sexta-feira, 20 de abril de 2012

Meia entrada não paga saúde inteira


Artigo publicado pela vice-presidente da ABRASCO, Lígia Bahia, no Jornal O Globo, no dia 16 de abril de 2012.
*Lígia Bahia

Extremismos retóricos e pretensas soluções únicas para os problemas da saúde magnetizam fundamentalistas e estimulam o anúncio de cataclismas. As atmosferas saturadas de certezas absolutas não persuadem dissidentes ou hesitantes. A maioria dos que assistem estarrecidos à crise na saúde insiste em apelar para o bom-senso e encontrar um caminho do meio: um ponto de encontro entre o público e o privado.
Algumas ideias de rearranjos dos recursos existentes fundamentam-se na intuição de juntar o que tem de bom aqui e ali. A mais generosa delas consiste em arrumar o sistema de saúde mediante o pagamento ao SUS do que se gasta com planos de saúde, desde que o atendimento público melhore muito. Ainda que tal medida provocasse uma demanda adicional para o SUS, a adição de potenciais usuários da rede pública seria compensada pela reversão de recursos privados para o uso de todos. Uma edição bem mais pragmática da arbitragem idealizada do destino do dinheiro despendido com saúde resume-se a doações implícitas de lugares no SUS.
Frequentemente, quem tem plano de saúde diz que assim não ocupa o lugar de pobres na fila. O consenso dos adeptos da possibilidade, ainda que remota, de estabelecer um financiamento virtuoso para o SUS é a suposição de que seus esforços reforçariam a extensão da oferta e qualidade da rede assistencial pública.
Para vencer as corrupções, bandalheiras e carências que anemiam a saúde nada seria melhor que o meio termo. Contudo, essas excelentes intenções não vingam. O que tem prosperado é a intemperança materializada em dispositivos superlativos de privatização. As duplas portas de entrada em hospitais públicos e ampliação das isenções e deduções tributárias, que privilegiam quem tem maior renda, representam a antítese das tentativas de oxigenar o público. Doses incorretas do remédio resultam em uma alocação inequitativa venenosa.
A proposta de criação da Empresa Brasileira de Serviços Hospitalares (EBSERH), voltada a modificar a natureza administrativa de hospitais universitários federais, emerge no contexto da vigência de ortodoxias publicizantes e privatizantes e se apoia no forte imaginário coletivo acalentado por possibilidades abstratas de remanejamento de recursos.
A iniciativa pode ser enquadrada nas três situações: privatização, publicização e "nem tanto ao mar nem tanto à terra". É privatizante porque efetuará contratos de profissionais tal qual aqueles realizados pelo setor privado. O que significa na prática romper com o conceito de único que denomina o sistema de saúde e o regime de trabalho aprovados pela Constituição de 1988. Não deixa de ser publicizante ao suprimir arranjos internos e precários de alocação de vagas para funcionários dos hospitais universitários e abrir possibilidades para a profissionalização da gestão. Pode também se encaixar no misto de público e privado porque assegura a exclusividade do atendimento público e gratuito, mas pressupõe a conexão de atividades de assistência à saúde com o mercado, especialmente ao permitir remunerações diferenciadas segundo experiência, intensidade do trabalho e especialidades.
As características heterodoxas da EBSERH e sua implementação na ausência de planejamento de médio e longo prazos para adequá-la às distintas realidades nas quais se inserem os hospitais universitários não são muito promissoras. As chances de superação de problemas graves e crônicos de funcionamento de unidades complexas com apenas uma bala na agulha são ínfimas. Mas rejeitar, a priori, as tentativas de melhorar a administração de algumas das mais relevantes unidades de saúde e ensino do país não é razoável.
Tratar direitos e deveres apenas no papel e desprezar o tempo, os custos e os resultados significa se descomprometer com as prioridades da saúde. Uma burocracia que não se moderniza torna-se mais um obstáculo entre a positivação de direitos e sua efetivação. Portanto, fugir da participação corajosa no debate sobre a EBSERH só piora as possibilidades de enfrentar problemas. O subfinanciamento do SUS somado a distorções na formação e distribuição de profissionais de saúde, especialmente médicos, conduzem objetivamente à americanização da saúde. Por isso é necessário entender exatamente o que enfrentaremos daqui a pouco. O dilema americano, exposto na Suprema Corte no fim de março, explicitou as imensas dificuldades para assegurar direitos universais mediante intensificação da regulação do mercado privado.
A questão central examinada pelos juízes foi a contradição entre a garantia da liberdade individual e a proibição de empresas negarem coberturas e a intervenção governamental nos preços. A transgressão aos cânones conservadores liderada por Obama foi questionada por juízes desfavoráveis ao Affordable Care aprovado pelo Congresso em 2010. Entre as perguntas formuladas constaram desde a analogia entre a obrigatoriedade de pagar um plano de saúde e imposição de compra de celular ou de um seguro funeral até a incongruência entre a existência de uma crise nacional do mercado de assistência à saúde e a resposta universal de regular a forma de pagamento dos planos e seguros.
Não existe registro de reformas no sistema de saúde à prestação ou pela metade. Todas elas, inclusive a dos EUA, foram, à sua maneira, radicais. No Brasil a necessidade de inverter a equação menos imposto via subsídios fiscais e mais desigualdade não está na pauta sequer de entidades sindicais de servidores públicos. Jornais de algumas dessas organizações condenam, sem julgamento, a EBSERH por ser privatizante e placidamente reivindicam mais e melhores planos de saúde para seus associados.
Não é novidade constatar a imunidade das estruturas e processos que geram discriminações e privilégios no Brasil. Contudo, talvez as advertências sobre o efeito dramático da indiferença com a saúde ajudem o reposicionamento de quem serve ao público. Ter emprego público estável e acionar estratégias para multiplicar vínculos empregatícios, inclusive com o setor privado, e escapar do atendimento no SUS é uma tremenda incoerência. A lógica dos negócios é avessa ao SUS universal e de qualidade; a do palavrório e papelório, também.

* Lígia Bahia, vice-presidente da ABRASCO e professora de economia da saúde no Instituto de Estudos em Saúde Coletiva da Universidade Federal do Rio de Janeiro (IESC/UFRJ). Artigo publicado no publicado no Jornal O Globo, no dia 23 de janeiro de 2012.

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