*Lígia Bahia
Extremismos retóricos e pretensas soluções únicas para os problemas
da saúde magnetizam fundamentalistas e estimulam o anúncio de cataclismas. As
atmosferas saturadas de certezas absolutas não persuadem dissidentes ou
hesitantes. A maioria dos que assistem estarrecidos à crise na saúde insiste em
apelar para o bom-senso e encontrar um caminho do meio: um ponto de encontro
entre o público e o privado.
Algumas ideias de rearranjos dos
recursos existentes fundamentam-se na intuição de juntar o que tem de bom aqui e
ali. A mais generosa delas consiste em arrumar o sistema de saúde mediante o
pagamento ao SUS do que se gasta com planos de saúde, desde que o atendimento
público melhore muito. Ainda que tal medida provocasse uma demanda adicional
para o SUS, a adição de potenciais usuários da rede pública seria compensada
pela reversão de recursos privados para o uso de todos. Uma edição bem mais
pragmática da arbitragem idealizada do destino do dinheiro despendido com saúde
resume-se a doações implícitas de lugares no SUS.
Frequentemente, quem tem plano de
saúde diz que assim não ocupa o lugar de pobres na fila. O consenso dos adeptos
da possibilidade, ainda que remota, de estabelecer um financiamento virtuoso
para o SUS é a suposição de que seus esforços reforçariam a extensão da oferta e
qualidade da rede assistencial pública.
Para vencer as corrupções,
bandalheiras e carências que anemiam a saúde nada seria melhor que o meio termo.
Contudo, essas excelentes intenções não vingam. O que tem prosperado é a
intemperança materializada em dispositivos superlativos de privatização. As
duplas portas de entrada em hospitais públicos e ampliação das isenções e
deduções tributárias, que privilegiam quem tem maior renda, representam a
antítese das tentativas de oxigenar o público. Doses incorretas do remédio
resultam em uma alocação inequitativa venenosa.
A proposta de criação da Empresa
Brasileira de Serviços Hospitalares (EBSERH), voltada a modificar a natureza
administrativa de hospitais universitários federais, emerge no contexto da
vigência de ortodoxias publicizantes e privatizantes e se apoia no forte
imaginário coletivo acalentado por possibilidades abstratas de remanejamento de
recursos.
A iniciativa pode ser enquadrada nas
três situações: privatização, publicização e "nem tanto ao mar nem tanto à
terra". É privatizante porque efetuará contratos de profissionais tal qual
aqueles realizados pelo setor privado. O que significa na prática romper com o
conceito de único que denomina o sistema de saúde e o regime de trabalho
aprovados pela Constituição de 1988. Não deixa de ser publicizante ao suprimir
arranjos internos e precários de alocação de vagas para funcionários dos
hospitais universitários e abrir possibilidades para a profissionalização da
gestão. Pode também se encaixar no misto de público e privado porque assegura a
exclusividade do atendimento público e gratuito, mas pressupõe a conexão de
atividades de assistência à saúde com o mercado, especialmente ao permitir
remunerações diferenciadas segundo experiência, intensidade do trabalho e
especialidades.
As características heterodoxas da
EBSERH e sua implementação na ausência de planejamento de médio e longo prazos
para adequá-la às distintas realidades nas quais se inserem os hospitais
universitários não são muito promissoras. As chances de superação de problemas
graves e crônicos de funcionamento de unidades complexas com apenas uma bala na
agulha são ínfimas. Mas rejeitar, a priori, as tentativas de melhorar a
administração de algumas das mais relevantes unidades de saúde e ensino do país
não é razoável.
Tratar direitos e deveres apenas no
papel e desprezar o tempo, os custos e os resultados significa se descomprometer
com as prioridades da saúde. Uma burocracia que não se moderniza torna-se mais
um obstáculo entre a positivação de direitos e sua efetivação. Portanto, fugir
da participação corajosa no debate sobre a EBSERH só piora as possibilidades de
enfrentar problemas. O subfinanciamento do SUS somado a distorções na formação e
distribuição de profissionais de saúde, especialmente médicos, conduzem
objetivamente à americanização da saúde. Por isso é necessário entender
exatamente o que enfrentaremos daqui a pouco. O dilema americano, exposto na
Suprema Corte no fim de março, explicitou as imensas dificuldades para assegurar
direitos universais mediante intensificação da regulação do mercado
privado.
A questão central examinada pelos
juízes foi a contradição entre a garantia da liberdade individual e a proibição
de empresas negarem coberturas e a intervenção governamental nos preços. A
transgressão aos cânones conservadores liderada por Obama foi questionada por
juízes desfavoráveis ao Affordable Care aprovado pelo Congresso em 2010. Entre
as perguntas formuladas constaram desde a analogia entre a obrigatoriedade de
pagar um plano de saúde e imposição de compra de celular ou de um seguro funeral
até a incongruência entre a existência de uma crise nacional do mercado de
assistência à saúde e a resposta universal de regular a forma de pagamento dos
planos e seguros.
Não existe registro de reformas no
sistema de saúde à prestação ou pela metade. Todas elas, inclusive a dos EUA,
foram, à sua maneira, radicais. No Brasil a necessidade de inverter a equação
menos imposto via subsídios fiscais e mais desigualdade não está na pauta sequer
de entidades sindicais de servidores públicos. Jornais de algumas dessas
organizações condenam, sem julgamento, a EBSERH por ser privatizante e
placidamente reivindicam mais e melhores planos de saúde para seus
associados.
Não é novidade constatar a imunidade
das estruturas e processos que geram discriminações e privilégios no Brasil.
Contudo, talvez as advertências sobre o efeito dramático da indiferença com a
saúde ajudem o reposicionamento de quem serve ao público. Ter emprego público
estável e acionar estratégias para multiplicar vínculos empregatícios, inclusive
com o setor privado, e escapar do atendimento no SUS é uma tremenda incoerência.
A lógica dos negócios é avessa ao SUS universal e de qualidade; a do palavrório
e papelório, também.
* Lígia Bahia,
vice-presidente da ABRASCO e professora de economia da saúde no Instituto de
Estudos em Saúde Coletiva da Universidade Federal do Rio de Janeiro (IESC/UFRJ).
Artigo publicado no publicado no Jornal O Globo, no dia 23 de janeiro de
2012.
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