* Lígia Bahia
A história já é tão conhecida que
quase não precisa mais ser contada. O cenário é o de um país situado no
hemisfério sul, de renda média que ousou inscrever em sua Constituição a
garantia do direito universal à saúde. Tempos depois, o SUS apesar dos trancos
que marcaram sua origem e de ter sido empurrado para diversos barrancos ainda
permanece de pé. Mas quem disser que esse SUS que aí está não é aquele aprovado
pela Constituição porque nem é único e nem tão universal não estará
mentindo.
A saga da longevidade e descaracterização do SUS é menos popular. A
durabilidade da política universal de saúde deve-se ao acerto de seus
formuladores sobre as relações entre a maneira como se organiza e desenvolve uma
sociedade e as condições de saúde da população. Atualmente, um brasileiro doente
pode receber um benefício previdenciário, auxílio transporte para comparecer aos
serviços de saúde, ser atendido no SUS, em certos casos, em seu domicílio, e
receber medicamentos gratuitamente. Trata-se de uma proteção social integrada e
integradora, tal como prevê o capitulo da Seguridade Social da Constituição.
Por outro lado, o esmaecimento do projeto de construção de um sistema de saúde
igualitário decorre de previsões acertadas de quem era contra o SUS. A validade
do vaticínio “é impossível fazer brotar igualdade de um solo no qual só
vicejavam disparidades estruturais” foi renovada condicionalmente. A reinserção
dos interesses empresariais da saúde nas coalizões governamentais
pós-redemocratização efetivou-se mediante entusiasmada adesão à idéia de um SUS
para quem não pode pagar.
A recusa do governo federal,
legitimada pelo Congresso Nacional no final de 2011, de ampliar recursos para o
SUS dinamiza um subsistema público sub-financiado e um subsistema privado
crescentemente subsidiado com recursos públicos. Em termos práticos, os direitos
abrangentes, já disponíveis para quem tem problemas de saúde muito graves, não
serão estendidos para os saudáveis ou para usuários eventuais de serviços de
saúde. Os não doentes e segmentos de maior renda são cobertos por planos e
seguros privados de saúde, e os pobres ou requerentes de serviços de saúde muito
caros ficam no SUS. Assim, a divisão pragmática de mercados na saúde assume
internamente condição de política oficial, a despeito de repetidas pesquisas de
opinião evidenciarem que a saúde é o principal problema a ser resolvido pelo
governo mesmo para quem está vinculado a planos e seguros privados de
saúde.
Entretanto, a tendência mundial,
apesar e por causa da possível deterioração dos tradicionais sistemas de
proteção social, é a de priorizar as políticas universais de saúde. Ao longo
desse ano, ficamos bem na foto. Segundo a Declaração da Conferência Mundial dos
Determinantes Sociais da Saúde, realizada este ano no Brasil, “para que haja
saúde é necessário que o sistema de saúde seja universal, abrangente,
equitativo, efetivo, ágil, acessível e de boa qualidade e ainda envolvimento e
do diálogo com outros setores e atores, visto que o desempenho dos mesmos gera
impactos significativos sobre saúde”. Os participantes de 130 países e 62
ministros de estados presentes consideraram que a crise econômica e financeira
global deve estimular a inclusão da saúde e o bem-estar entre as mais altas
prioridades nos níveis local, nacional, regional e internacional.
Em 2012, a Rio + 20 convocará o
posicionamento dos governos, empresários e movimentos sociais sobre a
sustentabilidade do desenvolvimento, incluindo a dos sistemas de saúde. A
pergunta a ser respondida será sobre o modelo de sistema de saúde que dá
melhores respostas em termos de custo-efetividade aos determinantes sociais da
saúde. E o SUS será novamente o melhor cartão de visitas a ser apresentado em
um ambiente que exigirá do Brasil discrição em relação à ênfase em políticas
públicas voltadas ao provimento de infra-estrutura e financiamento de negócios.
Por aí afora, muitos economistas sérios não deixam de considerar a saúde na
análise dos limites e perspectivas do desenvolvimento do capitalismo ou
acreditam que o sistema de saúde possa ser encarado como um mercado qualquer.
As previsões de que a saúde, em consequência da inovação tecnológica e
envelhecimento, represente daqui a alguns anos 30% do PIB de vários países já
seria motivo de sobra para não deixá-la de lado. Ademais, é sobejamente sabido
que o comportamento dos preços exige intervenção governamental. Sem que se
defina responsavelmente o que é saúde e o que é doença, características físicas
ou sintomas como sobrepeso e hipertensão podem ser encarados respectivamente
como sentenças de morte e mercados potenciais para a venda de exames e
medicamentos.
Reputados economistas brasileiros, à
frente de cargos públicos, ignoraram até agora a saúde em suas análises.
Contudo, ficará difícil manter ouvidos moucos diante da estridência de agendas
socioambientais que valorizam a construção de pontes entre política social e
econômica. O SUS terá um mega destaque na Rio + 20. Quem tiver o mínimo de
noção aproveitará a ocasião para converter metas econômicas em créditos,
dividendos e superávit de saúde. Até junho, dá tempo para sair da redundância da
suposição de que o consumo, inclusive o de serviços de saúde e medicamentos é um
fim em si mesmo. Teremos um feliz e próspero ano novo, se as alternativas para
as mudanças climáticas e preservação dos ecossistemas forem adequadas a uma
inserção tecnológica baseada na produção e controle de inovações. As abordagens
defensivas e céticas emprestaram às políticas universais atributos de peso
orçamentário ou estorvo utópico. No entanto, é o SUS, fundamentado na concepção
sobre a determinação social da saúde, que possui todas as credenciais de sistema
sustentável. Que em 2012 a boa fama internacional do SUS seja saúde-presente no
cotidiano de todos nós.
* Lígia Bahia,
vice-presidente da ABRASCO e professora de economia da saúde no Instituto de
Estudos em Saúde Coletiva da Universidade Federal do Rio de Janeiro (IESC/UFRJ).
Artigo publicado no publicado no Jornal O Globo, no dia 28 de novembro de
2011.
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