segunda-feira, 2 de julho de 2012

Regionalizando a Descentralização: Região de Saúde como imposição constituconal ou como ato de vontado dos entes federativos ?

Lenir Santos Instituto de Direito Sanitário Aplicado (IDISA)

REGIONALIZANDO A DESCENTRALIZAÇÃO: REGIÃO DE SAÚDE COMO IMPOSIÇÃO CONSTITUCIONAL OU COMO ATO DE VONTADE DOS ENTES FEDERATIVOS?

Lenir Santos1

1 É Advogada, doutora em saúde pública pela UNICAMP, especialista em direito sanitário pela USP e coordenadora do curso de especialização em direito sanitário IDISA-SÍRIO LIBANÊS.

2 Campos GWS, 2006, p. 417.

Antes de entrar na regionalização é importante traçar um breve histórico da descentralização, uma vez que o SUS é de competência tripartida, cabendo a todos os entes federativos cuidar da saúde, o que pressupõe a descentralização das ações e serviços de saúde.

Um dos eixos da Reforma Sanitária dos anos 1970 era a descentralização das ações e serviços de saúde. Depois de anos de um sistema altamente centralizado na União, seguido de anos de regime antidemocrático, além de a saúde não ser um direito e o Sistema Nacional de Saúde estar aquém de todas as necessidades de saúde da população, o pêndulo tombou radicalmente para a municipalização da saúde. Até então, ela era executada essencialmente pela União – ainda que estados e municípios pudessem ter serviços de saúde próprios.

Campos2 reconhece que a descentralização não fazia parte do discurso da esquerda, que defendia o socialismo ou a intervenção do Estado na economia e políticas sociais, sendo a descentralização própria das reformas liberais, e não socialistas. No Brasil, ainda de acordo com esse autor, a descentralização na saúde ganhou ares muito particulares, em razão de a lei ter definido diferentes papéis para os entes federativos na condução da saúde, como se houvesse quase que uma hierarquia quanto aos temas afetos a cada um. Mas, como a regulamentação mais afinada da descentralização não aconteceu de fato, esse processo nunca se completou, ensejando até hoje Lenir Santos Instituto de Direito Sanitário Aplicado (IDISA) 2

omissões, dubiedades e ambiguidades quanto à precisa responsabilidade de cada ente federativo na condução do SUS.

A descentralização na saúde foi denominada de municipalização, no sentido de levar aos municípios responsabilidades pelo cuidado com a saúde, o que na realidade foi feito pela Constituição de 88, ao compartilhar competência pela saúde pública igualmente entre os entes federativos. Ao definir como competência comum da União, dos estados, do distrito federal e dos municípios executar ações e serviços de saúde, nasceu para o município esse poder-dever. Fernandes3 aponta que, ao se falar em municipalização da saúde, parte do poder foi deslocado para os municípios, fracionando-o. Esse é um ponto relevante, tendo em vista que a descentralização de poder sem a descentralização de recursos para seu exercício pode ser mera retórica, e parece que isso aconteceu na saúde, gerando o que Campos4chama de reforma social incompleta.

3 Silva SF, 2001, p. 57.

4 Campos GWS, 2006, p. 301.

Era essencial para a Reforma Sanitária a proximidade do gestor público com o cidadão, o deslocamento ou a divisão do poder no cuidado com a saúde. Essa aproximação, estado e sociedade, permitiria uma maior participação da comunidade na administração local, com a população atuando de maneira mais efetiva nas políticas de saúde, ganhando maturidade e desenvolvendo um sentimento de pertencimento em relação à política pública de saúde.

A descentralização das ações e serviços de saúde, nos ideais da Reforma Sanitária, visava tornar o cidadão mais consciente de seu papel de dono indireto do poder exercido pelo estado, além de buscar maior participação, diálogo e harmonia entre as necessidades de saúde da população e as políticas e programas públicos. Buscava-se um sistema que ficasse próximo ao cidadão, no qual a autoridade pública pudesse conhecer melhor suas necessidades e atuar de pronto, sendo mais facilmente responsabilizada pelos acertos e erros.

Na realidade, era o princípio da subsidiariedade que se fazia presente nas propostas da Reforma Sanitária. O federalismo é uma forma de governo que, por trazer em si a diversidade e a unidade e um pluralismo de interesses que devem ser harmonizados, associa-se amplamente ao princípio da Lenir Santos Instituto de Direito Sanitário Aplicado (IDISA) 3

subsidiariedade. Esse princípio é o meio pelo qual o federalismo se realiza, unindo coisas aparentemente opostas, aceitando e harmonizando a diversidade dos interesses dos estados descentralizados.

A descentralização do federalismo – territorial e política – exige plena participação dos poderes periféricos, afastados do poder central e próximos à comunidade, por ser deles a competência de realizar tudo que lhes é possível, restando ao poder central apenas o que não pode ser realizado pelo poder descentralizado.

Esse é o principio da subsidiariedade, que se alicerça na teoria de que tudo aquilo que a comunidade pode fazer por ela mesma não deve ser realizado por uma instância superior. Numa estrutura federal de estado, conforme Torres,5

5 Torres RL et al., 2011, p. 215.

6 Bonavides P, 2011.

nada deveria ser exercido por um poder de nível superior, desde que pudesse ser cumprido pelo inferior. Isso significa dizer que só seriam atribuídas ao governo federal e ao estadual aquelas tarefas que não pudessem ser executadas senão a partir de um governo com esse nível de amplitude e generalização.

Assim, o município prefere ao estado e à União, e o estado à União.

Nessa linha, o municipalismo na saúde ganhou força com a Constituição de 88, que adotou a teoria do federalismo tridimensional,6elevando o município à condição de unidade federativa, com autonomia para se auto-organizar nos termos do disposto no art. 18 da CF, conforme já mencionado neste trabalho.

Um país de tradição municipalista, que rompeu com o modelo do federalismo clássico composto tão somente pelos estados-membros e pelo poder central, inovou na Constituição de 88 ao elevar o município à condição de ente federativo, com autonomia política, legislativa e financeira para gerir assuntos de interesse local, conforme já visto nesse trabalho. Entretanto, esse modelo tridimensional tem sido bastante criticado pelas dificuldades que encerram e pelo fato de, na realidade, nosso modelo federativo ser bastante centralizado, com a União exercendo fortemente seu papel de executora das políticas públicas, atuando apenas como ente repassador de recursos para municípios Lenir Santos Instituto de Direito Sanitário Aplicado (IDISA) 4

que não têm condições de realizar serviços de modo eficiente. Os municípios brasileiros são bastante carentes de capacidades técnico-econômicas, além de haver forte desigualdade sociodemográfica e econômica.

Por isso a Reforma Sanitária, à época, pretendia fossem unificadas as ações e serviços de saúde em redes regionalizadas, com a descentralização de sua execução e consequente conjugação de recursos financeiros, materiais e humanos, além de buscar a permanente cooperação entre as esferas governamentais.

Essa luta foi bem-sucedida com a descentralização política consagrada na Constituição de 88, que conferiu a todos os entes federativos a atribuição de cuidar da saúde, determinando que a direção do sistema público de saúde fosse única em cada esfera governamental.7

7 Exposição de motivos nº 31, de 10 de julho de 1987, do decreto nº 94.657, de 20 de julho de 1987.

8 Bastos CR, Martins IG, 1988, p. 416.

9 Bonavides P, op. cit.

No federalismo o princípio da subsidiariedade é essencial para a concretização da descentralização política e administrativa, tendo sido chamada de “regra de ouro do federalismo” por Bastos. 8Num federalismo cooperativo como o nosso, que se funda na colaboração e solidariedade, diferentemente do federalismo dual, centrado em rígida repartição de competências, combinam-se competências concorrentes e comuns diante da complexidade econômico-financeira da Nação, que precisa ser resolvida de maneira equilibrada e harmônica.

Nesse caso, a colaboração, a solidariedade e a coparticipação são elementos essenciais para sua realização. Contudo, o federalismo cooperativo tem sido severamente criticado, principalmente no caso brasileiro, por concentrar poderes desmesurados na União, impondo um sistema de cooperação subjugado pelo poder político eleitoral, partidário, que atrapalha severamente a imparcialidade política com graves reflexos no desenvolvimento dos municípios.

Bonavides9 tem insistido em dizer que esse tipo de federalismo tem ensejado sua deturpação, com a cooperação reforçando o ente mais forte, a União, e criando uma situação de vassalagem entre poder central e estado-membro. Assim, o princípio da subsidiariedade tem sofrido reveses em nome Lenir Santos Instituto de Direito Sanitário Aplicado (IDISA) 5

da excessiva centralização das políticas públicas nunca voltadas para as necessidades da população, mas servindo a um aparato burocrático e a interesses não tão republicanos e democráticos.

A questão central – e isso se aplica fortemente à saúde – é que no federalismo cooperativo, que deveria se unir ao princípio da subsidiariedade no sentido de apoio, ajuda, colaboração em relação ao ente mais fraco econômica ou tecnicamente com vistas a seu desenvolvimento, tem ensejado forte perda de autonomia, gerando acomodação em relação ao poder central, que passa a ser o que planeja, financia, define a política e a programação. Esse estado de acomodação e costume de aceitar decisões supercentralizadas dos entes federativos reforça o centralismo, arrefece a subsidiariedade e concentra poderes na União, em detrimento do poder local e regional.

A cooperação só faz sentido quando absorve o princípio da subsidiariedade, fortalecendo os poderes locais e regionais, melhorando suas condições políticas e econômicas e elevando sua condição econômica. Na saúde isso é essencial, especialmente por ser um sistema regionalizado, nascido da conjunção de entes federativos de determinado território regional. A região de saúde para lograr efeito deve assentar-se na cooperação e coordenação entre os entes federativos.

A saúde se viu, na Constituição, reforçada quanto à sua descentralização pelo fato de o art. 198, I, impô-la como diretriz do SUS. Contudo, para quem conhece a saúde por dentro, sabe o quanto foi maculado o princípio da subsidiariedade, da cooperação ínsita nas competências comuns e concorrentes (federalismo cooperativo e solidário).

Apesar dos avanços do SUS nacional e da descentralização, assistiu-se, em vários momentos, um Ministério da Saúde10 intensificado em sua dimensão político-administrativa e financeira, impondo um planejamento nacional e não regional ao organizar o SUS de acordo com o financiamento federal, com um aparato burocrático capaz de editar mais de dez mil portarias nos últimos dez anos, com um sistema de controle interno dos recursos transferidos próprios de convênios, que avaliam processos e não resultados e

10 O Ministério da Saúde, sob a gestão do atual ministro Alexandre Padilha, 2011, vem tentando mudar o modelo inampiano, que sempre pautou sua atuação, e implementar a verdadeira descentralização com o fortalecimento das regiões de saúde e o relevante papel do estado nas questões regionais. Com a edição do Decreto 7.508, de 2011 e da Lei 12.466, de 2011 uma nova institucionalidade vem sendo alcançada no SUS. Lenir Santos Instituto de Direito Sanitário Aplicado (IDISA) 6 qualidade do gasto, definindo políticas que nem sempre cabem no território municipal, levando-o nesses momentos a ficar distante do cidadão, a quem deve servir sempre.

Nesse ponto, o princípio da subsidiariedade, tão importante para o federalismo e para o sistema de saúde, tem sofrido sérios reveses. A ação subsidiária do ente central em relação aos estados-membros e municípios na região de saúde não tem sido real, mas apenas formal. Ainda que a execução das atividades de saúde esteja afeta aos estados e municípios, essa execução não tem sido realizada de acordo com as práticas federativas pelo fato de os poderes locais e estaduais não poderem se auto-organizar de acordo com as realidades locais e regionais, devendo fazê-lo de acordo com as determinações do ente central, a União, e sempre em nome do fato de que os recursos que financiam a saúde são federais.

Esses superpoderes do Ministério da Saúde ao longo de 20 anos em detrimento do estado e do município solapou em muito a tão acalentada busca pelo fortalecimento das relações interfederativas e dos processos políticos descentralizados, levando tais relações a um grau de subordinação incompatível com o princípio da subsidiariedade.

Além do mais, a subsidiariedade na saúde deve estar a serviço da harmonia que se pretende alcançar nas relações interfederativas, necessárias para a organização das redes de atenção à saúde. Harmonia esta que só é possível quando existe a possibilidade de se criar espaços na administração pública para a negociação e o consenso em torno da definição e organização de serviços interdependentes, afastando o aparato burocrático e centralista, adotando-se ainda uma política de contratualização com força vinculante entre os entes federativos na definição de suas responsabilidades sanitárias.

O interesse local – expressão um tanto quanto indefinida na Constituição – mencionado anteriormente, que impõe competência ao ente local para garantir o interesse de seus munícipes, precisa ser considerado na organização dos serviços em rede interfederativa, em razão de seu financiamento. O interesse local – antes peculiar interesse municipal, conforme se referia a Constituição decaída – precisa ser melhor avaliado no âmbito do SUS, em razão da interdependência dos serviços de saúde dos entes federativos, a qual impõe aos entes considerados referência dentro da rede de saúde, Lenir Santos Instituto de Direito Sanitário Aplicado (IDISA) 7

obrigações que extrapolam seu território municipal por se regionalizar. Essas obrigações devem ser objeto de negociação no âmbito da solidariedade sistêmica que deve haver no SUS.

O interesse local no SUS deve se assentar em premissas que imponham ônus financeiro à União e ao estado pelo atendimento de outros munícipes nos serviços municipais. A cooperação entre os entes há de ser compensada na rede regional de saúde.

A questão do interesse local se faz presente também na discussão da direção única em cada esfera de governo, no sentido de que apenas um setor, a saúde, na administração pública deve cuidar das ações e serviços de saúde e também no sentido de que, ainda que os serviços se vinculem a uma rede regionalizada, a direção dos serviços que se inserem na rede deve continuar sob o comando do dirigente da saúde naquele território municipal. Uma pluralidade de direções que devem desaguar em uma coordenação regional decidida pelo conjunto dos entes federativos em espaços colegiados.

Essa digressão no tocante à descentralização se faz importante para poder situar o outro lado que é o da regionalização das ações e serviços de saúde que a própria Constituição descentralizou para todos os entes federativos ao mesmo tempo em que impôs um sistema regionalizado. Uma imposição e não um sugestão por ser uma determinação constitucional conforme se verá.

O SUS é um sistema organizado de forma regionalizada em um Estado Federal, composto por estados-membros e municípios, que têm competências comuns e interdependentes na saúde, o que faz concluir que a regionalização das ações e serviços de saúde, além de ser uma obrigação e se referir à divisão do território estadual, com aglutinação de municípios em região de saúde (microrregiões no sentido constitucional), se insere na competência do estado, nos termos do art. 25 da Constituição Federal:

Art. 25. Os Estados organizam-se e regem-se pelas Constituições e leis que adotarem, observados os princípios desta Constituição.

[...]

§ 3º. Os Estados poderão, mediante lei complementar, instituir regiões metropolitanas, aglomerações urbanas, microrregiões, constituídas por Lenir Santos Instituto de Direito Sanitário Aplicado (IDISA) 8

agrupamentos de Municípios limítrofes, para integrar a organização, o planejamento e a execução de funções públicas de interesse comum.

Sendo os municípios unidades federativas assimétricas quanto ao seu desenvolvimento, a organização do SUS fica dotada de grave complexidade no tocante à distribuição de competências entre os entes federativos na saúde. As competências, ainda que comuns, não podem ser tidas como iguais, simétricas em relação aos entes federativos, com a mesma abrangência no tocante à garantia da efetividade do direito à saúde. Elas devem guardar proporção ao porte demográfico, social, cultural e econômico do ente da Federação. As responsabilidades individuais na rede devem ser assimétricas para garantir uma rede simétrica e equânime. Por isso o SUS é um sistema que só se conforma no todo quando as partes se ajuntam na rede de atenção à saúde, com as suas adequadas interações sanitárias, financeiras, administrativas, técnicas e assim por diante.

Por esse motivo, a rede de saúde deve estar em regiões de saúde constituídas por agrupamentos de municípios limítrofes para integrar a organização, o planejamento e a execução da função pública da saúde que deve ser compartilhada. Se todos tivessem que garantir integralmente o direito à saúde, per se, não haveria necessidade de se criar um sistema integrado, nem mesmo de se ter rede, tampouco região de saúde. Cada ente garantiria individualmente a seu munícipe o direito à saúde em seus amplos termos.

No tocante à necessidade de se instituir região de saúde, demarcando um território que conterá um conjunto articulado e contínuo de ações e serviços de saúde, trata-se de um fato incontroverso do ponto de vista jurídico, uma vez imposto pela Constituição, devendo ser dotado de inteligência sanitário-organizativa para integrar serviços, ganhar escala, ampliar a cobertura e permitir a continuidade do cuidado em toda a sua dimensão sanitária.

Venho defendendo que a instituição de regiões de saúde como espaço territorial, que tem a finalidade de garantir um amplo rol de ações e serviços, nos termos do art. 198 c/c com o art. 7º, II, da lei 8.080, de 1990, é ato administrativo essencial, sob coordenação estadual.

A região de saúde é necessária para a efetividade do direito à saúde por permitir juntar o que o princípio da descentralização separou e que, por Lenir Santos Instituto de Direito Sanitário Aplicado (IDISA) 9

força sistêmica, deve se unir novamente em torno de uma região, dando à luz uma gestão que ao mesmo tempo em que é individual (de cada ente federativo, direção única) também é solidária ante a interdependência sistêmica.

As regiões de saúde devem ter a função de aglutinar serviços de saúde que poderiam fracionar a garantia do direito à saúde que deve ser satisfeita de maneira integral. A região de saúde deve conter determinados atributos, como população e território definidos; extensa rede de estabelecimentos de saúde; diversos níveis de atenção, porta de entrada do sistema que integra e coordena a atenção e sistema de governança único para toda a rede.11

11 Kuschnir R e Chorny AH, 2010, p. 2307.

Nesse sentido, ela tem a finalidade de organizar territorialmente as ações e serviços de saúde dos municípios desiguais, com a participação do estado e da União. A região dá conformação territorial à integração, em rede, das ações e serviços de saúde dos entes federativos.

A região de saúde confere uma demarcação ao SUS por definir, para uma determinada população, o locus de sua efetivação, contudo, a região não pode ser confundida com a divisão administrativa do estado-membro, pois são temas diversos. Uma diz respeito aos espaços onde se localizam os serviços de saúde; a outra é mera divisão administrativa da secretaria da saúde, que se desconcentra para melhor atender à sua burocracia orgânica. A primeira implica a união de unidades federativas, ao passo que a segunda é uma mera divisão administrativa de um único ente federativo.

Unidos os municípios, eles passam a constituir uma região de saúde para organizar, planejar e executar de maneira compartilhada os serviços de saúde. Nesse passo, saiu-se da individualidade federativa, do interesse local, para a solidariedade interfederativa e o interesse regional, fazendo saltar deveres constitucionais de financiamento interfederativo da saúde.

Por isso, entende-se como necessário que o estado defina as regiões de saúde, demarcadas pelos espaços municipais, assumindo compromissos e se comprometendo com a administração do SUS regional. Essas responsabilidades interfederativas devem contar com elementos que deem segurança jurídica a seus entes, como o contrato de ação pública. Entendo, assim, que a Lenir Santos Instituto de Direito Sanitário Aplicado (IDISA) 10

regionalização na saúde é obrigatória por decorrer da Constituição, art. 198 e da lei 8.080, de 1990 e decreto 7.508, de 2011. E o elemento integrador deve ser o contrato de ação pública, também obrigatório, e não um ato volitivo.

Pelos mais diversos motivos, o SUS até hoje não conseguiu ser de fato regionalizado no verdadeiro sentido da expressão constitucional que alia a regionalização à integração de serviços em rede.

A descentralização das políticas públicas tem sido criticada, em especial as da saúde, pelo fato de ter sido apartada da regionalização e pelo fato de a agenda desenvolvimentista brasileira não ter sido implementada, mantendo os entes federativos em um mar de desigualdade comprometedor da descentralização. Essa crítica encontra coro entre os sanitaristas brasileiros,12que apontam o fraco papel da descentralização ante as imensas desigualdades regionais que continuam existindo nas regiões brasileiras e a falta de arranjos institucionais mais cooperativos. Nesse sentido a regionalização ainda não alcançou sua virtuosidade.

12 Viana ALÁ, Lima LD, Ferreira MP, 2010, p. 2317.

Uma tentativa de acentuar a cooperação foi feita mediante o Pacto pela Saúde (Portaria MS 399/2006). Contudo, em vez de se propugnar por verdadeiras regiões de saúde, o Pacto na realidade dispôs a respeito da junção de municípios ao criar os colegiados de gestão regional, os CGRs, cuja finalidade era a de discutir a gestão regional do SUS sem a existência formal da região de saúde, estruturada e qualificada administrativa e tecnicamente para a garantia do direito à saúde. Desse modo, a região de saúde não se tornou obrigatória nem foram consignados quais seriam os elementos necessários para sua conformação, como os mínimos de serviços, as responsabilidades vinculantes dos entes no espaço regional, entre outros.

Por isso não compartilho do pensamento de que os colegiados de gestão exerciam um papel real de cogestão dos espaços regionais por não estarem investidos de poder político para decidir sobre a gestão regional da saúde, de não haver responsabilidades com poder vinculante, por nem sempre o CGR ser compatível com uma região de saúde no seu sentido técnico, e assim por diante.

Ainda que se discuta no CGR a gestão compartilhada do SUS, o que sem dúvida é de grande valia, seu poder coordenador, decisório, vinculante, é Lenir Santos Instituto de Direito Sanitário Aplicado (IDISA) 11

pequeno, sendo muito mais um espaço de discussão de questões comuns da saúde dos municípios que os compõem principalmente em função da ausência de verdadeira rede de atenção à saúde da região. Ele pode ser um canal de identificação de problemas comuns, de definição de prioridades, sem, contudo, haver uma institucionalidade em suas decisões, que deveriam ser cumpridas pelos demais entes. Não se deve negar sua importância como um fórum de discussão e negociação, como também não se pode negar sua fragilidade ante a ausência de verdadeiras redes de serviços, a ingerência do poder político nesses espaços, a sua não institucionalidade e a centralização que ainda marca o SUS representada pela força da partilha dos recursos federais e a falta de poder vinculante das decisões, além dos elementos mencionados acima no tocante à sua institucionalidade.

O CGR não pode ser confundido com região de saúde, uma vez que não mantém estrutura mínima de serviços organizados regionalmente, o que o decreto 7.508, de junho de 2011, passou a exigir em seu art. 5º. O CGR, a partir do decreto 7.508 passou a ser denominado de Comissão Intergestores Regional (CIR) com funções específicas, conforme ali disposto e também tratada na lei 12.466, de 2011. A partir do decreto entendo que a institucionalidade mencionada acima passará a ser uma realidade. Mas esses colegiados devem ser revistos em suas estruturas para se conformarem ao importante papel das regiões de saúde, sendo um dos elementos da governança regional do SUS que deve alcançar uma maturidade e institucionalidade à altura de seu relevante papel, ainda mais com os contratos organizativos de ação pública que futuramente serão um dos elementos dessa governança regional.

A região de saúde deve se organizar de modo a poder de fato abrigar uma rede de atenção à saúde capaz de atender às necessidades de uma população circunscrita em determinado território regional e impor responsabilidades individuais e solidárias aos entes federativos. Aliás, são essas as razões de sua existência. Esse talvez seja mais um ponto de vulnerabilidade da organização do SUS no país, que até o presente momento, passados duas décadas, não conseguiu ver institucionalizadas suas estruturas político-administrativas solidárias. Lenir Santos Instituto de Direito Sanitário Aplicado (IDISA) 12

Viana13defende esse ponto de vista quando afirma que “algumas questões no tocante à regionalização permanecem em aberto e ainda não são suficientemente equacionadas pela política de saúde nacional”, destacando a “desarticulação entre o processo de planejamento e de pactuação intergovernal, a falta de clareza entre as relações entre os processos de regionalização e de assinatura do Termo de Compromisso de Gestão”.

13 Viana ALÁ, Lima LD, Ferreira MP, op. cit.

14 Ragazzo CEJ, 2011, p. 171.

15 Ragazzo CEJ, op. cit., p. 173.

A conformação de uma região de saúde não pode se ater apenas ao conceito de territórios limítrofes, uma vez que deve conter todos os elementos que possibilitem a efetividade do direito à saúde. Ela deve ser dotada de características que lhe permitam compreender serviços em qualidade e quantidade suficientes para garantir direitos sociais essenciais para a qualidade de vida. A região de saúde não esteve ainda no palco do SUS como estrela essencial para a efetiva regionalização dos serviços de saúde e uma governança regional centrada nas necessidades regionais e no desempenho dos serviços.

A região de saúde pode ser a resposta para o movimento da descentralização política, que em nosso país, ante uma história de centralismo autoritário, também teve o objetivo de

simplesmente assegurar a transferência de recursos da União, estando ainda pouco relacionado com o objetivo clássico da descentralização política, caracterizada pelo incremento democrático decorrente da possibilidade de um governo mais próximo do cidadão, sendo capaz de identificar com maior rapidez necessidades locais14

e lhe garantir os resultados esperados.

Outro ponto relevante para se defender a região de saúde é poder ganhar escala visando à eficiência e economicidade. Não se pode perder de vista que os direitos positivos custam e os recursos sempre serão escassos, devendo a descentralização ser um “fenômeno intrinsecamente qualitativo e não quantitativo, existindo a partir da verificação concreta de um incremento no bem-estar da sociedade”.15

Importa ressaltar que há uma fragilidade na definição das responsabilidades e responsabilização dos entes federativos na região de saúde. Lenir Santos Instituto de Direito Sanitário Aplicado (IDISA) 13 Lenir Santos Instituto de Direito Sanitário Aplicado (IDISA) 14 Lenir Santos Instituto de Direito Sanitário Aplicado (IDISA) 15

Os consórcios intermunicipais de saúde (consórcios públicos previstos na lei federal 11.795, de 8 de outubro de 2008) podem ainda contribuir com o fornecimento de estrutura para alguns serviços que os entes da Região queiram executar em comum acordo, mediante uma pessoa jurídica, com a finalidade de ganhar escala e simplificar processos administrativos.

Assim, os consórcios públicos de saúde podem ser de grande valia para fazer frente à administração de determinados serviços de saúde, lembrando, porém, que o consórcio não substitui a região de saúde, que tem o papel de abrigar uma rede de atenção à saúde capaz de garantir a efetividade da integralidade da assistência à saúde; a fundação estatal, ente público que integra a administração indireta, poderá também permitir que entes federativos se juntem em torno de uma finalidade comum.19Esses arranjos institucionais podem agilizar a prestação de serviços de saúde de entes federativos, sem contudo substituir o papel da região de saúde, locus das redes de atenção à saúde e da efetividade do direito à saúde.

19 Durante os anos 2008 e 2009, assessorei a Secretaria de Estado da Saúde da Bahia no apoio jurídico-institucional de organização de uma fundação estatal interfederativa para gerir de maneira compartilhada a saúde da família. A Fundação Estatal Saúde da Família da Bahia (FESF) foi instituída por 69 municípios mediante autorização legislativa de cada ente municipal.

Por fim, regiões de saúde não têm sido consideradas com a centralidade que possuem na organização do SUS, firmando-se como o principal espaço da garantia da efetividade do direito à saúde. A região de saúde faz nascer, constitucional e legalmente, um SUS regional, a única forma de num país com o nosso formato federativo (estados-membros e municípios) organizar ações e serviços de saúde de maneira descentralizada e integrada.

A gestão desse SUS regional, dessa região de saúde, somente poderá se dar mediante a aproximação de todos os entes, para, num primeiro momento, decidir de maneira concertada a gestão da rede na região de saúde. Num segundo momento, firmar compromissos uns com os outros, mediante contrato, para a segurança jurídica das responsabilidades individuais e solidárias, a vinculação dos entes, porque será pelo contrato que se fixarão as responsabilidades dos entes que compõem a região de saúde.

A Itália optou, mediante lei, pela regionalização compulsória do saneamento básico, que teve a finalidade de evitar a fragmentação na prestação Lenir Santos Instituto de Direito Sanitário Aplicado (IDISA) 16 Lenir Santos Instituto de Direito Sanitário Aplicado (IDISA) 17

4.1.4.2 A direção única em cada esfera de governo

A direção única surgiu na Reforma Sanitária como uma crítica à dispersão existente no antigo Sistema Nacional de Saúde. Havia na esfera federal cinco ministérios responsáveis pelas ações e serviços de saúde. Cuidavam da saúde os Ministérios da Saúde (prevenção), da Previdência e Assistência Social (serviços de assistência à saúde dos trabalhadores previdenciários), da Educação e Cultura (hospitais universitários), do Trabalho (segurança do trabalho) e do Interior (saneamento).21Isso acarretava desperdício de recursos financeiros, humanos, materiais, isso sem mencionar a falta de comunicação, coordenação e integração, que prejudicavam a população que recebia serviços de saúde de forma compartimentada, sem nenhuma integração. A saúde, como setor, agia de forma desarticulada.

21 Lei nº 6.229, de 17 de julho de 1975.

22 Referência e contrarreferência: esse conceito diz respeito ao grau de complexidade dos serviços.

Assim, conforme pretendiam os ideólogos da Reforma Sanitária, a direção única em cada esfera de governo tinha como pressuposto, de um lado, impedir a pluralidade de entes governamentais mantendo de forma isolada serviços em um mesmo território político-administrativo, sem inseri-los numa rede de referências, 22e, de outro, coibir que numa mesma esfera de governo diversos órgãos ou setores pudessem cuidar da saúde. Esse segundo ponto não encerra grandes discussões, sendo mesmo uma questão de bom-senso conferir a um mesmo órgão (secretaria de saúde) toda a administração de uma mesma matéria (saúde). Mas o primeiro ponto – a vedação de que em um mesmo território político-administrativo não deve haver serviços de outros entes federativos desvinculados da direção única – tem gerado polêmica até os dias de hoje.

A “direção única” contemplada na Constituição em seu art. 198, I, que estatui ser o sistema público de saúde descentralizado, com direção única em cada esfera de governo, levou a lei nº 8080/90 a dispor em seu art. 9º que Lenir Santos Instituto de Direito Sanitário Aplicado (IDISA) 18

A direção do Sistema Único de Saúde (SUS) é única, de acordo com o inciso I do artigo 198 da Constituição Federal, sendo exercida em cada esfera de governo pelos seguintes órgãos: I – no âmbito da União, pelo Ministério da Saúde; II – no âmbito do Estado e do Distrito Federal, pela respectiva Secretaria da Saúde ou órgão equivalente; e, III – no âmbito dos Municípios, pela respectiva Secretaria de Saúde ou órgão equivalente.

Na competência comum, as mesmas tarefas devem ser realizadas pelos entes federados em regime de cooperação ou de forma isolada. Algumas atribuições comuns são muitas vezes realizadas isoladamente, como é o caso da educação,23que, diferentemente da saúde, não se configura como uma rede de serviços integrada e regionalizada.

23 Constitucionalmente, o município deve manter programas de educação pré-escolar e de ensino fundamental atuando, na maioria das vezes, de forma isolada, apenas contando com o apoio financeiro da União. Entretanto, esses serviços não necessitam estar integrados em redes regionalizadas. Mesmo que a União ou o Estado mantenha naquele município programas de ensino superior ou médio, a cooperação, no sentido de operar junto, não é uma necessidade, diferentemente do que ocorre com a saúde.

24 Na competência comum, conforme ensina Ives Gandra Martins, todos “atuam sobre a mesma matéria e nos mesmos campos sem conflito”, enquanto na competência privativa são excluídos os entes que não a detém. Op. cit. Bastos e Martins. Comentários à Constituição do Brasil. 1988.

A competência comum traz para todos os membros um mesmo dever de prestação de serviços. Em todos os campos comuns, seja no econômico, social, cultural, ambiental, a atuação de cada um dos entes políticos pode ser conjugada ou isolada. 24Na área da saúde, porém, a atuação isolada é incompatível com a forma de organização do sistema público de saúde.

A direção única, em seu aspecto territorial, pressupõe que os dirigentes da saúde, ao decidirem o sistema de referência, devem também decidir sobre a inclusão dos serviços próprios do estado, sediados no município-referência, e sobre a participação complementar do setor privado no SUS para os municípios referenciados numa rede única. O município-referência deve ter a condução política de seu sistema municipal-regional, devendo os consensos firmados incluir como se darão as necessárias contratações complementares e a inclusão dos serviços próprios do estado instalados no município.

No estado de São Paulo, o art.15, parágrafo único, do Código de Saúde não deixa dúvida ao preconizar que o “Estado executará, supletivamente, serviços e ações de saúde nos Municípios, no limite das deficiências locais e de comum acordo com a direção local do SUS”. Lenir Santos Instituto de Direito Sanitário Aplicado (IDISA) 19

Essa regra explicita que a direção única deve ser respeitada, mesmo quando o Estado, em sua competência supletiva ou complementar (ou própria, como é o caso da gestão de serviços de alta complexidade), executa serviços no território municipal, devendo fazê-lo de comum acordo com a direção local.

O Ministério da Saúde visou regulamentar essa questão na NOB 01/96, ao criar definições próprias para gestão e gerência, definindo a gestão como sendo do sistema de saúde como um todo, e a gerência, de unidades individualizadas de prestação de serviços.

Bastaria a interpretação dada pela Constituição e pela lei 8.080 de que a direção do SUS é única em cada esfera de governo. Sendo única, nascem para o ente federativo poderes para conduzir, local e politicamente, seu sistema, respeitando-se sempre os arranjos administrativos de direção, chefia dos serviços individualizados de outros entes federativos com sede no território municipal.

Assim, a direção única não visa apenas coibir que em uma mesma esfera de governo haja o compartilhamento da direção de serviços de saúde com outros órgãos do mesmo governo. A direção única também tem expressão territorial, ou seja, visa impedir que em um mesmo território haja vários dirigentes da saúde de várias esferas diferentes de governo, executando serviços de forma desarticulada, desordenada, sem a necessária integração de que fala o artigo 198 da Constituição (rede regionalizada e hierarquizada). Mesmo quando for tecnicamente justificável a existência de serviços pertencentes a dois entes políticos em um mesmo município, esses serviços devem estar integrados nessa rede de serviços, devendo ser preservada a direção única no seu sentido político e não operativo.

Nesses casos, o executor do serviço de outra esfera de governo não perde a gestão sobre seus serviços, e o dirigente único não perde sua direção única. Elas devem conviver harmonicamente: a direção política com a direção operativa.

Na realidade, quando houver de fato verdadeiras redes regionalizadas de atenção à saúde, com gestão interfederativa compartilhada, essas questões serão facilmente resolvidas nos colegiados de gestão e nos Lenir Santos Instituto de Direito Sanitário Aplicado (IDISA) 20

contratos interfederativos que venham a organizar as responsabilidades sanitárias dos entes na rede.

É de crucial importância situar a saúde como um serviço de grande mobilidade e interpenetração, que não se esgota em cada esfera de governo por ser um direito que só se efetiva dentro de uma rede de serviços, cuja titularidade é de muitos entes, e não apenas de um. Nesse caso, impende dizer que a descentralização, essencial para levar o serviço para próximo do cidadão, tem nuances complexas que nos impõem maiores reflexões, sendo uma delas as diferenças de desenvolvimento dos entes municipais que somente encontrarão simetrias na região de saúde e sua consequente rede de atenção à saúde. A região garante a equidade na garantia da integralidade da assistência à saúde. A região de saúde não é um ato de vontade dos entes federativos: é uma imposição constitucional em decorrência do mandamento de que todas as ações e serviços públicos de saúde devem se integrar em rede regionalizada.

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