André Medici é economista, com
mais de 30 anos de experiência em temas de economia da saúde e políticas
sociais no Brasil e no exterior.
A Constituição de 1988 definiu um
conjunto de direitos à saúde para todos os brasileiros, sem explicitar como
alcançá-los, a que custo e com base em que estratégia. O projeto do SUS patinou
entre 1988 e 1994, em grande medida, em função da instabilidade econômica, da
falta de uma estratégia de implementação e da incapacidade do governo de
deliberar corretamente os primeiros passos para o funcionamento do sistema. A
situação melhorou a partir de 1994. No rastro da estabilização econômica,
iniciaram-se estratégias para implementar o SUS.
Alguns exemplos dessas
estratégias: descentralização das políticas de saúde e transferência de
hospitais federais para as esferas locais, adoção de modelos mais eficientes de
gestão de hospitais públicos e definição dos marcos para a melhoria dos sistemas
de informação do SUS (cartão SUS e mecanismos de acompanhamento dos gastos
públicos setoriais). A partir de 2003, os governos locais passaram a liderar as
inovações necessárias para alcançar uma saúde de melhor cobertura e qualidade.
Estados como São Paulo inovaram com a criação de ambulatórios médicos de
especialidades que funcionam 24 horas por dia. Minas Gerais implantou redes
temáticas de saúde e introduziu mecanismos de pagamento por desempenho aos
profissionais. O Rio de Janeiro lançou as Unidades de Pronto Atendimento 24
horas, para atender a população não coberta por atenção primária. Curitiba
gerou grandes inovações em atenção materno-infantil, entre outros exemplos.
Apesar de todas essas mudanças, a
população brasileira continua tendo uma visão pouco alentadora das políticas de
saúde no Brasil. Em 2011, a saúde era o maior problema na vida de 52% dos
brasileiros, não havendo outro problema que o superasse. Entre dezembro de 2011
e março de 2012, o percentual de aprovação da política de saúde implementada
pelo atual governo cresceu de 30% para 34%, mas cerca de 63% dos brasileiros,
de acordo com uma pesquisa CNI-Ibope, desaprovavam a política de saúde do
governo.
Por que os brasileiros avaliam
mal as políticas governamentais de saúde? Porque o tempo de espera para o
atendimento é muito elevado e maior entre os mais pobres e entre aqueles
situados nas regiões onde os serviços de saúde não estão bem organizados.
Porque faltam médicos e profissionais de saúde para o atendimento,
especialmente nos pequenos municípios ou nas áreas de difícil acesso. Porque
faltam medicamentos básicos nos serviços de saúde, levando os pacientes a
comprar medicamentos por aconselhamento de amigos, parentes ou farmacêuticos,
gastando boa parte de sua renda com isso. Porque a atenção básica não tem
aumentado na velocidade suficiente para integrar os mais pobres aos serviços de
saúde.
A estratégia de saúde da família
(ESF), que, entre 1994 e 2002, aumentou a cobertura de 0% para 32% dos
brasileiros, registrava somente 52% da população em 2010, quando o esperado era
que alcançasse entre 65% e 70%, para incluir com folga os mais pobres. E o pior
é que, de acordo com os dados DataSUS, a população registrada às ESF baixou de
52% para 49% entre 2010 e 2011. Quase 40% do decil mais pobre da população
brasileira não tem acesso ao Programa de Saúde da Família ou a qualquer tipo de
estrutura de atenção básica de saúde.
Estariam os problemas que levam a
população brasileira a avaliar mal o governo na área de saúde relacionados à
falta de financiamento público para o sistema de saúde? É díficil dizer. Não é
pela falta de aumento de gastos federais que a saúde no Brasil apresenta
problemas. Entre 2007 e 2011, os recursos orçamentários autorizados para a
pasta da Saúde aumentaram de R$ 53 bilhões para R$ 81 bilhões. Muitos
argumentam que a participação do Ministério da Saúde no Orçamento Federal vem
decrescendo, o que é verdade. Mas isso tem a ver com aumento dos gastos
públicos em outras áreas, em proporções maiores que o aumento dos gastos em
saúde.
Apesar de contar com mais
recursos, o setor público de saúde no Brasil não tem estabelecido as
prioridades de seus gastos
Apesar de ter contado com mais recursos e de
clamar por mais financiamento, o setor público de saúde no Brasil não tem
estabelecido reais prioridades em matéria de gastos. Para priorizar o uso dos
recursos públicos em saúde, o governo deveria tomar uma série de medidas,
cabendo destacar:
1. Definir o que vai entregar de
serviços de saúde à população – O governo deveria definir de forma precisa que
bens e serviços de saúde devem estar cobertos em função de necessidades
epidemiológicas, evidências clínicas e recursos disponíveis. Deveria
estabelecer mecanismos legais para evitar que algumas pessoas tirem vantagem do
sistema tendo acesso a bens e serviços que não estão contidos no conceito de
cobertura de saúde. A maioria dos países desenvolvidos circunscreve o conceito
de integralidade em saúde, usando os critérios de prioridades epidemiológicas,
eficiência em função do custo dos procedimentos e limitações orçamentárias.
2. Melhorar a regulação e a
governança do setor – Ainda que o Brasil tenha avançado em soluções
custo-efetivas para a cobertura dos sistemas de saúde, as experiências são
muito limitadas. Ainda é um fato que o sistema de saúde brasileiro não tem um
projeto sistemático para integrar os cuidados de promoção e prevenção, atenção
básica e atenção de média e alta complexidade, reduzindo os custos gerenciais e
possibilitando um cuidado sequencial em todas as etapas do atendimento.
Aperfeiçoar a regulação e a governança na saúde passa por melhorar a gestão dos
serviços pela definição de uma nova estrutura administrativa, que garanta
autonomia e eficiência de gestão nas redes e unidades de saúde do SUS.
3. Estabelecer maior
complementaridade entre o SUS e os planos privados de saúde – A saúde
suplementar e o SUS mantêm muitas duplicações de cobertura e subsídios
indiretos do governo às operadoras de planos. A melhor forma de evitá-los é
gerar incentivos para que aqueles que detêm planos de saúde não utilizem o SUS,
ou então, quando o usarem, que paguem pelos serviços sem que isso garanta
privilégios ou portas diferenciadas de acesso. Os mecanismos de ressarcimento
do SUS usados até agora não são suficientes para devolver ao SUS a grande fatia
de recursos que as operadoras de planos de saúde acabam drenando do sistema ao
não impedir que seus usuários utilizem gratuitamente o SUS.
4. Melhorar o acesso e a
qualidade dos serviços de saúde – Isso significa dar prioridade à cobertura às
áreas mais desprovidas, canalizando recursos extraordinários do SUS, orientando
e dando assistência técnica aos Estados e municípios para a melhoria da
qualidade das instituições, dos recursos humanos e dos processos de gestão em
saúde nessas áreas.
5. Gerar instrumentos de
monitoramento e avaliação da saúde – O Ministério da Saúde tem um sistema de
informações de grandes proporções. Esses dados podem ser usados para gerar
sistemas de indicadores confiáveis, que mostrem onde estão os problemas. Nos últimos
anos, no entanto, a avaliação da saúde ficou mais restrita aos Estados e aos
municípios, que recebem recursos segundo seus resultados. Houve avanço na
cultura de avaliação nas administrações estaduais e municipais, graças a
contratos com organizações sociais ou a parcerias público-privadas. Todos os
contratos que envolvem metas e resultados deveriam estar acessíveis na web,
para ser acompanhados não somente pelo governo, mas também pela sociedade
civil.
6. Tornar mais eficiente o
financiamento do setor – Muitos continuam culpando o subfinanciamento pelos
problemas de saúde. Mas o país parece estar descobrindo que com os recursos
públicos disponíveis daria para fazer mais, ao buscar soluções de gestão mais
eficientes ou reduzir a corrupção. Está na hora de abandonar o discurso
monotônico de aumentar recursos e buscar alternativas para apoiar o governo na
melhoria da eficiência e da equidade na saúde.
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