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Francisco R.
Funcia (Economista, Mestre em Economia Política pela PUC-SP, Professor da USCS e
Consultor da FGV e do CNS)
O
objetivo deste texto é avaliar em caráter introdutório a criação do “Caixa Único
do SUS” pela União, Estados, Distrito Federal e Municípios em consonância com a
legislação que rege a gestão financeira do Sistema Único de Saúde (SUS), de
forma a centralizar os repasses oriundos da União e dos Estados para os
Municípios. Para isso, a seção 1 contextualiza a discussão sobre o “excesso de
regras” para esses repasses. A seção 2 trata do “excesso de regras” nos repasses
financeiros enquanto fator que restringe a ação do formulador da política de
saúde em âmbito local e a criação do “Caixa Único do SUS”. Por fim, são
apresentadas as considerações finais.
Quando o
governo brasileiro recorreu ao FMI em 1998 diante da crise do “Plano Real”, mais
uma vez submeteu a sociedade brasileira às condicionalidades exigidas por aquele
organismo internacional como contrapartida para obtenção do auxílio financeiro
pleiteado. Entre as condições estabelecidas, uma delas tratava da condução da
política econômica segundo “regras” (fiscais e monetárias), o que tornou
prioritário para todos os governos desde então[1]
o cumprimento das metas de inflação e de superávit primário. Essa condição
estava relacionada à inconsistência temporal das políticas discricionárias, em
outros termos:
a) à falta de
compromisso (com a posterior perda de credibilidade) dos formuladores de
políticas econômicas em adotar medidas que após o simples anúncio já tenham
surtido o efeito esperado pelo governo sobre as expectativas e o consequente
processo de tomada de decisão do setor privado; e/ou
b) à necessidade
dos governantes de atingir outros objetivos de curto prazo para
atender às pressões políticos de grupos de interesse, periodicamente (a cada 4
anos) associados à obtenção de resultados eleitorais.
De
certa forma, esse conceito adotado na formulação da política econômica também
está presente no modelo de financiamento interno das políticas públicas no
Brasil, que condicionam as transferências intergovernamentais da União para
Estados e Municípios e dos Estados para os Municípios.
O
“excesso de regras” para algumas das transferências intergovernamentais é
totalmente contrário ao ditame constitucional, que reformulou a lógica das
relações federativas a partir de 1988 e substituiu a subordinação hierárquica
dos Municípios aos Estados e União, bem como dos Estados à União, que existia
anteriormente pelo princípio da autonomia de cada esfera de governo no âmbito
das competências constitucionalmente estabelecidas.
A
Constituição Federal de 1988 priorizou a descentralização das políticas sociais
como um dos meios para promover a reestruturação do Estado Brasileiro e garantir
o exercício da cidadania por efetiva participação da sociedade na definição, na
gestão e na fiscalização das ações derivadas de tais políticas, sendo que as
experiências anteriormente implantadas pela área da saúde, no contexto da
reforma sanitária, foram decisivas para essa nova formulação constitucional.
Assim sendo, “excesso de normas” para o financiamento das políticas sociais,
entre as quais, a política de saúde é incompatível com vários dos princípios
constitucionais, como veremos a seguir.
A
Lei de Responsabilidade Fiscal (Lei Complementar nº 101/2000 - LRF),
surgiu a partir das condições exigidas pelo Fundo Monetário Internacional
para o “socorro” financeiro de 1998. Ela estabeleceu regras para o processo de
execução orçamentária e financeira nas três esferas de governo que confrontaram
com os dispositivos constitucionais citados anteriormente. Como por exemplo,
priorizar: pagamento de juros e amortização da dívida diante da necessidade de
limitação de gastos mesmo se a receita arrecadada estiver abaixo da previsão
bimestral; limites e condições para os gastos de pessoal,
necessidade de garantir a disponibilidade financeira para os compromissos
assumidos nos dois últimos quadrimestres de mandato; definição de medidas e
prazos para a recomposição dos limites e normas referentes aos gastos de
pessoal, endividamento público, superávit primário.
Porém, como
cerca de 2/3 das receitas municipais são constituídas de transferências
intergovernamentais (recursos oriundos do Estado e da União), as regras
estabelecidas pela LRF para a utilização de parte desses recursos “engessaram” e
“engessam” ainda mais os gestores, tendo como referência a rigidez orçamentária
a que essa esfera de governo está submetida.
Geralmente, a
rigidez orçamentária é atribuída à existência das vinculações constitucionais
que estabelecem percentuais de aplicação mínima para a saúde e educação, porém
outros gastos também podem ser caracterizados como de aplicação constitucional
obrigatória, como pagamento de folha de servidores e dos respectivos encargos
trabalhistas, transferência financeira para a Câmara Municipal, serviço de
iluminação pública, serviço de varrição e coleta de lixo, manutenção do viário,
juros e amortização da dívida pública. Considerando todos os gastos
obrigatórios, o poder discricionário dos gestores na livre definição das
políticas públicas representa cerca de 10% das receitas para a maioria dos
municípios brasileiros.
No
âmbito das transferências da União para os municípios, vinculadas ao Sistema
Único de Saúde, a modalidade fundo a fundo seria aquela pela qual os recursos
seriam repassados de forma ágil e sem as exigências que caracterizam a
modalidade convenial. É muito interessante ainda observar o
elevado número de contas bancárias abertas para a movimentação financeira dos
recursos que constituem o Fundo Municipal de Saúde, a maioria delas envolvendo
ações vinculadas a uma mesma política, promovendo uma verdadeira irracionalidade
administrativa e financeira no atendimento às necessidades da população. Desde
que não sejam recursos de natureza convenial, cujas regras firmadas
anteriormente precisam ser seguidas para a adequada prestação de contas, tais
valores existentes nessas contas deveriam ser integralmente repassados para um
“caixa único” do SUS (materializado pela abertura de uma conta única), para
utilização em ações e serviços públicos de saúde respeitada o poder
discricionário do gestor municipal na condução da política de saúde
local.
Na
verdade, com o advento da Portaria 204/2007 e da Portaria 837/2009, foram
criados 6 “Blocos de Financiamento” – Atenção Básica, Média e Alta Complexidade,
Vigilância em Saúde, Assistência Farmacêutica, Gestão e Investimento – em
substituição a mais de uma centena daquelas “linhas específicas” de
financiamento geradoras desse centenário número de contas
bancárias.
Porém, mesmo
com essa redução promovida pelos “Blocos de Financiamento”, restou mantida uma
“memória de cálculo” dos resíduos de prestação de contas das antigas “linhas
específicas” de financiamento, não sendo permitida a movimentação ou a
comprovação do gasto na regra atualmente válida para o respectivo “Bloco”. A
“rigidez da regra”, mesmo no novo contexto mais flexível, impede que o gestor
use seu poder discricionário na condução da política de saúde na esfera
municipal.
O
controle da aplicação dos recursos oriundos das transferências fundo a fundo no
âmbito do SUS não deveria ser feito pelo “extrato da conta bancária”, mas pelos
registros da execução orçamentária nas dotações específicas e pela documentação
de pagamento correspondente formada no mínimo pela nota fiscal e/ou recibo dos
materiais e/ou serviços prestados com a atestação devida, caracterizando a
liquidação da despesa, a certificação dessa liquidação pelo órgão de controle
interno e/ou setor contábil e, após isso, a documentação do pagamento realizado.
É importante destacar que esses registros da execução orçamentária e financeira
precisam estar disponíveis nos Portais das Prefeituras em “tempo real” ou no
máximo com um dia de defasagem, conforme disciplina Lei Complementar nº
131/2010.
Nessa direção,
enquanto a execução orçamentária e financeira permitiria fiscalizar a correta a
aplicação de cada “Bloco de Financiamento”, a conta única do “Caixa Único do
SUS” permitiria fiscalizar de forma mais clara e direta se os recursos estão
ingressando no valor certo e na data certa nos Municípios para a realização das
despesas no tempo certo, garantindo ao gestor maior segurança no processo de
realização da despesa pública e no atendimento às necessidades da população.
Estudos
clássicos na área de gestão apontam para a formação de uma cultura
tecnoburocrática no aparelho de Estado brasileiro, geralmente nas áreas de
planejamento, orçamento e finanças, que ainda resiste em vários setores do
governo federal em diferentes ministérios. Isso pode ser a explicação para a
manutenção da cultura do “excesso de regras” como forma de combater eventuais
desvios de finalidade na aplicação dos recursos, com o objetivo de facilitar a
ação da fiscalização das auditorias e órgãos do controle externo, adotando como
pressuposto que a “regra geral” dos gestores é cometer irregularidades com os
recursos públicos.
A
justificativa apresentada para a “rigidez das regras” é a
necessidade de uniformizar procedimentos e dificultar a “burla”. Porém, ocorre
exatamente o contrário: as regras rígidas” tendem a ser mais facilmente burladas
por gestores corruptos, enquanto regras mais flexíveis dificultam as
justificativas de práticas nocivas ao interesse público. Com isso, as “regras
rígidas” tendem a nivelar no mesmo patamar os bons e maus gestores, criando na
população a ideia de que não há diferença entre os gestores (ou entre as
gestões).
Além
disso, a “rigidez da regra” nos mecanismos de financiamento da política de saúde
restabelece a dependência da esfera municipal de governo em relação às esferas
estadual e federal, em franca oposição ao princípio da autonomia relativa no
âmbito de suas competências estabelecido pela Constituição Federal de 1988.
É
oportuno lembrar que os artigos 71 a 74 da Lei nº 4320/64, portanto, há quase 50
anos em vigor, tratou dessa questão, ao possibilitar a criação dos fundos
especiais de despesas que vinculam determinadas receitas a determinados
objetivos mediante criação de dotações específicas na Lei Orçamentária e
demonstração da aplicação em balanços específicos. Os fundos de despesa permitem
o monitoramento da efetiva aplicação desses recursos, no nosso caso, da saúde,
sem excesso de burocracia, apesar das regulamentações recentes editadas pela
Secretaria da Receita Federal e pelo Fundo Nacional de Saúde para os repasses
aos Estados e Municípios (exigência de CNPJ próprio como matriz,
etc.)
A
discricionariedade do gestor municipal na condução da política de saúde não pode
estar limitada pela forma de utilização financeira dos recursos oriundos de
transferências intergovernamentais segundo as diferentes contas bancárias de
ingresso, mas tão somente pelas politicas pactuadas (com metas de resultado) no
âmbito das Comissões Intergestores Tripartite e Bipartite, devidamente
deliberadas nos respectivos Conselhos de Saúde, tendo com referências, além da
Constituição Federal, os princípios e diretrizes estabelecidos pela Lei nº
8080/90, Lei nº 8142/90 e Lei Complementar nº 141/2012.
Portanto, a
criação de um “Caixa Único do SUS” em cada esfera de governo como regra geral
para a movimentação financeira dos recursos do SUS pelos respectivos Fundos de
Saúde pode ser entendida como um meio eficaz de fortalecimento administrativo do
processo de financiamento do SUS, porque a gestão financeira dos recursos deve
ser entendida como um meio para se atingir os objetivos pretendidos, sempre na
perspectiva da preservação do Erário e da garantia do interesse público.
A
criação do “Caixa Único do SUS” e da “conta bancária única” para a movimentação
financeira dos recursos oriundos das transferências segundo os 6 “Blocos de
Financiamento” permitirá o controle mais eficiente da execução das políticas de
saúde a partir dos registros da execução orçamentária e financeira.
Isso
representará um importante avanço administrativo na perspectiva da garantia do
interesse público, tendo em vista a racionalidade e celeridade que traria à
gestão municipal, assim como para as gestões federal e estaduais, cuja auditoria
poderá ser mais eficiente à medida que estaria mais focada na verificação do
cumprimento das respectivas metas e resultados pactuados.
Privilegiar a
modalidade fundo a fundo em relação à convenial é uma exigência legal (agora na
Lei Complementar nº 141/2012), de modo que a movimentação financeira dos
recursos do SUS deverá ocorrer exclusivamente por meio das “contas bancárias
únicas” vinculadas aos respectivos “Caixas Únicos” dos Fundos de Saúde
(Nacional, Estaduais e Municipais) para recepcionar os recursos oriundos das
transferências intergovernamentais destinados ao Sistema Único de Saúde. Será
uma exceção a abertura de outras contas (como por exemplo, para eventuais
convênios e Termos de Cooperação Internacionais). Para tanto, será preciso
resgatar a gênese legal dos Fundos de Despesa, bem como da modalidade de
transferência fundo a fundo, com a revisão do “excesso de regras” que atualmente
condiciona a aplicação eficiente desses instrumentos.
O
estabelecimento de uma “conta bancária única” vinculada ao Fundo Municipal de
Saúde facilitará a fiscalização dos recursos recebidos das outras esferas de
governo, identificando em balancetes mensais a natureza do recurso recebido.
Vale ressaltar que, no contexto legal da Lei Complementar nº 141, compete aos
Conselhos de Saúde (Nacional e Estaduais) deliberar sobre os critérios a serem
estabelecidos para essas transferências intergovernamentais (da União e dos
Estados para os municípios), enquanto que os Conselhos Municipais de Saúde
deverão ser informados pelos gestores federal e estaduais sobre esses repasses,
bem como fiscalizarão a aplicarão desses recursos.
Desta forma, os
gestores que repassarão os recursos deverão identificar claramente nas
respectivas leis orçamentárias os valores e as finalidades das transferências
segundo os diferentes programas (lembrando que na União essa identificação será
feita de outra forma porque o novo formato do PPA descaracterizou os programas
orçamentários), com as definições de prazos para os repasses submetidas aos
respectivos Conselhos de Saúde, bem como transmitirão todas as informações
desses repasses aos Conselhos de Saúde dos Municípios. Estes, por sua vez,
poderão verificar o ingresso desses recursos centralizados na “conta bancária
única” e acompanhar a execução orçamentária e financeira desses recursos
concomitantemente aos indicadores da saúde da população, nos termos da Lei
Complementar nº 141/2012.
As
políticas pactuadas no âmbito das CIB’s e CIT, devidamente deliberadas pelos
respectivos Conselhos de Saúde, deverão ser as referências básicas para a
fiscalização dos recursos oriundos dessas transferências intergovernamentais
segundo a finalidade de aplicação, redirecionando o foco das auditorias internas
e dos órgãos de controle externo à qualidade das ações desenvolvidas à luz de
resultados medidos por indicadores pactuados para esse fim. Com isso, inclusive,
poderá ser avaliada a capacidade de gestão financeira dos recursos recebidos
para o cumprimento dos objetivos de cada política pactuada para Atenção Básica,
Média e Alta Complexidade, Assistência Farmacêutica, Vigilância Epidemiológica e
Sanitária, entre outras.
Tais
medidas de ordem administrativa e/ou interna não requerem mudança na legislação
e simplificam o processo de fiscalização e monitoramento por parte dos Conselhos
de Saúde, que poderão verificar com mais clareza a movimentação financeira dos
recursos da saúde e cotejar com a respectiva execução orçamentária.
Esse
cotejamento a ser realizado pelos Conselhos de Saúde da cada esfera de governo
ocorrerá por meio dos programas orçamentários, que deverão expressar as
políticas de saúde pactuadas, bem como monitorados e avaliados com base nos
indicadores também pactuados para esse fim, inclusive em relação às respectivas
ações orçamentárias. A implantação do “Caixa Único do SUS” em cada esfera de
governo representará o fortalecimento do princípio do planejamento mediante a
combinação de recursos próprios e de transferências intergovernamentais para se
alcançar os objetivos e metas estabelecidas nos Planos de Saúde.
O
respeito ao princípio da transparência será fortalecido com a adoção do “Caixa
Único do SUS”. No âmbito municipal, essas informações de receitas e despesas
deverão estar disponibilizadas nos respectivos portais da Prefeitura (e das
esferas estadual e federal transferidora dos recursos) em “tempo real” (ou no
máximo com um dia de defasagem). Afinal, o que é receita municipal de
transferência intergovernamental é despesa registrada na esfera federal e
estadual.
As
despesas municipais realizadas com recursos oriundos dessas outras fontes também
poderão ser acompanhadas em tempo real (empenhos e pagamentos realizados aos
prestadores de serviços e fornecedores de materiais, além dos pagamentos de
pessoal e outras despesas), bem como a movimentação financeira do respectivo
Fundo de Saúde (agora numa única conta bancária) deverá ser disponibilizada
diariamente nos boletins da Tesouraria.
Evidentemente
que essas mudanças propostas respeitam o caráter discricionário da política de
saúde a ser conduzida por cada gestor, sempre limitada pelos princípios
constitucionais e legais que regem o SUS, devidamente pactuadas nas CIB’s e CIT
e deliberadas nos respectivos Conselhos de Saúde. Em outros termos, respeitará o
princípio constitucional da autonomia relativa entre as três esferas de governo,
bem como respeita as diferenças entre os ritmos de execução da despesa pública
em função do planejamento e/ou das necessidades específicas de cada local.
Por
fim, essas mudanças permitirão evidenciar as diferenças qualitativas na condução
da política de saúde entre os gestores, contribuindo para o processo político
mais geral voltado para uma reforma do Estado brasileiro, na perspectiva do
aprofundamento da descentralização das políticas públicas com capacidade de
financiamento e da participação da sociedade prevista pela
Constituição Federal de 1988.
[1] A partir de meados do 2º mandato do governo Lula e do atual
mandato do governo Dilma, houve alguma flexibilização na forma da condução da
política econômica, com a introdução de outras prioridades a serem contempladas,
entre as quais, o crescimento econômico, a redução da extrema pobreza, o
fortalecimento do mercado interno, o aumento do emprego formal e da renda da
população.
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"Há um tempo em que é preciso abandonar as roupas usadas, que já tem a forma do nosso corpo. Esquecer os nossos caminhos que nos levam sempre aos mesmos lugares. É o tempo da travessia. E se não ousamrmos fazê-la, teremos ficado para sempre a margem de nós mesmos" Fernando Pessoa.
sexta-feira, 12 de outubro de 2012
Caixa Único do SUS: Mania de Descumprir a Lei para a Ousadia de Cumprir a Lei.
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