quinta-feira, 15 de novembro de 2012

Fundação Estatal e o Fortalecimento da Capacidade de Ação do Estado

Hêider Aurélio Pinto
Túlio Batista Franco
Emerson Elias Merhy
 
O Projeto de Lei Complementar 92/2007, que visa regulamentar as Fundações Estatais

(Fundações Públicas de Direito Privado), tem sido objeto de muita polêmica entre militantes

petistas, em especial os implicados na luta pela saúde no Brasil, pois, embora o projeto se

destine a diversas áreas, é na saúde que surgiu e onde ganha mais força. Neste debate vemos

de um lado, parte importante do movimento sindical nacional fortemente crítico à proposta e,

de outro, defendendo-a e envolvidos em sua construção, a maioria dos sanitaristas e gestores

da saúde de nosso partido. Neste pequeno texto procuraremos apontar algumas questões que

julgamos fundamentais para um bom debate sobre o tema. Só um franco, solidário e bom

debate poderá permitir que, partindo de princípios e objetivos comuns, possamos avançar no

entendimento e na construção de um consenso progressivo necessário e importante para a

luta social que travamos.


UM DEBATE CHEIO DE CONFUNDIMENTOS NUM CONTEXTO RUIM


Em primeiro lugar é necessário reconhecer que existem diversos elementos no contexto que

dificultam esse bom debate. A conjuntura não favorece, uma vez que estão colocados na pauta

alguns conflitos do governo federal com o movimento sindical relacionados ao PLP 01 e à

regulamentação do direito de greve do servidor público. A mídia monopolista comercial

aproveita-se da situação e, ao tratar do tema, provoca uma identificação da proposta com as

idéias de ataque ao servidor público e de valorização da lógica e da propriedade privada em

detrimento da pública, afirmando propositalmente valores do projeto neoliberal. Além disso, o

Grupo de Trabalho Interministerial formulou a proposta e encaminhou o PLP ao Congresso sem

debatê-lo suficientemente com vários segmentos sociais que tinham interesse em fazê-lo. Por

fim, há ainda uma enorme confusão com relação ao entendimento e uso do termo “direito

privado”.

Nos diversos debates que ocorrem Brasil afora se fala que a proposta promoverá a privatização

e a terceirização dos serviços públicos resultando numa desresponsabilização do Estado na

garantia de direitos universais dos cidadãos. Devido a isso, denuncia-se seu suposto caráter

“anti-SUS”. Fale-se também em precarização do trabalho e na não garantia dos direitos dos

trabalhadores. Por fim, identifica-se a proposta como uma continuação do projeto de reforma

do Estado “bresseriana” e credita-se sua proposição à permanência de uma tecnocracia

neoliberal tucana no governo Lula.

É evidente que se achássemos que qualquer uma dessas afirmações fosse verdadeira seríamos

obstinados oponentes da proposta, não defensores.


O PT E A CONSTRUÇÃO DA PROPOSTA DA FUNDAÇÃO ESTATAL


Ora, é importante esclarecer que, embora as Fundações Públicas de Direito Privado não sejam

nenhuma novidade no setor público brasileiro, o “DNA” dessa proposição recente é petista. No

Rio Grande do Sul muito se debateu no Grupo Hospitalar Conceição – dirigido por petistas – a

construção de um modelo jurídico e de gestão que publicizasse o hospital ampliando sua


1

Sanitarista, Diretor de Atenção Básica da Secretaria da Saúde do Estado da Bahia.

2

Sanitarista, Doutor em Saúde Coletiva, professor da UFF.

3

Sanitarista, Livre Docente em Saúde Coletiva, professor aposentado da Unicamp, Professor convidado da UFRJ.

agilidade, efetividade e a qualidade dos serviços prestados à população. Lá também foi criada

nesse modelo jurídico-institucional a Universidade Estadual do Rio Grande do Sul no Governo

Olívio Dutra. Foi ainda na intervenção do Ministério da Saúde de Humberto Costa em 2005 no

Rio de Janeiro que, frente ao colapso do setor hospitalar carioca, se instituiu o grupo de

trabalho com a finalidade de estudar alternativas de gestão que solucionassem os problemas

desses serviços sem ceder à proposta neoliberal bresseriana de terceirização ao setor privado

através das Organizações Sociais e OSCIP’s. E, obviamente, é o Governo Lula que apresenta a

proposta ao Congresso Nacional.

Mais recentemente, foi novamente o PT que propôs um marco jurídico-institucional para a

proposta das Fundações Estatais adequado e coerente com o projeto político-social defendido

historicamente por nosso partido. Assim, o marco jurídico que defendemos está apontado no

substitutivo à PLP 92 apresentado pelo Deputado Federal Pepe Vargas do PT-RS. O marco

institucional é o da proposta de Fundação Estatal

4 construída pelo governo Jaques Wagner da

Bahia como fruto de amplo debate social. Assim, partindo do projeto do GT Interministerial,

mas com base principalmente nesses dois marcos é que apontaremos as Fundações Estatais

como um importante instrumento de recuperação e ampliação da capacidade de ação do

Estado em alguns setores importantes para a revolução democrática defendida por nosso

Partido.


O QUE É A FUNDAÇÃO ESTATAL


A Fundação Estatal é parte da Administração Indireta do Estado e foi pensada como uma

instituição especializada para a prestação de serviços públicos à população. Foi desenvolvida a

partir de vários estudos que envolveram a Escola Nacional de Saúde Pública e que

identificaram diversos entraves administrativos, legais e de gestão dos Hospitais Públicos que

dificultavam sua agilidade na contratação de pessoal e na compra de insumos, medicamentos

e equipamentos, que resultavam em gastos desnecessários e que não contribuíam para a

melhoria da qualidade dos serviços prestados à população.

Com o desafio de manter os hospitais como instituições públicas e remodelá-los para que

pudessem ser mais ágeis e efetivos, apresentar melhor qualidade e deixar de desperdiçar

recurso desnecessariamente, foi proposto um modelo jurídico-institucional que é a combinação

de uma Autarquia - com todas as vantagens que essa tem em termos de descentralização

administrativa e autonomia e agilidade na tomada de decisões operacionais; com uma

Empresa Estatal, buscando nessa a agilidade e autonomia na gestão de pessoal, orçamentária,

contábil e relacionada a compras e aquisições.

Ela difere de uma autarquia (como uma Universidade Federal) porque, assim como as

Empresas Estatais, está subordinada ao código civil (chamado direito privado) no que diz

respeito às compras, contabilidade e gestão de pessoal. No caso das compras está subordinada

à lei das licitações (8.666), mas pode editar regime próprio e especial, o que lhe confere mais

agilidade. No caso do orçamento e contabilidade, goza de muito mais autonomia e agilidade no

uso dos recursos que administra, o que lhe dota de grande capacidade de enfrentar situações

não previstas. No caso da gestão de pessoal, o vínculo é “celetista” assim como nas empresas

estatais, o que lhe permite: fazer planos de emprego, carreira e salários específicos e

adequados tanto ao serviço prestado quanto às características dos profissionais necessários;

ajustar a remuneração, as avaliações de desempenho e a gestão do trabalho de modo ágil de

acordo com as negociações realizadas com os trabalhadores; realizar concurso público num

tempo muitíssimo inferior ao necessário na administração direta, por não ter que prever o

gasto no orçamento global do respectivo ente federado e nem pedir autorização à respectiva

casa legislativa, ou seja, se tem recurso suficiente, pode fazer imediatamente o concurso.

Contudo, nessa combinação, a Fundação Estatal não pode exercer poder de polícia nem

autoridade de Estado como pode uma Autarquia, nem pode explorar atividade econômica

como faz uma Empresa Estatal. É instituição específica para a prestação de serviços sociais. No

governo federal está sendo pensada para os hospitais federais, para a nova TV Pública (a TV


4

Documentos disponíveis no Sítio Virtual www.saude.ba.gov.br/dab

Brasil) e para a previdência complementar dos servidores públicos. Já nos governos petistas da

Bahia e de Sergipe as propostas concentram-se no setor saúde, seja na produção pública de

medicamentos, na área hospitalar ou na atenção básica à saúde.

Portanto, a Fundação Estatal é Estado, não tem nada que ver com privatização e terceirização.

Sua propriedade é pública, sua direção e gestão são públicas, está subordinada aos órgãos

públicos de sua área de atuação, aos controles públicos externos e internos, às leis que

regulamentam as instituições públicas de seu setor de atuação (leis 8080 e 8142 no caso da

saúde), aos princípios da administração pública, seus recursos são públicos e seus

trabalhadores são servidores públicos.

Além disso, estuda-se a possibilidade de ter isenção de renda e patrimônio e de não ser

considerada para fins da lei de responsabilidade fiscal, o que é importantíssimo em áreas como

a saúde que tem sua expansão pública bloqueada pela LRF por ser um setor de capitaltrabalho

intensivo em que 70% dos gastos em média são em pessoal.


NÃO CONSTRUIR UMA ALTERNATIVA CONSISTENTE E VIÁVEL PELA ESQUERDA É NÃO

ENFRENTAR O PROJETO NEOLIBERAL NO PLANO CONCRETO


A LRF, entraves jurídico-institucionais e custos elevados e desnecessários de certos serviços

públicos são fatores que bloqueiam a expansão do setor público e a universalização do direito

à saúde. Por esses motivos, concretamente no cotidiano de nossas gestões democráticopopulares,

muitos de nossos prefeitos, buscando ampliar a oferta de serviços públicos e

gratuitos à população, ao contrário de fazerem essa expansão por dentro do Estado, são

forçados muitas vezes a utilizar instituições privadas para a contratação de pessoal para os

serviços públicos e a aumentar a oferta via contratação de laboratórios de diagnóstico e leitos

hospitalares privados. Já a direita defende explicitamente como alternativa ao “ineficiente

setor público” o velho projeto privatizante: deu entrada no parlamento gaúcho um projeto que

transforma os serviços públicos de saúde em OSCIP’s, e foi aprovado no parlamento paulistano

outro projeto que permite às OS’s e Ong’s administrarem serviços de saúde sem nem sequer

processo seletivo público. Ou seja, além de privatizar recursos, responsabilidades e interesses,

é um campo aberto ao casuísmo e ao clientelismo político eleitoral.

A esquerda tem que construir uma alternativa efetiva a essas duas situações. Acreditamos,

com base em estudos, que em certos serviços/setores a Fundação Estatal pode ser um

poderoso instrumento de afirmação, expansão e qualificação do público. Só universalizando o

acesso e melhorando a qualidade dos serviços públicos é que teremos na população um forte

vetor de defesa do SUS ante os ataques privatistas.

Hoje, não é só o grande capital e a mídia que deslegitima o SUS, muitas de nossas

organizações sindicais deixam de legitimar e fortalecer o SUS ao colocar na pauta de

reivindicações o pagamento de planos de saúde privados para seus integrantes, apoiando uma

importante transferência de recursos públicos ao setor privado. Isso só pode ser superado se

tivermos serviços de qualidade que respondam concretamente às necessidades da população

usuária. Obviamente que isso só pode ser alcançado através de várias lutas e políticas

sinérgicas, dentre elas, a regulamentação da emenda 29 assumida por nosso partido é um

elemento central para garantir mais recurso para a saúde. Contudo, afirmamos que a

Fundação Estatal é outra medida central nessa agenda.

É importante destacar também que, ao contrário do que se diz, a Fundação Estatal no caso da

saúde não pode vender serviços ao setor privado (planos de saúde, por exemplo) nem pode

cobrar da população: os serviços são universais e gratuitos. Também não anula ou concorre

com o Controle Social do SUS, ao contrário, além de manter sua subordinação aos respectivos

Conselhos de Saúde e Conselhos Gestores de Unidades de Saúde, qualifica e aprofunda esse

controle. Onde hoje quem toma as decisões executivas e operacionais dos serviços de saúde

são apenas diretores de unidade nomeados, com a Fundação Estatal passa a ser um Conselho

Curador composto, em parte, por nomeação e, em parte, por eleição de representantes dos

gestores, especialistas, trabalhadores e usuários dos serviços. Além da proposta apontar para

um quadro de gestão executiva profissionalizado.

Ou seja, há aí uma ampliação da esfera pública no seio da atividade executiva do Estado. Os

interesses e atores que entram em cena com mais contundência nessa proposta são os

usuários e trabalhadores e não os grupos privados interessados em realizar lucros a partir de

recursos públicos como na proposta neoliberal. Esses dois elementos estão presentes e

desenvolvidos de forma inequívoca tanto no Substitutivo apresentado por Pepe Vargas, quanto

na proposta construída pelo Governo Wagner para a Bahia.

Têm se falado também que as Fundações Estatais vão precarizar as relações de trabalho. Ora,

se CLT é trabalho precário temos que rever toda a propaganda do Ministério do Trabalho

comemorando os mais de 6 milhões de empregos formais gerados no governo Lula. Na Bahia

temos como herança da era ACM, quase metade da rede hospitalar estadual terceirizada, 2/3

da mão de obra dessa rede precarizada e 70% da mão de obra na estratégia de saúde da

família na mesma situação. As Fundações Estatais na Bahia representam: a recuperação para

o Estado do que foi privatizado; a expansão e universalização do acesso das redes básica de

saúde e hospitalar; e a universalização da garantia de direitos trabalhistas e previdenciários a

todos esses servidores públicos. Efetivamente é sair da defensiva e assumir com contundência

e competência uma ofensiva contra-bresseriana e anti-neoliberal.

Há ainda o grande ponto da divergência: a questão da estabilidade. Ora, muitas vezes se

confunde a CLT no Estado com a CLT numa empresa privada como é o caso de uma padaria ou

um salão. No setor público, por incidir os princípios da administração pública (publicidade,

moralidade, igualdade, impessoalidade etc.), para contratar há que se fazer concurso público e

só pode haver demissão mediante processo administrativo com direito a ampla defesa onde

são considerados critérios objetivos e avaliação de desempenho clara e pactuada desde a

entrada do servidor no quadro.

Na Bahia, a partir de debates com o movimento sindical foi proposto um modelo de comitês

tripartites (gestores, trabalhadores e usuários) de arbitragem dos processos administrativos

nos casos de conflito entre o empregador público e o servidor. Trata-se de uma estabilidade

relativa que protege o trabalhador do mal gestor, mas sem deixar de proteger o usuário do

mal trabalhador, e isso é fundamental para a legitimidade do serviço e do servidor público.

É importante ficar claro que não estamos aqui aceitando o argumento neoliberal de que a

estabilidade é o mal do serviço público. Entendemos que o bom trabalho do servidor público

passa pela valorização e investimento nesse servidor, por processos consistentes de educação

permanente, por democratização institucional, por processos de trabalho mais criativos e com

mais autonomia de planejamento e organização em equipes, por salários dignos etc.

elementos que são facilitados pela Fundação Estatal graças a sua maior autonomia e agilidade

na gestão orçamentária e de pessoal. Contudo, não podemos tirar o direito da massa de

trabalhadores usuários dos serviços de saúde de poder, em último caso, demitir o trabalhador

servidor público que não cumpre a função para a qual fez o concurso: servir ao público.

Por fim, gostaríamos de fazer uma última observação. Hoje podem ser criadas Fundações

Estatais por iniciativas dos executivos das três esferas. Não há um marco regulatório que

discipline em que áreas e como devem ser essas fundações. Lutar contra a regulamentação

não é só abrir mão de aproveitar esse momento que estamos com maiores condições de

promover uma regulamentação coerente com nossos princípios, nossas lutas, nosso projeto

estratégico de Estado e de sociedade, é também cometer um erro tático deixando um “cheque

em branco” para cada atual e futura prefeitura, governadoria e presidência desse país instituir

Fundações Estatais como queiram. Ver como esse debate está sendo conduzido na Bahia de

forma participativa e democrática e debater o substitutivo apresentado por Pepe Vargas pode

ser a inflexão necessária para que as forças democrático-populares se posicionem por um

debate aberto, franco e propositivo que abra caminho para uma ofensiva anti-neoliberal

concreta, superando a ação exclusivamente discursiva e defensiva.

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