Enfim, a regulamentação...
Em 7 de dezembro de 2011, a
regulamentação da Emenda Constitucional No. 29 (EC-29) foi aprovada pelo
Senado. Foram mais de 10 anos de vai-e-vem, envolvendo o Senado, a Câmara, os
Ministérios Econômicos, o Ministério da Saúde e as Secretarias de Saúde dos Estados
e Municípios. Discussões apaixonadas se realizaram entre várias correntes de
pensamento e a questão do financiamento virou uma espécie de “samba de uma nota
só”.
A proposta de regulamentação
aprovada não foi aquela que as autoridades econômicas queriam. O Senado
sabiamente evitou a criação de mais um imposto ou contribuição social que,
inicialmente vinculado à saúde, acabaria indo pouco a pouco para a vala comum
da imensa carga fiscal brasileira, através dos já conhecidos processos de
desvinculação das receitas da União. Também não foi a que o Câmara enviou ao
Senado, a qual aumentaria anualmente em R$31 bilhões (com base no orçamento de
2011) os gastos federais com saúde, através de sua vinculação a 10% das
receitas fiscais da União. No entanto, no dia 16 de janeiro de 2012, a Lei
Complementar que regulamenta a EC-29 foi sancionada pela Presidência da
República vetando 15 trechos do texto aprovado pelo Senado no início de
Dezembro.
O que prevaleceu na decisão
do Senado foram critérios para uma alocação orçamentária da saúde próxima aos
patamares atualmente existentes. O mais importante, no texto da regulamentação,
foi a definição do que se deve considerar como gasto em saúde, a fim de evitar
que os Tribunais de Contas acabassem por julgar procedentes definições
oportunistas de gasto em saúde utilizadas pelos Estados e Municípicios para
reduzir às transferências ao setor.
O que prevaleceu nos vetos
da Presidência foi a eliminação da correção dos recursos federais em
conformidade com a variação do PIB e o uso de contas separadas para o setor, de
acordo com as fontes de receita. Com isso, o Governo manteve sua disposição em
controlar os recursos através da Conta Única do Tesouro, evitando que ganhos
financeiros (extra-orçamentários) fossem transferidos ao setor saúde. Ao por um
freio no aumento dos recursos federais, .o governo implicitamente aumenta a
responsabilidade dos Estados e Municípios no financiamento da saúde, o que está
sendo alvo de críticas fundadas de governadores e secretarios estaduais de
saúde. Afinal de contas, boa parte do que estava sendo feito pelo Congresso era
para aumentar os recursos federais para o setor.
No entanto, foi mantido na
Lei Complementar o texto do Senado que define o conceito de gastos com saúde,
evitando que os Estados e Municípios pudessem mascarar outros gastos,
classificando-os como gastos com saúde. Além das definições impróprias de gasto
em saúde, alguns governos sub-nacionais não alocavam os percentuais de 15% e
12% das receitas correntes dos Municípios e Estados e com isso, os recursos não
aumentavam como deveriam. De acordo com os dados do SIOPS/MS para 2009 (os
últimos disponíveis), dos 27 Estados brasileiros, apenas quatro não aplicaram o
mínimo de 12% das receitas próprias em saúde em 2009. Eram eles Paraná (9,8%),
Espírito Santo (11,8%), Rio Grande do Sul (7,2%) e Mato Grosso (11,7%). No
entanto, uma análise mais acurada feita pelo Ministério da Saúde mostrou que,
além destes, sete Estados não haviam alcançado o percentual por classificarem
erroneamente suas prestações de contas junto ao sistema (São Paulo, Goiás,
Ceará, Pará, Minas Gerais, Maranhão e Rio de Janeiro). Dentre as despesas
classificadas erroneamente como gastos em saúde estão gastos com hospitais de
servidores públicos, saneamento básico, abastecimento de água com cobrança de
taxas, restaurantes populares e programas de transferência de renda, como o
bolsa família. Este problema não ocorre com os municípios, onde apenas 11 (dos
mais de 5.500) não conseguiram aplicar o mínimo de 15% em 2011, segundo os
dados do SIOPS.
Não mais desculpas...
A falta de financiamento tem
sido sempre o bode espiatório para justificar os problemas do sistema de saúde
brasielrio. E como é conhecido, estes problemas não param de crescer. Entre
dezembro de 2002 e outubro de 2011, de acordo com a Pesquisa IBOPE-CNI, a
questão da saúde passou da segunda para a principal preocupação dos
brasileiros. Uma pesquisa de opinião especial do IBOPE-CNI(1) recém publicada
(janeiro de 2012), mostrou que 61% da população brasileira considera o serviço
público de saúde péssimo ou ruím E 85% da população não percebe avanços no
sistema público de saúde do país nos últimos três anos. Cerca de 55% considera
a demora no atendimento o principal problema do sistema público de saúde em sua
cidade.
A desculpa tem sido a de que
o sistema de saúde poderia ser melhor se houvessem mais recursos para seu
financiamento. Mas, embora na pesquisa IBOPE-CNI a esmagadora maioria da
população (95%) considere importante destinar mais recursos para a saúde, 82%
acham que recursos adicionais poderiam ser obtidos se o governo acabar com a
corrupção e somente 4% endossariam a proposta do governo de criar novos
impostos para financiar a saúde. A maioria atribui melhores notas aos serviços
privados do que aos públicos e 63% concorda com a transferência da gestão dos
hospitais públicos para o setor privado.
Com a nova Lei complementar
que regulamenta a EC-29, a definição dos recursos federais para o setor e o fim
da pressão diária para sua votação, os governos em todas as esferas, vão ter
que arregaçar as mangas e não buscar mais desculpas para justificar o
descontentamento da população. Terão que gastar melhor os recursos que tem, se
quiserem melhorar os resultados. Terão que saber quanto precisam gastar a mais
para cumprir com os direitos constitucionais da população e dar valor a cada
centavo que recebem do orçamento. Terão que acompanhar milimetricamente o que
esta sendo feito com os recursos destinados para as emendas parlamentares na
saúde e vão ter que buscar saídas para gastar melhor.
Ao final das contas, o
Ministério da Saúde acabou recebendo em 2012 mais do que esperava. A proposta
do Orçamento da União para 2012, aprovada em 23 de dezembro de 2011 pelo
Plenário do Congresso, vai destinar ao Ministério R$ 92,1 bilhões; ou seja,
R$11,2 bilhões adicionais aos recursos aprovados em 2011 (13,8% a mais). Nada
mal para quem esperava receber um adicional de R$31 bilhões escalonado em 4
anos, caso fosse aprovada a proposta de 10% das receitas da União. Se esse adicional,
proposto pela Câmara, fosse parcelado entre 2012 e 2015, o Governo receberia
somente R$7,6 bilhões em 2012.
O que fazer com os recursos
adicionais?
Não é pela existência de
cortes nos gastos federais que a saúde no Brasil apresenta problemas. A tabela
1 mostra que entre 2007 e 2011, os recursos orçamentários autorizados para a
pasta da Saúde aumentaram de R$53 para R$81 bilhões. Muitos argumentam que a
participação do Ministério da Saúde no orçamento federal vem decrescendo, o que
é verdade. Mas isso tem a ver com aumento dos gastos públicos em outras áreas
em proporções maiores que o aumento dos gastos em saúde (2).
Tabela 1
Recursos Autorizados, Pagos
e Porcentagem de Execução Orçamentária dos
Recursos do Ministério da
Saúde: Brasil: 2007-2011
Portanto, não é de hoje que
o Governo vem aumentando os gastos federais com saúde e a regulamentação da
EC-29 vai somente consolidar esta tendência. Mas como o governo vai gastar este
adicional de recursos? O Congresso, ao que parece, já tem algumas propostas.
Segundo o Deputado Tarcísio Perondi, da Frente Parlamentar de Saúde, os
municípios com menos de 50 mil habitantes poderão receber até R$2,2 bilhões
para a construção de postos de saúde. As emendas parlamentares da saúde também
tiveram aumentado seu teto, dado que cada deputado e senador passaria a
destinar (dos R$15 milhões de recursos discricionários do orçamento a que tem
direito) no mínimo cerca de R$2 milhões para o fortalecimento do SUS. Segundo
os cálculos do Deputado Perondi, a soma total das emendas ligadas a saúde
chegará em 2012 a R$6,3 bilhões (ou seja, quase 7% do total do orçamento da
saúde).
Por outro lado, ainda que os
recursos venham aumentando, o gasto real do Ministério da Saúde tem sido muito
aquém do autorizado pelo Orçamento. A Tabela 1 mostra, na última coluna, a
porcentagem de execução orçamentária dos recursos do Ministério da Saúde entre
2007 e 2011. Nos últimos anos sistematicamente mais de 10% dos recursos deixam
de ser pagos, o que representa um valor muito elevado frente ao clamor pela
falta de recursos para o setor que frequentemente é usado como desculpa.
Em matéria publicada no
Jornal Valor Econômico de 28 de outubro de 2010, o reporter Ribamar Oliveira
relata que o Tribunal de Contas da União (TCU) concluiu que o governo federal
não honrou com o gasto mínimo em saúde nos anos de 2007 e 2008 , em função do cancelamento
das despesas, empenhadas nesses dois anos incluídas como restos a pagar. Antes
da regulamentação da EC-29, vigorava a regra definida no artigo 77, do Ato das
Disposições Constitucionais Transitórias, nas quais as despesas mínimas com
saúde deveriam ter como parâmetro o valor efetivamente empenhado no ano
anterior corrigido pela variação nominal do Produto Interno Bruto (PIB).
Segundo o jornalista, a aplicação deste critério aos gastos com saúde em 2007 e
em 2008 levou o TCU a estimar que R$ 785 milhões de recursos empenhados como
restos a pagar não foram gastos nos exercícios posteriores. Por causa disso, os
ministros do TCU decidiram, em acórdão aprovado no dia 6 de outubro de 2010,
determinar que os Ministérios da Saúde, Fazenda e Planejamento deveriam
garantir, mediante dotação específica, o montante equivalente aos valores de
restos a pagar que foram cancelados, ou cuja vigência tenha expirado e que
foram considerados para fins de cumprimento do limite mínimo com saúde. Essa
decisão dos ministros do TCU valeria até que fosse regulamentada a Emenda
Constitucional 29, mas na prática não foi aplicada.
Em síntese, apesar de ter
contado com mais recursos e clamar por mais financiamento, o setor público de
saúde no Brasil não tem gasto a totalidade do orçamento disponível nem dado
prioridade ao que deve ser priorizado em matéria de gasto com saúde. Muitos
continuam culpando o sub-financiamento pelos problemas de saúde apontados pela
população. Mas como revelam os dados da última pesquisa IBOPE-CNI, a população
brasileira parece estar descobrindo que, com os recursos públicos disponíveis,
se poderia fazer mais ao se buscar soluções de gestão mas eficientes ou reduzir
a corrupção setorial. Está na hora de abandonar o discurso monotônico do
financiamento e buscar alternativas e soluções para apoiar o Governo na
melhoria da eficiência e da equidade na saúde, o que traria maiores beneficios
aos cidadãos brasileiros, especialmente os mais pobres, que dependem do SUS.
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