Uma segunda vertente interpretativa
concedeu ênfase aos malefícios à saúde provocado pelas próteses, quer utilizadas
em cirurgias reparadoras de mutilações involuntárias decorrentes do câncer de
mama, quer no turbinamento do volume dos seios motivado pelo desejo de uma nova
estética corporal. Desse ponto de vista, os riscos dos implantes são sociais e
justificam medidas preventivas e a substituição das próteses. Se a saúde é
direito de todos e dever do Estado, todos os brasileiros pobres ou ricos que
estejam sob risco do uso de silicone de diferentes origens, incluindo travestis,
deverão, sem preconceito de nenhuma natureza, usufruir cuidados gratuitos de
instituições públicas e privadas de saúde.
O terceiro enfoque questionou, a
partir de fatos similares, a associação negativa das cirurgias plásticas com a
opressão estética de mulheres do segmento participantes ou expectadoras do Big
Brother. Das duas uma: ou as pressões estéticas/fotográficas são tão
generalizadas que obrigam inclusive os mais destacados e poderosos políticos,
artistas executivos e médicos de ambos os sexos a se submeterem ao botox e ao
bisturi ou quem conserva rugas, seios flácidos ou pequenos, estrias,
barriguinhas e barrigonas resiste às inovações. Nesse sentido, a naturalidade da
discussão sobre a excelente qualidade da plástica da presidente da República
pode ser encarada como uma madura demonstração de respeito ao
livre-arbítrio.
Desde dezembro até agora houve
mudanças de opinião sobre o uso do silicone. Mais e melhores informações
contribuíram para ampliar as manifestações de simpatia pelas vítimas de diversos
países. Aos poucos, radicais divergências foram decantadas. Deu-se a cada um
pouco de razão, prevaleceu a solidariedade e avançamos. Já as polêmicas em torno
dos números divulgados pelo IBGE são derivadas de projetos societais
distintos.
Para quem julga que a intervenção
estatal na saúde deva se limitar ao atendimento aos pobres, gastar 8% do PIB com
saúde é, em si, um indicador positivo. Confirma que a privatização da saúde
contextualizada pelo deslocamento da pirâmide de renda para cima trouxe e trará
prosperidade às empresas setoriais. As três edições das contas satélites da
saúde (2007 a 2009) evidenciam o ajuste das informações à aposta de alcançar uma
correspondência formal entre renda individual ou familiar e cobertura
assistencial. Em contraste, os defensores dos sistemas universais de saúde vêem
na distribuição dos recursos para a saúde (45% gastos públicos e o restante
privado) sinais de estagnação e crise. O racionamento de gastos públicos deixa o
Brasil no meio do caminho. Nem a saúde é um direito efetivo de cidadania, nem o
sistema privado mantém-se independente de subsídios públicos. Dada a polarização
subjacente às analises de números que não mentem, sobram elementos para
estimular um debate profundo sobre o sistema nacional de saúde que não se
concentra em torno do falso dilema financiamento ou gestão.
Mas, a pressa em gerenciar com
suposta eficiência alguns problemas, especialmente aqueles apresentados sob o
formato de escândalos, abrevia o tempo de decantação dos conflitos. Sem a
explicitação das ideias e interesses que fundamentam interpretações e ações
ficamos sem saber se o SUS se responsabilizará pelos vazamentos das próteses,
porque o Brasil tem um sistema universal de saúde, ou se a intervenção
governamental foi tópica e voltada apenas à correção de uma pequena falha do
mercado. Essa não é uma disjuntiva teórica. Faz toda diferença, na prática,
organizar um sistema de saúde bem gerenciado e, portanto, capaz de prever
estrategicamente a absorção de novas demandas ou ativar atividades fragmentadas,
dinamizadas por inclusões pontuais de benefícios para grupos populacionais
específicos. Um dos maiores desafios gerenciais do SUS é exatamente despolitizar
iniciativas que deveriam ser administrativas. Se o uso de procedimentos de saúde
e medicamentos continuar enquadrado como mera relação de consumo, e a proteção
contra riscos à saúde depender, exclusivamente, de decisões de quem ocupa o
cargo de presidente da República, o SUS terá um gerenciamento inadequado.
Posicionamentos plastificados de acordo com as circunstâncias e com o público
ouvinte vazam. As declarações da OAB, de entidades médicas e diversas
associações cientificas sobre o reinicio da luta pelo SUS universal contribuem
para vedar furos nos argumentos e estabelecer uma atmosfera favorável ao papo
sério.
* Lígia Bahia,
vice-presidente da ABRASCO e professora de economia da saúde no Instituto de
Estudos em Saúde Coletiva da Universidade Federal do Rio de Janeiro (IESC/UFRJ).
Artigo publicado no publicado no Jornal O Globo, no dia 23 de janeiro de
2012.
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