já disseram muitos companheiros anteriores a mim.
Porque a questão do financiamento do SUS não é uma questão econômica mas política e vital, hoje.
Porque a regulação efetiva do mercado em saúde é fundamental para a construção do SUS e esse caminho de dois sistemas só leva a perda das conquistas do SUS e seu sucateamento, tornando-o lugar de práticas pobres para atender pobres.
Porque regular o mercado da força de trabalho em saúde, em particular as dos médicos é hoje central para o avanço do sistema.
Porque as esferas federativas não são parceiras como deveria ser em um campo de política de estado, mas ao contrário são atores sociais que disputam dos mais variados modos projetos de seus exclusivos interesses.
Porque novas formas institucionais de construir a coisa pública sem privatização é fundamental nesse momento.
Porque faltam leis centrais e regulações fundamentais a serem pactuadas entre todos interessados no SUS, como a Lei da Responsabilidade Sanitária e a da Carreira SUS, que se não forem construídas o leite vai secar, com certeza.
Até o próximo texto.

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