sexta-feira, 12 de outubro de 2012

Caixa Único do SUS: Mania de Descumprir a Lei para a Ousadia de Cumprir a Lei.

 

 

 
 
Francisco R. Funcia (Economista, Mestre em Economia Política pela PUC-SP, Professor da USCS e Consultor da FGV e do CNS)
O objetivo deste texto é avaliar em caráter introdutório a criação do “Caixa Único do SUS” pela União, Estados, Distrito Federal e Municípios em consonância com a legislação que rege a gestão financeira do Sistema Único de Saúde (SUS), de forma a centralizar os repasses oriundos da União e dos Estados para os Municípios. Para isso, a seção 1 contextualiza a discussão sobre o “excesso de regras” para esses repasses. A seção 2 trata do “excesso de regras” nos repasses financeiros enquanto fator que restringe a ação do formulador da política de saúde em âmbito local e a criação do “Caixa Único do SUS”. Por fim, são apresentadas as considerações finais.
  1. As “regras” na condução das políticas públicas na contramão da Constituição Federal de 1988
Quando o governo brasileiro recorreu ao FMI em 1998 diante da crise do “Plano Real”, mais uma vez submeteu a sociedade brasileira às condicionalidades exigidas por aquele organismo internacional como contrapartida para obtenção do auxílio financeiro pleiteado. Entre as condições estabelecidas, uma delas tratava da condução da política econômica segundo “regras” (fiscais e monetárias), o que tornou prioritário para todos os governos desde então[1] o cumprimento das metas de inflação e de superávit primário. Essa condição estava relacionada à inconsistência temporal das políticas discricionárias, em outros termos:
a) à falta de compromisso (com a posterior perda de credibilidade) dos formuladores de políticas econômicas em adotar medidas que após o simples anúncio já tenham surtido o efeito esperado pelo governo sobre as expectativas e o consequente processo de tomada de decisão do setor privado; e/ou
b) à necessidade dos governantes de atingir outros objetivos de curto prazo para atender às pressões políticos de grupos de interesse, periodicamente (a cada 4 anos) associados à obtenção de resultados eleitorais.
De certa forma, esse conceito adotado na formulação da política econômica também está presente no modelo de financiamento interno das políticas públicas no Brasil, que condicionam as transferências intergovernamentais da União para Estados e Municípios e dos Estados para os Municípios.
O “excesso de regras” para algumas das transferências intergovernamentais é totalmente contrário ao ditame constitucional, que reformulou a lógica das relações federativas a partir de 1988 e substituiu a subordinação hierárquica dos Municípios aos Estados e União, bem como dos Estados à União, que existia anteriormente pelo princípio da autonomia de cada esfera de governo no âmbito das competências constitucionalmente estabelecidas.
A Constituição Federal de 1988 priorizou a descentralização das políticas sociais como um dos meios para promover a reestruturação do Estado Brasileiro e garantir o exercício da cidadania por efetiva participação da sociedade na definição, na gestão e na fiscalização das ações derivadas de tais políticas, sendo que as experiências anteriormente implantadas pela área da saúde, no contexto da reforma sanitária, foram decisivas para essa nova formulação constitucional. Assim sendo, “excesso de normas” para o financiamento das políticas sociais, entre as quais, a política de saúde é incompatível com vários dos princípios constitucionais, como veremos a seguir.
A Lei de Responsabilidade Fiscal (Lei Complementar nº 101/2000 - LRF), surgiu a partir das condições exigidas pelo Fundo Monetário Internacional para o “socorro” financeiro de 1998. Ela estabeleceu regras para o processo de execução orçamentária e financeira nas três esferas de governo que confrontaram com os dispositivos constitucionais citados anteriormente. Como por exemplo, priorizar: pagamento de juros e amortização da dívida diante da necessidade de limitação de gastos mesmo se a receita arrecadada estiver abaixo da previsão bimestral; limites e condições para os gastos de pessoal, necessidade de garantir a disponibilidade financeira para os compromissos assumidos nos dois últimos quadrimestres de mandato; definição de medidas e prazos para a recomposição dos limites e normas referentes aos gastos de pessoal, endividamento público, superávit primário.
Porém, como cerca de 2/3 das receitas municipais são constituídas de transferências intergovernamentais (recursos oriundos do Estado e da União), as regras estabelecidas pela LRF para a utilização de parte desses recursos “engessaram” e “engessam” ainda mais os gestores, tendo como referência a rigidez orçamentária a que essa esfera de governo está submetida.
Geralmente, a rigidez orçamentária é atribuída à existência das vinculações constitucionais que estabelecem percentuais de aplicação mínima para a saúde e educação, porém outros gastos também podem ser caracterizados como de aplicação constitucional obrigatória, como pagamento de folha de servidores e dos respectivos encargos trabalhistas, transferência financeira para a Câmara Municipal, serviço de iluminação pública, serviço de varrição e coleta de lixo, manutenção do viário, juros e amortização da dívida pública. Considerando todos os gastos obrigatórios, o poder discricionário dos gestores na livre definição das políticas públicas representa cerca de 10% das receitas para a maioria dos municípios brasileiros.
  1. A criação do “Caixa Único do SUS” na União, Estados e Municípios como meio de superar a mania de descumprir a lei (ou a ousadia para cumprir a lei, lema que continua cada vez mais atual) nas relações intergovernamentais: uma avaliação da proposta sob a ótica municipal
No âmbito das transferências da União para os municípios, vinculadas ao Sistema Único de Saúde, a modalidade fundo a fundo seria aquela pela qual os recursos seriam repassados de forma ágil e sem as exigências que caracterizam a modalidade convenial. É muito interessante ainda observar o elevado número de contas bancárias abertas para a movimentação financeira dos recursos que constituem o Fundo Municipal de Saúde, a maioria delas envolvendo ações vinculadas a uma mesma política, promovendo uma verdadeira irracionalidade administrativa e financeira no atendimento às necessidades da população. Desde que não sejam recursos de natureza convenial, cujas regras firmadas anteriormente precisam ser seguidas para a adequada prestação de contas, tais valores existentes nessas contas deveriam ser integralmente repassados para um “caixa único” do SUS (materializado pela abertura de uma conta única), para utilização em ações e serviços públicos de saúde respeitada o poder discricionário do gestor municipal na condução da política de saúde local.
Na verdade, com o advento da Portaria 204/2007 e da Portaria 837/2009, foram criados 6 “Blocos de Financiamento” – Atenção Básica, Média e Alta Complexidade, Vigilância em Saúde, Assistência Farmacêutica, Gestão e Investimento – em substituição a mais de uma centena daquelas “linhas específicas” de financiamento geradoras desse centenário número de contas bancárias.
Porém, mesmo com essa redução promovida pelos “Blocos de Financiamento”, restou mantida uma “memória de cálculo” dos resíduos de prestação de contas das antigas “linhas específicas” de financiamento, não sendo permitida a movimentação ou a comprovação do gasto na regra atualmente válida para o respectivo “Bloco”. A “rigidez da regra”, mesmo no novo contexto mais flexível, impede que o gestor use seu poder discricionário na condução da política de saúde na esfera municipal.
O controle da aplicação dos recursos oriundos das transferências fundo a fundo no âmbito do SUS não deveria ser feito pelo “extrato da conta bancária”, mas pelos registros da execução orçamentária nas dotações específicas e pela documentação de pagamento correspondente formada no mínimo pela nota fiscal e/ou recibo dos materiais e/ou serviços prestados com a atestação devida, caracterizando a liquidação da despesa, a certificação dessa liquidação pelo órgão de controle interno e/ou setor contábil e, após isso, a documentação do pagamento realizado. É importante destacar que esses registros da execução orçamentária e financeira precisam estar disponíveis nos Portais das Prefeituras em “tempo real” ou no máximo com um dia de defasagem, conforme disciplina Lei Complementar nº 131/2010.
Nessa direção, enquanto a execução orçamentária e financeira permitiria fiscalizar a correta a aplicação de cada “Bloco de Financiamento”, a conta única do “Caixa Único do SUS” permitiria fiscalizar de forma mais clara e direta se os recursos estão ingressando no valor certo e na data certa nos Municípios para a realização das despesas no tempo certo, garantindo ao gestor maior segurança no processo de realização da despesa pública e no atendimento às necessidades da população.
Estudos clássicos na área de gestão apontam para a formação de uma cultura tecnoburocrática no aparelho de Estado brasileiro, geralmente nas áreas de planejamento, orçamento e finanças, que ainda resiste em vários setores do governo federal em diferentes ministérios. Isso pode ser a explicação para a manutenção da cultura do “excesso de regras” como forma de combater eventuais desvios de finalidade na aplicação dos recursos, com o objetivo de facilitar a ação da fiscalização das auditorias e órgãos do controle externo, adotando como pressuposto que a “regra geral” dos gestores é cometer irregularidades com os recursos públicos.
A justificativa apresentada para a “rigidez das regras” é a necessidade de uniformizar procedimentos e dificultar a “burla”. Porém, ocorre exatamente o contrário: as regras rígidas” tendem a ser mais facilmente burladas por gestores corruptos, enquanto regras mais flexíveis dificultam as justificativas de práticas nocivas ao interesse público. Com isso, as “regras rígidas” tendem a nivelar no mesmo patamar os bons e maus gestores, criando na população a ideia de que não há diferença entre os gestores (ou entre as gestões).
Além disso, a “rigidez da regra” nos mecanismos de financiamento da política de saúde restabelece a dependência da esfera municipal de governo em relação às esferas estadual e federal, em franca oposição ao princípio da autonomia relativa no âmbito de suas competências estabelecido pela Constituição Federal de 1988.
É oportuno lembrar que os artigos 71 a 74 da Lei nº 4320/64, portanto, há quase 50 anos em vigor, tratou dessa questão, ao possibilitar a criação dos fundos especiais de despesas que vinculam determinadas receitas a determinados objetivos mediante criação de dotações específicas na Lei Orçamentária e demonstração da aplicação em balanços específicos. Os fundos de despesa permitem o monitoramento da efetiva aplicação desses recursos, no nosso caso, da saúde, sem excesso de burocracia, apesar das regulamentações recentes editadas pela Secretaria da Receita Federal e pelo Fundo Nacional de Saúde para os repasses aos Estados e Municípios (exigência de CNPJ próprio como matriz, etc.)
A discricionariedade do gestor municipal na condução da política de saúde não pode estar limitada pela forma de utilização financeira dos recursos oriundos de transferências intergovernamentais segundo as diferentes contas bancárias de ingresso, mas tão somente pelas politicas pactuadas (com metas de resultado) no âmbito das Comissões Intergestores Tripartite e Bipartite, devidamente deliberadas nos respectivos Conselhos de Saúde, tendo com referências, além da Constituição Federal, os princípios e diretrizes estabelecidos pela Lei nº 8080/90, Lei nº 8142/90 e Lei Complementar nº 141/2012.
  1. Considerações Finais
Portanto, a criação de um “Caixa Único do SUS” em cada esfera de governo como regra geral para a movimentação financeira dos recursos do SUS pelos respectivos Fundos de Saúde pode ser entendida como um meio eficaz de fortalecimento administrativo do processo de financiamento do SUS, porque a gestão financeira dos recursos deve ser entendida como um meio para se atingir os objetivos pretendidos, sempre na perspectiva da preservação do Erário e da garantia do interesse público.
A criação do “Caixa Único do SUS” e da “conta bancária única” para a movimentação financeira dos recursos oriundos das transferências segundo os 6 “Blocos de Financiamento” permitirá o controle mais eficiente da execução das políticas de saúde a partir dos registros da execução orçamentária e financeira.
Isso representará um importante avanço administrativo na perspectiva da garantia do interesse público, tendo em vista a racionalidade e celeridade que traria à gestão municipal, assim como para as gestões federal e estaduais, cuja auditoria poderá ser mais eficiente à medida que estaria mais focada na verificação do cumprimento das respectivas metas e resultados pactuados.
Privilegiar a modalidade fundo a fundo em relação à convenial é uma exigência legal (agora na Lei Complementar nº 141/2012), de modo que a movimentação financeira dos recursos do SUS deverá ocorrer exclusivamente por meio das “contas bancárias únicas” vinculadas aos respectivos “Caixas Únicos” dos Fundos de Saúde (Nacional, Estaduais e Municipais) para recepcionar os recursos oriundos das transferências intergovernamentais destinados ao Sistema Único de Saúde. Será uma exceção a abertura de outras contas (como por exemplo, para eventuais convênios e Termos de Cooperação Internacionais). Para tanto, será preciso resgatar a gênese legal dos Fundos de Despesa, bem como da modalidade de transferência fundo a fundo, com a revisão do “excesso de regras” que atualmente condiciona a aplicação eficiente desses instrumentos.
O estabelecimento de uma “conta bancária única” vinculada ao Fundo Municipal de Saúde facilitará a fiscalização dos recursos recebidos das outras esferas de governo, identificando em balancetes mensais a natureza do recurso recebido. Vale ressaltar que, no contexto legal da Lei Complementar nº 141, compete aos Conselhos de Saúde (Nacional e Estaduais) deliberar sobre os critérios a serem estabelecidos para essas transferências intergovernamentais (da União e dos Estados para os municípios), enquanto que os Conselhos Municipais de Saúde deverão ser informados pelos gestores federal e estaduais sobre esses repasses, bem como fiscalizarão a aplicarão desses recursos.
Desta forma, os gestores que repassarão os recursos deverão identificar claramente nas respectivas leis orçamentárias os valores e as finalidades das transferências segundo os diferentes programas (lembrando que na União essa identificação será feita de outra forma porque o novo formato do PPA descaracterizou os programas orçamentários), com as definições de prazos para os repasses submetidas aos respectivos Conselhos de Saúde, bem como transmitirão todas as informações desses repasses aos Conselhos de Saúde dos Municípios. Estes, por sua vez, poderão verificar o ingresso desses recursos centralizados na “conta bancária única” e acompanhar a execução orçamentária e financeira desses recursos concomitantemente aos indicadores da saúde da população, nos termos da Lei Complementar nº 141/2012.
As políticas pactuadas no âmbito das CIB’s e CIT, devidamente deliberadas pelos respectivos Conselhos de Saúde, deverão ser as referências básicas para a fiscalização dos recursos oriundos dessas transferências intergovernamentais segundo a finalidade de aplicação, redirecionando o foco das auditorias internas e dos órgãos de controle externo à qualidade das ações desenvolvidas à luz de resultados medidos por indicadores pactuados para esse fim. Com isso, inclusive, poderá ser avaliada a capacidade de gestão financeira dos recursos recebidos para o cumprimento dos objetivos de cada política pactuada para Atenção Básica, Média e Alta Complexidade, Assistência Farmacêutica, Vigilância Epidemiológica e Sanitária, entre outras.
Tais medidas de ordem administrativa e/ou interna não requerem mudança na legislação e simplificam o processo de fiscalização e monitoramento por parte dos Conselhos de Saúde, que poderão verificar com mais clareza a movimentação financeira dos recursos da saúde e cotejar com a respectiva execução orçamentária.
Esse cotejamento a ser realizado pelos Conselhos de Saúde da cada esfera de governo ocorrerá por meio dos programas orçamentários, que deverão expressar as políticas de saúde pactuadas, bem como monitorados e avaliados com base nos indicadores também pactuados para esse fim, inclusive em relação às respectivas ações orçamentárias. A implantação do “Caixa Único do SUS” em cada esfera de governo representará o fortalecimento do princípio do planejamento mediante a combinação de recursos próprios e de transferências intergovernamentais para se alcançar os objetivos e metas estabelecidas nos Planos de Saúde.
O respeito ao princípio da transparência será fortalecido com a adoção do “Caixa Único do SUS”. No âmbito municipal, essas informações de receitas e despesas deverão estar disponibilizadas nos respectivos portais da Prefeitura (e das esferas estadual e federal transferidora dos recursos) em “tempo real” (ou no máximo com um dia de defasagem). Afinal, o que é receita municipal de transferência intergovernamental é despesa registrada na esfera federal e estadual.
As despesas municipais realizadas com recursos oriundos dessas outras fontes também poderão ser acompanhadas em tempo real (empenhos e pagamentos realizados aos prestadores de serviços e fornecedores de materiais, além dos pagamentos de pessoal e outras despesas), bem como a movimentação financeira do respectivo Fundo de Saúde (agora numa única conta bancária) deverá ser disponibilizada diariamente nos boletins da Tesouraria.
Evidentemente que essas mudanças propostas respeitam o caráter discricionário da política de saúde a ser conduzida por cada gestor, sempre limitada pelos princípios constitucionais e legais que regem o SUS, devidamente pactuadas nas CIB’s e CIT e deliberadas nos respectivos Conselhos de Saúde. Em outros termos, respeitará o princípio constitucional da autonomia relativa entre as três esferas de governo, bem como respeita as diferenças entre os ritmos de execução da despesa pública em função do planejamento e/ou das necessidades específicas de cada local.
Por fim, essas mudanças permitirão evidenciar as diferenças qualitativas na condução da política de saúde entre os gestores, contribuindo para o processo político mais geral voltado para uma reforma do Estado brasileiro, na perspectiva do aprofundamento da descentralização das políticas públicas com capacidade de financiamento e da participação da sociedade prevista pela Constituição Federal de 1988.


[1] A partir de meados do 2º mandato do governo Lula e do atual mandato do governo Dilma, houve alguma flexibilização na forma da condução da política econômica, com a introdução de outras prioridades a serem contempladas, entre as quais, o crescimento econômico, a redução da extrema pobreza, o fortalecimento do mercado interno, o aumento do emprego formal e da renda da população.

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