segunda-feira, 30 de janeiro de 2012

O médico à procura do ser humano

Antigamente a simples presença do médico irradiava vida. Antigamente os médicos eram também feiticeiros. “Mestre, diga uma única palavra, e minha filha será curada…”. A vida circulava nas relações de afeto que ligavam o médico àqueles que o cercavam. Naquele tempo os médicos sabiam dessas coisas. Hoje não sabem mais.
Aquele médico ao lado da menina: não se parece ele com um cavaleiro solitário que vai sozinho lutar contra a morte? Naquele tempo os médicos sabiam qual era seu destino. Havia muito sofrimento, sim.
Havia muito medo, sim. Medo e sofrimento são parte da substância da vida. Mas nunca soube de um médico que ficasse estressado. Não são as batalhas que produzem o estresse. As batalhas, ao contrário, dão coesão, pureza, integração ao corpo e à alma. O cavaleiro solitário é um herói com o corpo coberto de cicatrizes mas de alma inteira. Os estressados são aqueles que, sem ter uma batalha a travar, são puxados em todas as direções por uma legião de demônios.
A imagem do cavaleiro solitário que luta contra a morte é uma imagem romântica. Bela. Comovente. Quem não desejaria ser um? Criticam o romantismo. Fernando Pessoa comenta: mas não é verdade que a alma é incuravelmente romântica? O médico de antigamente era um herói romântico, vestido de branco. As jovens donzelas e as mulheres casadas suspiravam ao vê-lo passar. Ainda bem que a consulta permitia o gozo puro do toque da sua mão…
O cavaleiro solitário que luta contra a morte é um santo. Quem, jamais, ousaria pensar qualquer coisa de mau contra o médico? Hoje são comuns os processos contra os médicos por imperícia. Ser médico transformou-se num risco. Porque ninguém mais acredita na sua santidade. Talvez porque eles tenham deixado mesmo de ser santos… Mas, naquele tempo, as pessoas julgavam que o médico era um santo, e porque as pessoas pensavam assim, eles eram santos.
Eu me apaixonei pela imagem. Queria ser feiticeiro. Queria ser o cavaleiro solitário que luta contra a morte. Queria ser o santo. E esse ideal, para mim, não era uma abstração. Ele tinha um nome: Albert Schweitzer – um dos homens mais geniais do século XX. Organista, escritor, teólogo, fez um trato com Deus: até os 30 anos, faria essas coisas que lhe davam prazer cultural. Depois, iria se dedicar inteiramente aos sofredores. Entrou para a escola de medicina aos 30 e, depois de médico, passou o resto da vida num lugar perdido das selvas africanas, construiu um hospital de madeira e sapé onde distribuía alívio da dor. Claro, nunca ficou rico. Nem teve estresse. Sua bela imagem o fazia feliz. Ganhou o prêmio Nobel da Paz.
Não fui médico. Mas segui pela vida encantado por aquele quadro. O encanto foi quebrado quando fui fazer meu doutoramento nos Estados Unidos. Um dia fui ouvir uma palestra do diretor do hospital da cidade de Princeton, NJ, onde eu estudava. Ele começou sua preleção com esta afirmação que estilhaçou o quadro: “O hospital de Princeton é uma empresa que vende serviços”. “Meu Deus”, eu pensei. “Aquele médico não existe mais”.
E percebi que, agora, os médicos se encontram lado a lado com os prestadores de serviço, os encanadores, os eletricistas, os vendedores de seguro, os agentes funerários, os motoristas de táxi. É só procurar na lista de classificados. A presença mágica já não existe. O médico é um profissional como os outros. Perdeu sua aura sagrada. E me veio, então, uma definição do médico compatível com a definição que o diretor dera para o hospital de Princeton: “um médico é uma unidade biopsicológica móvel, portadora de conhecimentos especializados, e que vende serviços”.
Essa imagem, em absoluta conformidade com as condições sociais e econômicas do mundo moderno, não fez nada comigo. Não me comoveu. Não desejei ser igual. O mito de Narciso, eu acho, é o mito mais profundo. Todos nós, como Narciso, estamos em busca da nossa bela imagem. Mas para ver a nossa bela imagem temos necessidade de espelhos. Espelhos são os outros. É no rosto dos outros que vemos a nossa própria imagem refletida. Nos tempos antigos todas as pessoas eram espelhos para o médico. Todos o conheciam. Todos olhavam para ele com admiração. Hoje, morto o médico do quadro, o médico é agora procurado não por ser amado e conhecido, mas por constar no catálogo do convênio.
Seus espelhos não são mais os clientes, parentes, todo mundo. São os seus pares: colegas de empresa, sócios de consultório, congressos. Perigosas, essas relações entre pares. O primeiro assassinato registrado foi de um irmão que matou o irmão. A relação do médico antigo com seus espelhos era uma relação de gratidão e admiração. A relação do médico de hoje com seus espelhos é uma relação de inveja e competição. Acho que os médicos, hoje, são infelizes por causa disto: eles resolveram ser médicos por desejar ser belos como o cavaleiro solitário, puros como o santo, e admirados como o feiticeiro. Era isso que estava dentro deles, ao tomarem a decisão de estudar medicina. E é isso que continua a viver na sua alma, como saudade…
É. A vida lhes pregou uma peça. E hoje a imagem que eles vêem, refletida no espelho, é a de uma unidade biopsicológica móvel, portadora de conhecimentos especializados, e que vende serviços… Os médicos sofrem por saudade de uma imagem que não existe mais.

O difícil problema da saúde !

Valor Econômico – 27-1-2012- Alberto Carlos Almeida, sociólogo e professor universitário.




Afirmar que a solução para a saúde pública é difícil é um eufemismo. O mais provável é que não haja solução alguma e que se trate, simplesmente, de um problema impossível de ser resolvido.
A questão mais importante é saber que problema é esse. É preciso, antes de mais nada, definir o que está ruim e que, portanto, precisa de uma solução. Para que fique claro: o principal problema do Sistema Único de Saúde é o tempo de espera para marcar consultas e exames. Esse tempo nada tem a ver com o tempo em sala de espera, mas sim com a distância que separa o dia em que um cidadão procura o serviço de saúde para marcar uma consulta e o dia em que a consulta ocorre. Muitos leitores não devem saber, mas é comum que, em todos os lugares do Brasil, se espere três meses ou mais para que ocorra a consulta. Os usuários do sistema privado esperam uma, duas, talvez três semanas para uma consulta médica, ao passo que os usuários do SUSdificilmente são recebidos pelo médico antes de 90 dias.
A via crucis se repete na etapa seguinte, a do exame. Mais uma vez, o tempo de espera é inacreditavelmente longo. Falar em três meses de espera para cada uma dessas etapas é, com frequência, generosidade. Já fui testemunha ocular em uma visita que fiz a um município no entorno do Distrito Federal onde o tempo de espera para uma consulta com o cardiologista ou oftalmologista era de 9 a 12 meses. Imagine-se uma pessoa com um problema tão simples como a vista cansada aguardar um ano para que um médico a receba e só então ter a perspectiva de passar a utilizar óculos. Isso é nada diante das pessoas que morrem porque não foram recebidas por cardiologistas. Essas pessoas entrarão na estatística de morte por AVC ou ataque cardíaco sem que jamais se tenha notícia de que a morte provavelmente teria sido evitada se a consulta médica, e os exames, tivessem sido realizados na mesma velocidade em que são feitos no setor privado.
Como essa espera, para o doente, é equivalente à eternidade, ele acaba indo para um hospital e é recebido, de pé, por um médico que em cinco minutos mede a pressão, tira a pulsação e receita algum medicamento. Muitos de nós conhecemos inúmeras pessoas que passaram por isso. Tempos atrás, nossa empregada doméstica recebeu uma receita de remédio de pressão, quando estava, veio saber depois, com infecção urinária. Os hospitais estão superlotados porque cumprem o papel de substituir a consulta e o exame regular. No final das contas, não acontece nem uma coisa nem outra, mas o doente é, de alguma maneira, atendido.
No debate público sobre a crise da saúde pública aparecem sempre duas soluções. Uma é colocar mais recursos. Isso acabou de acontecer por meio da regulamentação da emenda 29. Ou se fala em melhorar a gestão. Não creio que solução esteja em nenhuma dessas duas medidas.
O aumento de recursos tem limites claros. O Brasil já desfruta de uma das maiores cargas tributárias do mundo, sob qualquer parâmetro de comparação: é a maior dentre os países emergentes, é das maiores na comparação com os desenvolvidos, na América Latina etc. Além da impossibilidade de se aumentar indefinidamente a carga tributária, a saúde pode ser o problema mais importante, mas não é o único. Os recursos do governo precisam ser direcionados para outros problemas, como educação, infraestrutura, política social, previdência etc. Sob qualquer prisma, sob uma análise mais cuidadosa ou mais geral, é muito difícil sustentar que a solução do tempo de espera para consultas e exames esteja no aumento dos recursos direcionados para a saúde.
Melhorar a gestão também não parece ser a solução. O problema do atendimento público da saúde está muito na ponta: ocorre na relação existente entre os médicos e seu trabalho, entre os médicos e seus potenciais pacientes. Nada tem a ver com compra de equipamentos, compra de material hospitalar, coisas assim. O médico precisa se dedicar ao trabalho e, caso isso não ocorra, ele precisa ser punido. É aí que entra o velho e conhecido problema do agente e do principal: ninguém é dono do SUS, ninguém manda nos médicos, eles são o agente, mas não há o chefe, não há o principal que os faça atender a população. A mídia e a população já conhecem o jogo de empurra: os médicos afirmam que são mal pagos e que não têm recursos para trabalhar, os prefeitos e governadores admitem, mas obviamente não dizem em público, que os médicos faltam sistematicamente ao trabalho e nada podem fazer contra isso. Não há gestão que resolva isso, é um típico problema de agente-principal.
O Reino Unido, anglo-saxão, orgulha-se de seu National Health System (NHS). É o SUS do país que acabamos de ultrapassar no PIB bruto. Os anglo-saxões, todos sabemos, são muito diferentes de nós, culturalmente. Trata-se de uma população cuja adesão às regras é infinitamente maior do que a nossa. A implicação disso para o mundo dos serviços é fenomenal: há um dever a ser cumprido. É por isso que, em função de diferenças culturais, devemos esperar que o funcionamento do serviço universal de saúde pública naquele país seja mais eficiente do que no nosso. Mantidas constantes todas as demais variáveis, ser criado em uma cultura voltada para os serviços possibilita uma melhor oferta de serviços. É simples.
No final dos anos 1990, quando o Reino Unido ainda estava longe de produzir menos riqueza do que o Brasil, um levantamento criterioso do NHS concluiu que 90% das pacientes diagnosticadas com a versão grave de câncer do seio tinham que esperar 62 dias para iniciar o tratamento. Para casos graves de câncer do colo, a espera era de 95 dias; para câncer do pulmão, 91 dias; para o cervical, 123 dias; para o de próstata, 143 dias. No Brasil, não existe nenhuma estatística sobre o tempo médio de espera para consultas e exames, muito menos para 90% dos pacientes graves por tipos de câncer.
O que o caso britânico revela, dentre outras coisas, é o problema do agente-principal. Não há controle possível sobre os médicos; o problema é na ponta, é no tempo de espera. Adicionalmente, não há recursos financeiros infinitos. Atualmente, o NHS passa por uma crise sem precedentes, com perspectivas de fechamento de hospitais e medidas do gênero. No Reino Unido, atribui-se isso ao envelhecimento da população e ao surgimento de exames e procedimentos médicos mais custosos. Pode ser. Na realidade, não importa. O sistema público, quando se trata de recursos financeiros, funciona como uma esponja: quanto mais há, mais ele demanda; quanto mais recebe, mais exige. A emenda 29 e sua regulamentação são apenas um sintoma dessa lógica sem fim.
Há solução para esse problema e estamos todos diante dela. A solução, no Brasil, está em andamento. A pesquisa Conta-Satélite de Saúde, do IBGE acabou de mostrar que o gasto privado per capita com saúde é maior do que seu equivalente público em nada menos do que 29%. O governo gasta 645 reais por brasileiro com saúde, ao passo que o gasto médio de cada brasileiro com saúde é de 835 reais. Aí está a solução para o desrespeito, para a espera interminável, para as mortes e a morbidade na fila: os brasileiros vão cada vez mais financiar privadamente seu atendimento de saúde.
Por favor, não esperemos por planos de um demiurgo, novas regulamentações ou pactos sociais em torno do tema. A solução é individual e privada. A solução é incremental, de longo prazo e aparentemente desorganizada. Na medida em que aumentar a renda per capita, as pessoas vão gastar mais com saúde e se livrarão do atendimento público. Trata-se de um desfecho tão inevitável quanto ultrapassar o PIB bruto da França e o PIB per capita do Reino Unido. È apenas uma questão e tempo.
Não há recursos públicos ou eficiência em gestão que resolva o caos do SUS ou do NHS. A solução será fornecida pelos indivíduos, pelos agentes privados que, afortunadamente, graças ao aumento de sua renda, poderão pagar por seus próprios cuidados com saúde. Caberá ao SUS um papel reduzido, de atendimento àqueles que realmente não terão condições de pagar por nada que seja além de alguns atendimentos como emergência, serviços de ambulância e vacinação. Até atingirmos esse estágio, teremos que conviver com a promessa permanente de que há solução para o atendimento público de saúde. Esqueçam. É impossível. O melhor, para quem não acredita em mágica, é que essa promessa entre por um ouvido e saia por outro.

Alberto Carlos Almeida, sociólogo e professor universitário, é autor de A Cabeça do Brasileiro e O Dedo na Ferida: Menos Imposto, Mais Consumo.
e-mail:Alberto.almeida@institutoanalise.com www.twitter.com/albertocalmeida

Prevenção contra a Dengue em Bal. Barra do Sul.





segunda-feira, 23 de janeiro de 2012

A Regulamentação da EC 29 e o Financiamento da Saúde no Brasil

André Medici

Enfim, a regulamentação...

Em 7 de dezembro de 2011, a regulamentação da Emenda Constitucional No. 29 (EC-29) foi aprovada pelo Senado. Foram mais de 10 anos de vai-e-vem, envolvendo o Senado, a Câmara, os Ministérios Econômicos, o Ministério da Saúde e as Secretarias de Saúde dos Estados e Municípios. Discussões apaixonadas se realizaram entre várias correntes de pensamento e a questão do financiamento virou uma espécie de “samba de uma nota só”.

A proposta de regulamentação aprovada não foi aquela que as autoridades econômicas queriam. O Senado sabiamente evitou a criação de mais um imposto ou contribuição social que, inicialmente vinculado à saúde, acabaria indo pouco a pouco para a vala comum da imensa carga fiscal brasileira, através dos já conhecidos processos de desvinculação das receitas da União. Também não foi a que o Câmara enviou ao Senado, a qual aumentaria anualmente em R$31 bilhões (com base no orçamento de 2011) os gastos federais com saúde, através de sua vinculação a 10% das receitas fiscais da União. No entanto, no dia 16 de janeiro de 2012, a Lei Complementar que regulamenta a EC-29 foi sancionada pela Presidência da República vetando 15 trechos do texto aprovado pelo Senado no início de Dezembro.

O que prevaleceu na decisão do Senado foram critérios para uma alocação orçamentária da saúde próxima aos patamares atualmente existentes. O mais importante, no texto da regulamentação, foi a definição do que se deve considerar como gasto em saúde, a fim de evitar que os Tribunais de Contas acabassem por julgar procedentes definições oportunistas de gasto em saúde utilizadas pelos Estados e Municípicios para reduzir às transferências ao setor.

O que prevaleceu nos vetos da Presidência foi a eliminação da correção dos recursos federais em conformidade com a variação do PIB e o uso de contas separadas para o setor, de acordo com as fontes de receita. Com isso, o Governo manteve sua disposição em controlar os recursos através da Conta Única do Tesouro, evitando que ganhos financeiros (extra-orçamentários) fossem transferidos ao setor saúde. Ao por um freio no aumento dos recursos federais, .o governo implicitamente aumenta a responsabilidade dos Estados e Municípios no financiamento da saúde, o que está sendo alvo de críticas fundadas de governadores e secretarios estaduais de saúde. Afinal de contas, boa parte do que estava sendo feito pelo Congresso era para aumentar os recursos federais para o setor.
No entanto, foi mantido na Lei Complementar o texto do Senado que define o conceito de gastos com saúde, evitando que os Estados e Municípios pudessem mascarar outros gastos, classificando-os como gastos com saúde. Além das definições impróprias de gasto em saúde, alguns governos sub-nacionais não alocavam os percentuais de 15% e 12% das receitas correntes dos Municípios e Estados e com isso, os recursos não aumentavam como deveriam. De acordo com os dados do SIOPS/MS para 2009 (os últimos disponíveis), dos 27 Estados brasileiros, apenas quatro não aplicaram o mínimo de 12% das receitas próprias em saúde em 2009. Eram eles Paraná (9,8%), Espírito Santo (11,8%), Rio Grande do Sul (7,2%) e Mato Grosso (11,7%). No entanto, uma análise mais acurada feita pelo Ministério da Saúde mostrou que, além destes, sete Estados não haviam alcançado o percentual por classificarem erroneamente suas prestações de contas junto ao sistema (São Paulo, Goiás, Ceará, Pará, Minas Gerais, Maranhão e Rio de Janeiro). Dentre as despesas classificadas erroneamente como gastos em saúde estão gastos com hospitais de servidores públicos, saneamento básico, abastecimento de água com cobrança de taxas, restaurantes populares e programas de transferência de renda, como o bolsa família. Este problema não ocorre com os municípios, onde apenas 11 (dos mais de 5.500) não conseguiram aplicar o mínimo de 15% em 2011, segundo os dados do SIOPS.

Não mais desculpas...
A falta de financiamento tem sido sempre o bode espiatório para justificar os problemas do sistema de saúde brasielrio. E como é conhecido, estes problemas não param de crescer. Entre dezembro de 2002 e outubro de 2011, de acordo com a Pesquisa IBOPE-CNI, a questão da saúde passou da segunda para a principal preocupação dos brasileiros. Uma pesquisa de opinião especial do IBOPE-CNI(1) recém publicada (janeiro de 2012), mostrou que 61% da população brasileira considera o serviço público de saúde péssimo ou ruím E 85% da população não percebe avanços no sistema público de saúde do país nos últimos três anos. Cerca de 55% considera a demora no atendimento o principal problema do sistema público de saúde em sua cidade.

A desculpa tem sido a de que o sistema de saúde poderia ser melhor se houvessem mais recursos para seu financiamento. Mas, embora na pesquisa IBOPE-CNI a esmagadora maioria da população (95%) considere importante destinar mais recursos para a saúde, 82% acham que recursos adicionais poderiam ser obtidos se o governo acabar com a corrupção e somente 4% endossariam a proposta do governo de criar novos impostos para financiar a saúde. A maioria atribui melhores notas aos serviços privados do que aos públicos e 63% concorda com a transferência da gestão dos hospitais públicos para o setor privado.
Com a nova Lei complementar que regulamenta a EC-29, a definição dos recursos federais para o setor e o fim da pressão diária para sua votação, os governos em todas as esferas, vão ter que arregaçar as mangas e não buscar mais desculpas para justificar o descontentamento da população. Terão que gastar melhor os recursos que tem, se quiserem melhorar os resultados. Terão que saber quanto precisam gastar a mais para cumprir com os direitos constitucionais da população e dar valor a cada centavo que recebem do orçamento. Terão que acompanhar milimetricamente o que esta sendo feito com os recursos destinados para as emendas parlamentares na saúde e vão ter que buscar saídas para gastar melhor.

Ao final das contas, o Ministério da Saúde acabou recebendo em 2012 mais do que esperava. A proposta do Orçamento da União para 2012, aprovada em 23 de dezembro de 2011 pelo Plenário do Congresso, vai destinar ao Ministério R$ 92,1 bilhões; ou seja, R$11,2 bilhões adicionais aos recursos aprovados em 2011 (13,8% a mais). Nada mal para quem esperava receber um adicional de R$31 bilhões escalonado em 4 anos, caso fosse aprovada a proposta de 10% das receitas da União. Se esse adicional, proposto pela Câmara, fosse parcelado entre 2012 e 2015, o Governo receberia somente R$7,6 bilhões em 2012.

O que fazer com os recursos adicionais?

Não é pela existência de cortes nos gastos federais que a saúde no Brasil apresenta problemas. A tabela 1 mostra que entre 2007 e 2011, os recursos orçamentários autorizados para a pasta da Saúde aumentaram de R$53 para R$81 bilhões. Muitos argumentam que a participação do Ministério da Saúde no orçamento federal vem decrescendo, o que é verdade. Mas isso tem a ver com aumento dos gastos públicos em outras áreas em proporções maiores que o aumento dos gastos em saúde (2).

Tabela 1

Recursos Autorizados, Pagos e Porcentagem de Execução Orçamentária dos

Recursos do Ministério da Saúde: Brasil: 2007-2011


Portanto, não é de hoje que o Governo vem aumentando os gastos federais com saúde e a regulamentação da EC-29 vai somente consolidar esta tendência. Mas como o governo vai gastar este adicional de recursos? O Congresso, ao que parece, já tem algumas propostas. Segundo o Deputado Tarcísio Perondi, da Frente Parlamentar de Saúde, os municípios com menos de 50 mil habitantes poderão receber até R$2,2 bilhões para a construção de postos de saúde. As emendas parlamentares da saúde também tiveram aumentado seu teto, dado que cada deputado e senador passaria a destinar (dos R$15 milhões de recursos discricionários do orçamento a que tem direito) no mínimo cerca de R$2 milhões para o fortalecimento do SUS. Segundo os cálculos do Deputado Perondi, a soma total das emendas ligadas a saúde chegará em 2012 a R$6,3 bilhões (ou seja, quase 7% do total do orçamento da saúde).

Por outro lado, ainda que os recursos venham aumentando, o gasto real do Ministério da Saúde tem sido muito aquém do autorizado pelo Orçamento. A Tabela 1 mostra, na última coluna, a porcentagem de execução orçamentária dos recursos do Ministério da Saúde entre 2007 e 2011. Nos últimos anos sistematicamente mais de 10% dos recursos deixam de ser pagos, o que representa um valor muito elevado frente ao clamor pela falta de recursos para o setor que frequentemente é usado como desculpa.

Em matéria publicada no Jornal Valor Econômico de 28 de outubro de 2010, o reporter Ribamar Oliveira relata que o Tribunal de Contas da União (TCU) concluiu que o governo federal não honrou com o gasto mínimo em saúde nos anos de 2007 e 2008 , em função do cancelamento das despesas, empenhadas nesses dois anos incluídas como restos a pagar. Antes da regulamentação da EC-29, vigorava a regra definida no artigo 77, do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias, nas quais as despesas mínimas com saúde deveriam ter como parâmetro o valor efetivamente empenhado no ano anterior corrigido pela variação nominal do Produto Interno Bruto (PIB). Segundo o jornalista, a aplicação deste critério aos gastos com saúde em 2007 e em 2008 levou o TCU a estimar que R$ 785 milhões de recursos empenhados como restos a pagar não foram gastos nos exercícios posteriores. Por causa disso, os ministros do TCU decidiram, em acórdão aprovado no dia 6 de outubro de 2010, determinar que os Ministérios da Saúde, Fazenda e Planejamento deveriam garantir, mediante dotação específica, o montante equivalente aos valores de restos a pagar que foram cancelados, ou cuja vigência tenha expirado e que foram considerados para fins de cumprimento do limite mínimo com saúde. Essa decisão dos ministros do TCU valeria até que fosse regulamentada a Emenda Constitucional 29, mas na prática não foi aplicada.
Em síntese, apesar de ter contado com mais recursos e clamar por mais financiamento, o setor público de saúde no Brasil não tem gasto a totalidade do orçamento disponível nem dado prioridade ao que deve ser priorizado em matéria de gasto com saúde. Muitos continuam culpando o sub-financiamento pelos problemas de saúde apontados pela população. Mas como revelam os dados da última pesquisa IBOPE-CNI, a população brasileira parece estar descobrindo que, com os recursos públicos disponíveis, se poderia fazer mais ao se buscar soluções de gestão mas eficientes ou reduzir a corrupção setorial. Está na hora de abandonar o discurso monotônico do financiamento e buscar alternativas e soluções para apoiar o Governo na melhoria da eficiência e da equidade na saúde, o que traria maiores beneficios aos cidadãos brasileiros, especialmente os mais pobres, que dependem do SUS.

quinta-feira, 19 de janeiro de 2012

Coren/SC esclarece que o PL 2295/2000 (30 horas) ainda não foi aprovado


Circula pela internet, principalmente no site de relacionamentos Facebook, a notícia de que o Projeto de lei 2295/2000, que regulamenta jornada de trabalho da Enfermagem em 30 horas semanais, foi aprovado.
O Conselho Regional de Enfermagem de Santa Catarina vem a público esclarecer que tal informação não procede. A notícia em que está baseada esta manifestação na internet é de 2009 e refere-se à época em que o projeto foi aprovado na Comissão de Finanças e Tributação da Câmara dos Deputados, uma das etapas que antecedem a aprovação definitiva em plenário. O Coren/SC informa ainda que a Câmara dos Deputados encontra-se em recesso parlamentar até o dia 02 de fevereiro.
O Projeto é de autoria do Deputado Lúcio Alcântara (PSDB/CE) e foi apresentado em 2000. Após um longo período de inatividade na Câmara, foi retomado com o apoio de novas lideranças da Enfermagem, e desde 2009 avançou em todas as etapas internas até restar somente a aprovação final dos deputados em plenário na Câmara. Sua última atividade data de 30 de novembro de 2011, quando foi requerida sua inclusão na pauta do dia.
Sendo assim, o Coren/SC reforça que continua na luta pela aprovação do PL 2295/2000, e conta com a mobilização e apoio dos profissionais de Enfermagem de Santa Catarina.
Continuaremos na mobilização para que o 2295/2000 seja incluído na ordem do dia, votado pelo plenário da Câmara e sancionado pela Presidente Dilma Rousseff.

terça-feira, 17 de janeiro de 2012

O SUS é um consenso vazio !!!

               
Publicado em: 17/01/2012 10:11:19

por Carolina Benevides

Ao sancionar a Lei Complementar 141, a presidente Dilma Rousseff fez 15 vetos. Como a senhora vê o veto ao trecho que determinava a atualização automática dos recursos da Saúde quando houvesse revisão do PIB?

LIGIA: Caracteriza o pão-durismo na Saúde e é o veto que mais afeta o setor. Se nem a variação do PIB vai ser levada em conta, o recado é: é isso para a Saúde e pronto. Fora que não procede a justificativa de que alterar o Orçamento poderia causar instabilidade. Um PIB de mais de R$1 trilhão, sendo que a Saúde recebe 3,5% do PIB...

E o veto ao dispositivo que separava os valores a serem aplicados na Saúde em contas específicas?

LIGIA: Vejo como um preciosismo esse dispositivo. Já temos os fundos nacional, estaduais e municipais da Saúde, sendo que o Fundo Nacional é a principal rubrica da Saúde. E os fundos, criados pela Lei 8080, podem ser fiscalizados.

Como a senhora viu a aprovação da Emenda 29 sem que houvesse aumento dos gastos da União com a Saúde?

LIGIA BAHIA: Aprovar a Emenda 29 sem que a União tenha que dispor de mais recursos para a Saúde é uma tragédia. Do jeito que aprovaram, a Saúde vai ter mais R$3 bilhões; se fossem os 10% da receita da União, o aporte seria de R$40 bilhões. Foi bom terem definido o que são gastos com Saúde, mas os R$3 bilhões a mais não terão grande impacto. Houve uma derrota de todos os que defendem o SUS, ainda que o governo veja a aprovação como uma grande vitória.

Foi uma surpresa?

LIGIA: A gente podia esperar essa negociação de um partido conservador, mas não de partidos sociais democratas, que barraram os 10% dizendo que a crise mundial existe. Mas o PAC está aí. Então, por que cortar na Saúde? Os gastos públicos com Saúde no Brasil hoje são de R$127 bilhões/ano. Países da Europa, como Reino Unido e França, gastam R$679 bilhões/ano.

A Saúde não é prioridade?

LIGIA:Como priorizar a Saúde sem ser prioridade orçamentária de fato? Tivemos alternância democrática, mas os governos não priorizaram a Saúde.

A discussão da criação da Contribuição Social para a Saúde (CSS) prejudicou o debate sobre a Emenda 29?

LIGIA: A sociedade estava tão temerosa de um novo imposto, que o governo pode falar em vitória só por não ter aprovado uma nova contribuição. No entanto, o debate sobre a Emenda 29 foi apresentado de forma técnica quando, na verdade, o debate é sobre se a Saúde é prioridade ou não.

Mais de 20 anos depois de ser criado, quais são os principais problemas do SUS?

LIGIA: O SUS tem problema de gestão e de financiamento. Isso caracteriza o nosso subdesenvolvimento, porque temos carência de recursos e desperdício. O senso comum da população é que o problema é de gestão. O problema de financiamento é mais abstrato.

Quando o assunto é gestão, qual o principal problema?

LIGIA: É a gestão de recursos humanos, que é o recurso estratégico em qualquer sistema de saúde. Os cargos são ocupados por critérios políticos partidários, a qualidade do trabalho não é controlada, não sabemos que metas devem ser cumpridas, os profissionais são mal pagos e não são valorizados. Fora que corrupção também é problema de gestão. Quando se fala em novo imposto, a sociedade logo diz que vai para corrupção. Isso é prejudicial, mas tem um substrato real.

E no financiamento?

LIGIA: Bem, investimos em Saúde menos que o Chile e a Argentina, e menos do que os países que têm a mesmas condições macroeconômicas e políticas que as nossas. Por conta disso, a gente não consegue que os indicadores de saúde tenham a mesma performance dos indicadores econômicos.

Com todos esses problemas, como senhora vê o SUS?

LIGIA: É um consenso vazio. Todo mundo é a favor, contanto que não use. A população tem a ideia de que existem ilhas de excelência, mas também de que é uma grande desorganização. Isso reforça a ideia de que o problema é de gestão e não de financiamento. Se tem gente boa, por que não são os melhores sempre? A resposta é: porque não temos financiamento adequado. Mas essa batalha a gente perdeu.

Ligia Bahia é médica, professora e coordenadora do Laboratório de Economia Política da Saúde (LEPS) da UFRJ

terça-feira, 10 de janeiro de 2012

Triste Judiciário !!!!

 
MARCO ANTONIO VILLA
O Globo
Publicado em 13/12/2011

O Superior Tribunal de Justiça (STJ) é formado por 33 ministros. Foi criado pela Constituição de 1988. Poucos conhecem ou acompanham sua atuação, pois as atenções nacionais estão concentradas no Supremo Tribunal Federal. No site oficial está escrito que é o tribunal da cidadania. Será?
Um simples passeio pelo site permite obter algumas informações preocupantes.
O tribunal tem 160 veículos, dos quais 112 são automóveis e os restantes 48 são vans, furgões e ônibus. É difícil entender as razões de tantos veículos para um simples tribunal. Mais estranho é o número de funcionários. São 2.741 efetivos.
Muitos, é inegável. Mas o número total é maior ainda. Os terceirizados representam 1.018. Desta forma, um simples tribunal tem 3.759 funcionários, com a média aproximada de mais de uma centena de trabalhadores por ministro!! Mesmo assim, em um só contrato, sem licitação, foram destinados quase R$2 milhões para serviço de secretariado.
Não é por falta de recursos que os processos demoram tantos anos para serem julgados. Dinheiro sobra. Em 2010, a dotação orçamentária foi de R$940 milhões. O dinheiro foi mal gasto. Só para comunicação e divulgação institucional foram reservados R$11 milhões, para assistência médica a dotação foi de R$47 milhões e mais 45 milhões de auxílio-alimentação. Os funcionários devem viver com muita sede, pois foram destinados para compra de água mineral R$170 mil. E para reformar uma cozinha foram gastos R$114 mil. Em um acesso digno de Oswaldo Cruz, o STJ consumiu R$225 mil em vacinas. À conservação dos jardins — que, presumo, devem estar muito bem conservados — o tribunal reservou para um simples sistema de irrigação a módica quantia de R$286 mil.
Se o passeio pelos gastos do tribunal é aterrador, muito pior é o cenário quando analisamos a folha de pagamento. O STJ fala em transparência, porém não discrimina o nome dos ministros e funcionários e seus salários. Só é possível saber que um ministro ou um funcionário (sem o respectivo nome) recebeu em certo mês um determinado salário bruto. E só. Mesmo assim, vale muito a pena pesquisar as folhas de pagamento, mesmo que nem todas, deste ano, estejam disponibilizadas. A média salarial é muito alta. Entre centenas de funcionários efetivos é muito difícil encontrar algum que ganhe menos de 5 mil reais.
Mas o que chama principalmente a atenção, além dos salários, são os ganhos eventuais, denominação que o tribunal dá para o abono, indenização e antecipação das férias, a antecipação e a gratificação natalinas, pagamentos retroativos e serviço extraordinário e substituição. Ganhos rendosos. Em março deste ano um ministro recebeu, neste item, 169 mil reais. Infelizmente há outros dois que receberam quase que o triplo: um, R$404 mil; e outro, R$435 mil. Este último, somando o salário e as vantagens pessoais, auferiu quase meio milhão de reais em apenas um mês! Os outros dois foram “menos aquinhoados”, um ficou com R$197 mil e o segundo, com 432 mil. A situação foi muito mais grave em setembro. Neste mês, seis ministros receberam salários astronômicos: variando de R$190 mil a R$228 mil.
Os funcionários (assim como os ministros) acrescem ao salário (designado, estranhamente, como “remuneração paradigma”) também as “vantagens eventuais”, além das vantagens pessoais e outros auxílios (sem esquecer as diárias). Assim, não é incomum um funcionário receber R$21 mil, como foi o caso do assessor-chefe CJ-3, do ministro 19, os R$25,8 mil do assessor-chefe CJ-3 do ministro 22, ou, ainda, em setembro, o assessor chefe CJ-3 do do desembargador 1 recebeu R$39 mil (seria cômico se não fosse trágico: até parece identificação do seriado “Agente 86”).

Em meio a estes privilégios, o STJ deu outros péssimos exemplos. Em 2010, um ministro, Paulo Medina, foi acusado de vender sentenças judiciais. Foi condenado pelo CNJ. Imaginou-se que seria preso por ter violado a lei sob a proteção do Estado, o que é ignóbil. Não, nada disso. A pena foi a aposentadoria compulsória. Passou a receber R$25 mil. E que pode ser extensiva à viúva como pensão. Em outubro do mesmo ano, o presidente do STJ, Ari Pargendler, foi denunciado pelo estudante Marco Paulo dos Santos. O estudante, estagiário no STJ, estava numa fila de um caixa eletrônico da agência do Banco do Brasil existente naquele tribunal. Na frente dele estava o presidente do STJ. Pargendler, aos gritos, exigiu que o rapaz ficasse distante dele, quando já estava aguardando, como todos os outros clientes, na fila regulamentar. O presidente daquela Corte avançou em direção ao estudante, arrancou o seu crachá e gritou: “Sou presidente do STJ e você está demitido. Isso aqui acabou para você.” E cumpriu a ameaça. O estudante, que dependia do estágio — recebia R$750 —, foi sumariamente demitido.
Certamente o STJ vai argumentar que todos os gastos e privilégios são legais. E devem ser. Mas são imorais, dignos de uma república bufa. Os ministros deveriam ter vergonha de receber 30, 50 ou até 480 mil reais por mês. Na verdade devem achar que é uma intromissão indevida examinar seus gastos. Muitos, inclusive, podem até usar o seu poder legal para coagir os críticos. Triste Judiciário. Depois de tanta luta para o estabelecimento do estado de direito, acabou confundindo independência com a gastança irresponsável de recursos públicos, e autonomia com prepotência. Deixou de lado a razão da sua existência: fazer justiça.
MARCO ANTONIO VILLA é historiador e professor da Universidade Federal de São Carlos (SP).

sábado, 7 de janeiro de 2012

Divagando sobre o sonho da saúde que embalamos


A princípio não iria ser médico. Quando chegou minha hora da escolha final pendia a ser professor coisa que fazia desde a juventude, preparando e dando aulas inicialmente no antigo ginasial. Acabei fazendo Filosofia Pura ministrada pelos Padres Redentoristas, curso depois encampado pela Universidade Federal de Juiz de Fora. A figura religiosa veio do berço pela fé de meus pais e depois pelos estudos com os Redentoristas a quem muito devo de minha formação técnica, cultural e religiosa.
Quando terminava filosofia, Guido Carvalho, meu irmão, levou-me a um teste vocacional que me indicou como caminho a medicina. Achava inatingível para mim, em meio à briga dos excedentes do vestibular de medicina e pelo fato de ter feito, no segundo grau, o curso clássico que preparava para humanas e não o científico que levava à medicina.
Afinidade já tinha pois aprendi “enfermagem” aos 16 anos com Irmão Cipriano um holandês que era o titular do cargo no colégio interno e que supervisionava o trabalho. Gostei e fazia o trabalho comum aquela época medicando (paliativos e sintomáticos), fazendo curativos, aplicando infravermelho nos acidentados do futebol, cuidando dos acamados na enfermaria. De atendente de enfermagem a aluno de medicina parecia um fosso intransponível. Metí-me a estudar sozinho em velhas apostilas e por vezes e por pouco tempo, com a ajuda de gente que entendia. Foi assim que num primeiro ano de vestibular, estudando apenas no segundo semestre, consegui meu ingresso em medicina. Não na primeira chamada, mas nas subsequentes no mesmo ano que abriram novas vagas.
Minha história com a saúde era antiga pois aos nove anos me foi diagnosticada uma doença cardíaca genética de característica familiar. Convivia bem com os médicos de minha cidade de interior em Minas, ambos compadres de meu pai. Eram admirados tanto pela sabedoria como pela dedicação à população grande parte dela atendida gratuitamente.
Nos primeiros anos de medicina engajei-me num trabalho de alfabetização de adultos feito pelos universitários e normalistas. Meu contato com a saúde pública foi acontecer em 1969 quando fui trabalhar no NIERHS – Núcleo Integrado de Estudos de Recursos Humanos para a Saúde. Tinha a participação do MEC (eu era servidor do INEP-MEC) e congregava as associações de ensino das várias profissões de saúde: medicina, enfermagem, farmácia e bioquímica e odontologia, para estudar e melhorar a força de trabalho na saúde. Foi minha grande escola pois o NIERHS funcionava em Manguinhos na hoje FIOCRUZ. Lá convivi e aprendi com várias figuras históricas da saúde brasileira: Nelson Rodrigues dos Santos, Mário Chaves, Célia Lúcia Monteiro de Castro e outros. Trabalhei lá até 1973 e participei das grandes discussões contemporâneas: implantação dos departamentos de medicina social nas faculdades de medicina em substituição aos de higiene; médico de família (1969!!!!); hospitais universitários (1969!!!); compra de serviços dos hospitais universitários pelo INAMPS etc. A entrada do INAMPS financiando internações nos hospitais universitários foi refutado veementemente pelos professores, sob o falso argumento de perda da autonomia universitária. Depois foi aceito como fonte alternativa de receita! Teve início aí uma novidade de remuneração do INAMPS por pacote de portes dos atos e não por procedimentos, nem por unidades de serviços, fonte de corrupção tese defendida pelo Carlos Gentile contemporâneo da época. Lá fiz minhas primeiras pesquisas junto com Antenor Amâncio e sob a batuta da Célia Lúcia. Ficamos entendidos na formação de recursos humanos para a saúde. Tínhamos inclusive um contato muito bom com organismos internacionais de saúde o que levou a mim e Antenor Amâncio a implantar em todas as faculdades de saúde no Brasil o Programa do Livro Texto para os alunos, subsidiado pela OPAS e detestado pelos livreiros. Foi o lançamento de minha carreira de mascate viajante na saúde percorrendo todo o Brasil, função de que fez parte até minha lua de mel com Emilia, quarenta e dois anos atrás!
Quis ir para o interior como médico pediatra e escolhi Alfenas em MG onde já tinha o Paulo, meu irmão médico e que muito me ajudou e acolheu! Tive no Paulo um preceptor exclusivo no início de minha profissão. Em Alfenas duas aproximações com a saúde pública da qual escapara, ao me formar, por falta de concursos. Uma delas foi ser médico de uma unidade de saúde beneficente que tinha convênio com o Estado. Outra foi assumir como auxiliar de ensino na disciplina de saúde pública na EFOA (Faculdade Federal de Farmácia e Odontologia de Alfenas). Havia pedido demissão do MEC em dezembro de 1993 e chegando a Alfenas em janeiro de 1974 fui convidado e aceitei trabalhar novamente no MEC como professor de saúde pública.
Duas tentativas nos anos seguintes para me aprimorar em saúde pública na FSP-USP foram frustradas. Uma como candidato a mestrado em tempo integral indicado pela EFOA e outra, por minha opção, para fazer o curso de curta duração de saúde pública, o grande celeiro de sanitaristas de minha geração. Em ambos me inscrevi e não fui selecionado o que não ocorria por prova pública naquela época.
Mudei-me para São José dos Campos onde em 1978 iniciei-me novamente na saúde pública com duplo vínculo com a Prefeitura: o primeiro como médico da saúde escolar e o segundo como médico pediatra no Pronto Socorro Municipal. Na prefeitura fiz carreira. Daí a chefe da assessoria do Secretário, depois Diretor de Saúde quando a secretaria tinha dois departamentos: o de saúde e o de desenvolvimento social e depois Secretário de Saúde.
Aqui foi o grande momento de paixão com a saúde pública e onde pude concretizar sonhos e desejos. Fazíamos exaustivas discussões sobre uma proposta de se conseguir saúde para todos o que parecia impossível.
Em São José dos Campos um projeto de 1976 propunha uma rede de hospitais públicos com algumas unidades básicas, bem ao modo do modelo hospitalocêntrico. Tivemos que dar a volta por cima e desenhar uma rede de unidades básicas sem mais nenhum hospital. Nelsão que já tinha sido meu guru em 1969 agora estava em Campinas fazendo a municipalização das ações e serviços de saúde e trabalhando na saúde coletiva da UNICAMP. Estreitamos os laços e Nelsão passou a ser o mentor de nosso trabalho em saúde pública em São José dos Campos.
Num momento em que se queria preservar a pureza da universidade que não podia sair de seus muros para cursos à distância, Nelsão, com seus colegas professores, quebra os paradigmas e monta conosco o primeiro curso de especialização em saúde pública descentralizado da UNICAMP. Ao invés de enviar dois ou três profissionais para se especializarem em saúde pública a cada ano, trouxemos nos anos de 1981 e 1982, os professores da UNICAMP que ministraram o curso para cinquenta profissionais municipais. Coroava o trabalho que já vínhamos fazendo desde 1979 montando a rede de atenção primária à saúde de São José dos Campos. Um destaque: toda ela amplamente discutida com a comunidade em exaustivas reuniões em cada bairro onde foi se desenhando a rede baseada nas necessidades, no acesso por transporte, nas barreiras geográficas etc. Isto em 1979!
Tínhamos como ponto máximo de referência o Hospital e Pronto Socorro Municipal onde trabalhara e a rede contratada pelo INAMPS. Montamos duas unidades de pronto atendimento estrategicamente localizadas em regiões de saúde e fizemos a rede básica com unidades básicas de saúde, unidades médico-odontológicas escolares, unidades avançadas de saúde (pequenas unidades colocadas na região mais periférica da cidade e na zona rural). Estava montada a rede. Fomos buscar profissionais generalistas por concurso público e agentes comunitários de saúde selecionados nas comunidades, treinados e contratados pela Prefeitura. Em São José dos Campos desde 1978 era obrigatório o concurso público.
A proposta era de prestar os primeiros cuidados com saúde e a certeza de que estávamos corretos era a Declaração de Alma-Ata da reunião da OMS-UNICEF em 1978. Em cada UAS,UBS e UPA estava fixado um poster com a Declaração de Alma Ata cujo conteúdo era o norteador de nossa ação. Não estávamos sozinhos pois, outros municípios se postavam juntos pelo mesmo ideal e ação de prestar os primeiros cuidados de saúde à população.
Fazíamos parte do MOVIMENTO MUNICIPALISTA DE SAÚDE. Posso citar entre eles e com destaque: São José dos Campos, Campinas, Londrina, Niterói, Piracicaba, Sorocaba, Rezende, Cabo Frio, São Bernardo do Campo, Osasco, Guarulhos, Lajes em Santa Catarina, Nova Esperança no Espírito Santo. Companheiros de destaque: Nelsão, Sebastião de Moraes, José Carlos Silva, Dalmo Feitosa, Tomasini (o mesmo com quem convivi em Manguinhos nos idos de Fiocruz em final de 60 e início de 70) e tantos outros. Trabalhávamos com a comunidade com destaque para a parceria com as associações de moradores e os núcleos de Comunidades Eclesiais de Base da Igreja Católica na pujança das catacumbas, escondidos da ditadura militar.
Este era o chamado MOVIMENTO MUNICIPALISTA DE SAÚDE que tentam sempre localizar como sendo mais à frente, com outros atores e desconhecendo a proposta municipalista de implantação dos primeiros cuidados com saúde desta época. A academia pouco escreve sobre estes feitos da década de 1970 que foi um dos maiores movimentos de inflexão da saúde no Brasil. O novo pensamento sanitário teve nos municípios a grande oportunidade de ser posto em prática o que não conseguia nem no Ministério da Saúde, nem nas Secretarias Estaduais de Saúde.
Outro papel importante foi São José dos Campos como experiência piloto de testagem das AIS – Ações Integradas de Saúde em 1981. Foi o primeiro município brasileiro a receber recursos diretos do INAMPS para desenvolver ações ambulatoriais. Este projeto acabou sendo implantado no Brasil em 1983 a começar com força e coragem em São Paulo com a presença forte e decisiva do Nelsão e do Pinotti.
Mudou-se a administração municipal e por uma briga política de prefeito com o ex-prefeito, ex-companheiros como vereadores e deputados, tivemos o processo estacionado de municipalização estacionado com muitos servidores da saúde demitidos, incluindo-se Agentes Comunitários de Saúde, que não obstante concursados e contratados, não tinham estabilidade.
Fui exonerado no final de 1982, poucos dias antes das eleições; Mais tarde por concurso público de sanitarista para o Estado de São Paulo, voltei às funções públicas na Diretoria Regional de Saúde do Vale do Paraíba uma das 12 do Estado de SP. Dirigi a área de vigilância epidemiológica com as quatro dezenas de municípios do Vale do Paraíba, Litoral Norte e Região Serrana da Mantiqueira. Uma outra grande guinada na vida onde, mais uma vez, fui para os bancos da universidade da vida aprender mais saúde pública. Se hoje sou um apaixonado pela epidemiologia como a ciência mais importante da saúde, devo aos anos como Diretor de Vigilância Epidemiológica do Vale do Paraíba, como discípulo do Mestre Vranjac, ceifado ainda muito jovem.
Uma das grandes vitórias foi termos conseguido emplacar na Lei 8080 que a epidemiologia deva ser a base para o planejamento, escolha de prioridades e a alocação de recursos. Hoje a luta maior é tirar o véu deste artigo e torná-lo realidade. Como é difícil. Nem o próprio Ministério da Saúde que poderia sozinho fazer isto, nunca o fez formalmente, ainda que várias ações sempre tenham sido determinadas pelos critérios epidemiológicos.
Nesta época dava aulas de saúde pública na Faculdade de Medicina de Taubaté onde em 1986 iniciamos os cursos de especialização em Saúde Pública (25 anos comemorados neste ano de 2011). Tivemos a colaboração individual de alguns professores da Preventiva da UNICAMP, já que institucionalmente, mesmo depois de assumido o compromisso tiveram que voltar atrás, não podendo assumir o curso. Quantos novos sanitaristas se formaram nestes anos! Muitos continuaram suas carreiras e assumiram postos nas administrações municipais.
Neste tempo todo estive nas discussões da evolução da Saúde Pública e da proposta de um sistema universal e mais igual. Das AIS aprofundou-se o sistema agora denominado SUDS –Sistemas Unificados e Descentralizados de Saúde, aprimoramento das AIS, iniciado em 2007. Por vezes de perto e outras indiretamente de longe, participava desta discussão toda. Ainda que sempre me tivessem colocado dentro da VIIIa. Conferência Nacional de Saúde, alguns alegando terem me visto por lá, lá não estive. Estava na Secretaria de Saúde do Estado com muita gente hierarquicamente superior a mim. Fiquei tomando conta da casa, do curso de saúde pública e de outras tarefas e embora militante, discutindo todos os temas, no momento de consagração não estive lá.
Muitas pessoas nem raciocinam que o sucesso da VIII Conferência Nacional de Saúde, com presença dos cidadãos usuários só se deu pela implantação das AIS que introduziram na esfera estadual e municipal as COMISSÕES INTERINSTITUCIONAIS DE SAÚDE com presença obrigatória dos cidadãos usuários. Este foi o determinante ainda que esquecido. Outra questão importante que a efervescência de idéias debatidas na VIIIa só se deu pós um trabalho de formiguinha de discussão destes temas nos vários municípios brasileiros. Não eram apenas idéias de iluminados, da academia ou de militantes técnicos, mas de anseios do povão. Lembro da importância da Igreja Católica com as Comunidades Eclesiais de Base e que muito contribuiu colocando como tema de uma das campanhas da fraternidade a discussão de SAÚDE PARA TODOS.
Neste ano de 1986, nas escadarias da VIII foi oficialmente criado o CONASEMS como instituição representativa das Secretarias Municipais de Saúde. Aquilo que fazíamos desde 1979 mobilizando os Municípios e realizando os primeiros Congressos Nacionais de Secretarias Municipais de Saúde (Niterói, Campinas, Belo Horizonte, São José dos Campos) agora virava, em boa hora, o Conselho Nacional de Secretarias Municipais de Saúde – CONASEMS. O movimento foi crescendo e hoje já consta de duas leis uma desde 1990 e outra 21 anos depois em 2011.
Em 1988 fiz meu mestrado agora aceito na FSP-USP. Sou persistente! Aproveitei-me de uma circunstância muito rica que foi a adoção de meu quinto filho o Francisco e consegui um tempo para isto. Ainda que tenha feito créditos e estágio em 1988 e escrito minha dissertação em 1989 só fui defendê-la em 1995 depois de minha passagem pela Secretaria Municipal de Saúde e como Secretário Nacional de Assistência à Saúde, no Ministério da Saúde.
Voltei à prefeitura como Secretário Municipal de Saúde em 1989 depois de seis anos de “exílio”. Foi numa volta muito rica e interessante e com o mesmo prefeito com quem já trabalhara seis anos antes. Novamente centrei o trabalho na rede básica, na construção do mesmo modelo iniciado em 1978 de fortalecimento dos primeiros cuidados de saúde sem parar neles, mas dando continuidade à linha de cuidado.
Havia participado nestes anos de debates, fóruns, redações a muitas mãos na obrigação de contribuir para a construção de um sistema de saúde universal e integral. A nós cabia mostrar na prática que era viável o novo.
Vale lembrar que aqui ficaram bem claras três vertentes do movimento da reforma sanitária. Uma delas a dos pensadores e formuladores da política que habitavam faculdades e outros espaços da intelectualidade da saúde. Outra de simpatizantes das idéias e que as defendiam mas não as operavam pelo espaço que ocupavam e que muitas vezes não era o operacional. Na terceira uma turma grande que operava o sistema de saúde no fazer do dia a dia fazendo o atendimento às pessoas em unidades básicas de saúde, em unidades especializadas e em hospitais. Além da defesa da proposta tiveram o ônus grande de implantá-las e enfrentar todos os contrários da administração e dos serviços nos moldes antigos. Por vezes até muita crítica da academia.
Lembro que os textos científicos que divagavam sobre o sistema de saúde circulavam restritamente sem nenhum acesso aos operadores do sistema que não frequentavam bibliotecas especializadas e que não assinavam estas revistas. Exceção à revista do CEBES que, ainda que restrita, tinha maior divulgação e abordagem menos acadêmica e mais prática. Nesta época dos textos operacionais circulavam por “transmissão oral” ou por cópia reprográfica e que jamais serão encontrados nas bibliotecas universitárias sem nunca serem indexados. São nestes textos que deve ser estudado este período de construção do SUS no Brasil e que infelizmente não fazem parte das citações bibliográficas aceitáveis pelas regras acadêmicas.
Foi uma luta inglória. Organizados os municípios em cada estado e em nível nacional, participei de todo o movimento da implantação prática do SUS. Fui por quatro anos da diretoria do Conselho Estadual de Secretários Municipais de Saúde do Estado de São Paulo inclusive como membro do Conselho Estadual de Saúde. No âmbito nacional militei no Conasems os quatro anos como força auxiliar de apoio e num período como Secretário da instituição. Sob responsabilidade dos municípios ficou a organização da IX Conferência Nacional de Saúde. Homenageio aqui o Presidente do CONASEMS à época, José Eri Medeiros Secretário de Saúde de Venâncio Ayres no Rio Grande do Sul. Incansável, congregou os Secretários na primeira fase de organização do CONASEMS e comandou a organização da IXa. Conferência Nacional de Saúde. Um líder democrata que conseguiu congregar pessoas e dar espaço a todos que quisessem trabalhar pela causa comum de implantação do SUS. O CONASEMS: um gigante sem sede e com diretoria itinerante com seus arquivos todos numa parta rosa carregada debaixo do braço.
A primeira grande missão era tirar do papel uma lei explicativa do SUS constitucional, para que ele oficialmente pudesse começar a funcionar pois ainda vivíamos com o preceito do SUS, mas com as regras e práticas do SUDS. Foi a fórceps que conseguimos ter uma redação comum construída a muitas mãos. Quem disser que escreveu a Lei 8080 está no mínimo faltando com a verdade. Fomos vários os escritores: uns com idéias, outros com críticas e outros escrevendo a síntese da idéias. Foi uma construção coletiva que culminou com o projeto da lei 8080, que teve como eixo as propostas do Movimento Municipalista de Saúde da década de 70, da Reforma Sanitária e das deliberações da VIII Conferência Nacional de Saúde da década de 80.
Foram idas e vindas até a aprovação do texto em setembro de 90 o que sinalizava definitivamente na implantação do SUS. Collor, após aprovação do Congresso vetou duas questões: financiamento e participação da comunidade. Estava, em setembro criado o impasse pois nem Collor retirava os vetos, nem o Congresso voltava atrás aceitando os vetos. Foi Alceni o negociador competente que conseguiu convencer o Collor de que poderia sair uma nova lei substitutiva do texto dos vetos. Após três meses de impasse saiu a lei 8142 que completava a 8080 e só tratava da participação da comunidade e do financiamento da saúde.
Voltamos para nossas casas na antevéspera do Natal de 1990. Foi o fim de nossa missão de idas e vindas e permanências por dois anos a Brasilia e achamos que agora era só implantar. Ledo engano pois ao chegarmos em nossos municípios o fax já vomitava páginas e mais páginas da Nob-91 que contrariava o texto legal recém aprovado. Começava a ilegalidade pois promulgada pelo INAMPS e não pelo Ministério da Saúde.
O fulcro da ilegalidade era que as três esferas de governo que tinham a responsabilidade constitucional de fazer saúde eram reduzidas, duas delas – estados e municípios – a meros prestadores de serviços ao INAMPS!!!
Os municípios entraram na justiça e o judiciário recusou-se, ainda uma vez, a entender o que se passava e a reconhecer que a medida infringia as leis recém publicadas. Depois da NOB 91, no mesmo espírito, saiu a 92 ainda com o intuito de tratar municípios e estados como prestadores do INAMPS-MS. Era a repetição das AIS e do SUDS que a sua época, antes da CF, configurara-se num grande avanço. A negação das Leis 8080 e 8142.
A idéia mestra era derrubar este tipo de norma e fazer das três esferas de governo responsáveis pela legalidade de garantir o direito à saúde de todos os cidadãos. Acabar de vez – no espírito de Art.35 da Lei 8080, com o poder de quem arrecadava dinheiro para todos e queria ser o único a determinar o que e como fazer. Os municípios e estados transformados em prestadores de serviços, tudo que o INAMPS sabia fazer antes da CF e das Leis.
Neste meio tempo veio a queda do Collor e a mudança de governo. O CONASEMS teve uma participação forte no movimento de derrubada do Collor. Participou oficialmente de todos os atos e foi signatário de todos os documentos.
Esta presença levou a que ao CONASEMS fosse oferecida uma posição no Ministério da Saúde para implantar o SUS constitucional e legal. O CONASEMS havia saído de seu Congresso Anual e da IX Conferência Nacional de Saúde e tinha claras quais as propostas defendia em relação à implantação do SUS. Fez uma lista delas e foi ao Ministro Jamil Haddad para mostrar o que o CONASEMS pretendia que nada mais era do que “ter a ousadia de cumprir e fazer cumprir a lei”. Na reunião falou Eri Medeiros e disse ao Ministro Haddad: “Ministro, o CONASEMS, está totalmente comprometido com a implantação do SUS. Para que ele assuma qualquer papel em seu Ministério ele trouxe aqui uma lista de suas posições e do que quer que aconteça.” Passou ao Ministro o documento com a proposta para que ele lesse. Ao acabar a leitura, Haddad em seu jeitão alegre e expansivo, deu uma boa gargalhada e disse:”Tenho uma semana de Ministro da Saúde e de manhã, de tarde e de noite, me chegam inúmeros pedidos e indicações para ocupar cargos. Vocês de forma inusitada me chegam com uma lista de coisas que indicam para fazer e dizem que só virão ao Ministério se for para ajudar a fazê-las!!! Vocês são muito ousados”. Depois, sorrindo, disse: “Vocês devem indicar alguém pois este será meu programa de governo da saúde: ter a ousadia de cumprir e fazer cumprir a lei”.
Foi assim que o CONASEMS assumiu a Diretoria Nacional do SUS. Estranho nome mas era a diretoria responsável pela implantação do SUS já que SUS era o Sistema Único de Saúde obrigação das três esferas de governo. Esta Diretoria estava acumulada com a Diretoria de Controle e Avaliação do INAMPS que mais tarde deveria ser extinta.
Entre tantos e, contrariando minha vontade, a escolha para assumir esta Diretoria, em nome do CONASEMS, acabou em meu nome. Eu tinha, naquele momento, um conhecimento aprofundado da questão do financiamento e do sistema de funcionamento do INAMPS. Isto ajudaria para quem fosse assumir a substituição do INAMPS pelo SUS. Eu vinha de um município de médio porte, São José dos Campos, com uma relação de cerca de 10 anos com o INAMPS.
Tem neste meio uma história de bastidores. Todos sabiam que, o que eu menos queria, era vir para Brasilia, deixar São José dos Campos e minha família, inclusive o Francisco que adotara e tinha com apenas cinco anos. Sabiam que eu usaria isto na argumentação para não aceitar o convite. Deram a volta por cima e o Eri assediou antes minha esposa Emilia e a convenceu de que ela deveria apoiar minha ida para Brasilia. Quando tentei argumentar, como escape, que teria que consultar minha esposa para assumir este compromisso o Eri veio já com a autorização dela. Um legítimo “golpe esperto” que me levou a Brasilia para ficar por 90 dias e onde acabei ficando os dois anos e poucos meses do Governo Itamar Franco e dos Ministros Jamil Haddad e Henrique Santillo.
Salários baixíssimos e falta total de garantia de permanência para mudanças radicais, moralmente me impediam de levar para Brasilia mais militantes com experiência na área. Trabalhei com o pessoal que já estava no Ministério como o Flávio Goulart, militante municipalista, professor universitário e ex-secretário municipal de saúde de Uberlândia que muito nos ajudou com sua equipe: Patrícia, Neide, Luiza, Oviromar. Consegui levar o Gilson Caleman, amigo e irmão, para trabalhar comigo no controle e avaliação do INAMPS. Deu uma contribuição ímpar neste momento de construção do SUS.
Mosconi, então deputado federal e amigo pessoal de Itamar, assumiu a Presidência do INAMPS e levou consigo o Adnei, militante municipalista ex-secretário de saúde e prefeito de Poços de Caldas. Fui trabalhar na equipe do Mosconi um grande chefe e empreendedor que entendeu o recado do que se deveria fazer. Mesmo ameaçado não teve medo de enfrentar e fazer o que devia ser feito. Diga-se que tanto ele, como o Ministro Jamil deram total apoio à causa de implantação do SUS.
Éramos considerados estranhos ao Ministério da Saúde e “invasores” em relação ao INAMPS (assim nos julgavam e assim nos tratavam!). Precisávamos levar ao Ministério da Saúde –INAMPS a grande discussão de como implantar o SUS. Foi constituído o GED –Grupo especial de Descentralização com a missão de coordenar a discussão e estratégia. Lá estava outra grande aliada a Beth Barros. Uma discussão ampla em todos os órgãos no Ministério da Saúde centralizados e descentralizados. Foi muito bom. Complementarmente a isto foi sendo escrita uma Norma Operacional Básica para o ano de 1993 colada aos princípios constitucionais e legais do SUS. Três figuras chaves ficaram conosco nesta fase, sem remuneração: Mozart Oliveira, Luiza Jaeger e Denisson Cerqueira, este representando o CONASS.
O projeto foi finalmente concluído em sua essência e publicado o Documento “Descentralização das ações e serviços de saúde – A ousadia de cumprir e fazer cumprir a lei”. Como outro produto anexo a NOB-93, revolucionária como até hoje não se conseguiu repetir, principalmente em relação ao financiamento e à verdadeira descentralização de competências com recursos financeiros descentralizados.
A extinção do INAMPS, que acontecia concomitantemente, foi uma luta inglória com a qual muito sofremos nós poucos de fora. Foi muito penoso fundir duas organizações com cultura, política, histórias e práticas diferentes e diversas para fazê-las assumir o novo, foi muito penoso. Conseguimos a duras penas aprovar a lei de extinção do INAMPS já prevista na Constituição Federal e que achavam que não deveria ser cumprida. Os adversários eram mais poderosos e em maior número que os defensores da constitucionalidade. Extinto o INAMPS em 27 de julho de 1973 a briga ainda continuou por muito tempo e repercute até hoje em alguns bunkers de resistência que não cumpre aqui citar. Mas, que existem e causam estragos. Existem sim!
Na verdade a extinção era da estrutura que se fundiu ao Ministério da Saúde para onde foram transferidos todos os servidores sem perda de direitos. Alguns meses mais e o INAMPS foi para liquidação conforme a lei.
Quero citar alguns avanços de que me lembro, conquistados por quantos trabalhamos no Ministério da Saúde no Governo Itamar, com os Ministros Jamil Haddad, Henrique Santillo e o último Presidente do INAMPS, Carlos Mosconi.
ü A essência da gestão no Ministério da Saúde:1992-1993-1994 foi a aceleração da transferência de poder para estados e municípios e estímulo à participação da comunidade.
ü Debate aberto sobre o processo de descentralização sem imposição e recepcionando sugestões inclusive do Conselho Nacional de Saúde.
ü Abertura total da caixa preta de dados do INAMPS socializando a informação para todos os cidadãos.
ü Edição da NOB-93: a prática da descentralização como processo onde cada ente poderia se colocar em qualquer dos estágios de assunção de competências, responsabilidades com o respectivo componente financeiro.
ü Promulgação do Decreto de transferência de recursos federais a estados e municípios denominada de TRANSFERÊNCIA FUNDO A FUNDO.
ü Correção automática a cada mês, pelo índice oficial, dos valores de transferências e pagamentos num período de desvalorização diária da moeda.
ü Exigência da criação e funcionamento do Fundo e Conselho de Saúde (cumprimento da Lei 8142) para receber recursos federais.
ü Introdução de novos procedimentos e medicamentos na tabela SUS.
ü Introdução por Decreto da comercialização dos medicamentos genéricos (bloqueado pela justiça e só liberado no governo Serra).
ü Introdução por Decreto do Ressarcimento dos Planos de Saúde a serviços prestados pelo SUS (bloqueado pela justiça e ainda sob judice).
ü Valorização do Conselho Nacional de Saúde com submissão mensal das correções de tabela e na discussão e aprovação da NOB-93.
ü Primeira resolução sobre o funcionamento dos Conselhos de Saúde – Resolução 33 que deu origem a 333.
ü Aprovação no Congresso da Lei de Extinção do INAMPS que administrara a saúde dos beneficiários centralizadamente de Brasilia.
ü Implantação de mais mecanismos de controle, mais auditorias, novas críticas informatizadas, combate e diminuição de fraudes em cirurgias múltiplas e em órteses e próteses.
ü Investimento no parque tecnológico com registro no MS de todos os equipamentos da rede e capacitação de 63 engenheiros clínicos e implantação de sistema de manutenção de equipamentos médico hospitalares, estaduais e municipais.
ü Incentivo à implantação do FIDEPS nos hospitais universitários.
ü Na Saúde mental a revolução da classificação dos hospitais de saúde mental, com remuneração diferenciada, o fim da cela forte e mais humanização e qualidade de internação.
ü Implantada a Coordenação de doenças cardiovasculares com definição de critérios de habilitação e qualidade.
ü Melhora dos padrões de atendimento aos deficientes físicos com implantação do fornecimento de órteses e próteses em unidades de saúde estaduais e municipais.
ü Melhora do atendimento de emergência e trauma com implantação do pagamento de serviços pré-hospitalares prestados pelos bombeiros, e melhor remuneração ao atendimento em PS dos acidentes do trabalho para incentivar a maior e melhor notificação.
ü Ampliação do credenciamento de hospitais para transplantes, dentro do SUS.
ü Ampliação do atendimento às famílias que quisessem fazer planejamento familiar incluindo na tabela o pagamento do DIU e diafragma.
ü Aumento de investimento na rede de hemocentros públicos com sua interiorização.
ü Apoio à implantação de micro sistemas de fluoretação de águas em vários estados e municípios através das secretarias de saúde.
ü Na área de vigilância epidemiológica passou a financiar atendimento específico a doenças de notificação compulsória.
ü Introdução do pagamento do pediatra presente à sala de parto.
ü Etc... Etc...
ü Esqueci-me, de propósito, de falar na grande conquista de oficialização do programa de saúde da família introduzindo-o no universo do SUS.
Muitas realizações nem foram aqui elencadas mas houve avanços significativos, uns ainda na maneira antiga de indução a ações via introdução na tabela de procedimentos com remuneração. A maior conquista, sem dúvida, foi caminhar para o cumprimento da CF e das Leis do SUS num avanço ainda que lento, continuado.
Infelizmente, mesmo tendo-se feito muita coisa, nos anos seguintes com outros governos não houve preocupação de se buscar o cumprimento das leis. Ainda temos que lamentar que questões essenciais não foram conquistas como a questão da partilha dos recursos nacionais para estados e municípios. A remuneração por procedimentos não mudou e apenas se introduziu um pagamento “procedimento símile” com maior amplitude, mas ainda por ações: atenção básica, equipe do PSF, equipe de saúde bucal, ACS, vacinações etc. etc. Cumprir a lei, nem pensar!
Saí do Ministério da Saúde e voltei a meu município por mais três anos para completar o tempo para minha aposentadoria. Não obtive mais tolerância legal e em 1995 concluí minha dissertação de mestrado sob o tema da avaliação de serviços de saúde.
Aposentado fui reabrir minha matrícula no doutorado que havia deixado por falta absoluta de tempo. Defendi a tese de doutorado quatro anos depois em 2002 sobre o financiamento federal da saúde.
Entre 1969 e 1973 fui caixeiro viajante pelo NIERHS implantando programas para a OPAS. Fiquei mais fixado entre 1974 e 1979. Depois não parei mais, numa tentativa que mantenho até hoje de desmonopolizar o saber. Duas coisas sempre fiz: escrever sobre os mais variados temas de saúde e ministrar aulas e palestras ajudando outras pessoas a aprenderem, como facilitador da difusão do saber.
Sempre adotei o livre uso de meus textos, transparências, slides e depois conjuntos de exposição em PPT. Tinha e tenho certeza de que tudo que sei, copiei de alguém em algum lugar. Nada sintetizei de novo e portanto nenhum direito tenho reservado para o que falo e escrevo pois fazem parte do saber patrimônio da humanidade. Disse e escrevi assim. Mas, recentemente, de uns 10 anos para cá quando surgiu o movimento do copyleft aderi informalmente a ele, pois continuei disponibilizando todos meus textos.
Em meio aos compromissos semanais não tinha tempo para escrever e depois de aderido à internet em 1995 passei a divulgar por ela alguma coisa aos domingos. Já são, desta nova fase, 583 edições do que se denominou DOMINGUEIRA, pois se editava aos domingos. Publico e escrevo até hoje agora já mais sistematizado tendo na primeira página um texto meu; na segundo um texto de algum amigo convidado e na página três coloco notícias da saúde de importância para os militantes e defensores do sistema de saúde. Por vezes os temas se misturam numa mesma domingueira e outras vezes elas são temáticas do começo ao fim: meu texto, o do convidado e as notícias.
Abordo os mais variados temas, mas, têm sido recorrentes nestes anos todos, aqueles que abordam: financiamento da saúde (análise de orçamentos, relatórios de gestão e proposições), fundo de saúde, organização do sistema de saúde, primeiros cuidados com saúde, PEC 169, depois regulamentação da EC-29; comentários a portarias ministeriais as mais diversas; força de trabalho em saúde; privatização de serviços públicos; Organizações Sociais; OSCIPS; dupla porta em hospitais públicos; participação da comunidade na saúde; temas das várias conferências de saúde etc. etc. Todas publicadas em meio eletrônico ou reproduzidas em xerox. Nunca indexadas e pouco citadas em trabalhos acadêmicos como TCCs, Artigos Científicos, Dissertações de Mestrado e Doutorado. Nada além do esperado.
Hoje dou aula em cursos de pós latu senso; algumas aulas como convidado em stritu sensu; participação em bancas de mestrado e doutorado; faço palestras e conferências de saúde ou falo em outros eventos sempre como militância; nos últimos anos presto consultoria ao CONASEMS em especial na área de financiamento representando-o em algumas comissões como a COFIN, SIOPS e ECO-BVS.
Parar? Não imagino quando. O Nelsão meu amigo, professor, guru, irmão de mais de quarenta anos, tem 10 anos de idade a mais que eu. Quando me perguntam: não vai parar? Diminuir o ritmo? Aproveitar da vida? Tenho para estas perguntas embaraçosas sempre uma resposta na ponta da língua: “SÓ PARO DEPOIS DO NELSÃO PARAR”.
Acho que ainda embalarei este sonho de saúde por mais alguns anos (ando na prorrogação, mas quero ir para os pênaltis!). Ajudar as pessoas a viverem mais e melhor. A só morrer bem velhinho, de preferência sem nunca ter ficado doente (impossível!), mas se assim acontecer que a gente possa ajudar a sarar logo e sem sequelas. E se alguém quiser buscar para esta compulsão, um sentido nobre de altruísmo e devoção ao próximo, digo como sempre, que não é, mas apenas um reconhecido interesse de...troca!