21/07/2008
O relatório mais atualizado da Organização Mundial de Saúde (OMS), com dados de 2005, mostrou que o governo brasileiro banca 44% do total de despesas com saúde. Os 56% restantes cabem às famílias e às empresas. Em 1995, essa relação era inversa: 62% de financiamento público e 38% de privado. "Em valores nominais, as despesas de todos cresceram. Mas a despesa privada cresceu mais que a pública em dez anos", diz Gilson Carvalho, consultor do Conselho Nacional de Secretarias Municipais de Saúde (CONASEMS) e dono de um detalhado banco de dados sobre o tema.
Essa transformação está na contramão da tendência mundial. Dos 192 países analisados pela OMS, nada menos que 108 exibem gastos públicos acima de 50% no setor. Dos 48 países com menor taxa de mortalidade infantil, em 44 predomina o financiamento público em saúde.
Os R$ 166 bilhões aplicados na saúde em 2006 correspondiam a 8% do PIB, mesmo porcentual que os países desenvolvidos aplicavam na década de 1980. Nos anos 60, o mundo rico destinava 4% de sua renda para a saúde. Vinte anos mais tarde, a taxa dobrou. Hoje, seis países já dedicam pelo menos 10% do PIB à saúde. Dados da OMS de 2004 revelam que os Estados Unidos chegaram a 15,3%. Segundo Carvalho, o Brasil ocupa a 45ª posição em porcentual do PIB gasto em saúde. Quando se compara o gasto absoluto em saúde por habitante, em termos de paridade do poder de compra, os EUA investem nove vezes mais que o Brasil; e a Inglaterra, três a quatro vezes mais, de acordo com o pesquisador Marcos Bosi Ferraz.
Seja num país em desenvolvimento, como o Brasil, seja nos EUA, a ampliação de gastos com saúde está longe de assegurar melhora automática do serviço. Um estudo financiado pelo Commonwealth Fund comparou EUA, Austrália, Canadá, Alemanha, Nova Zelândia e Reino Unido e concluiu que o aparato de saúde americano está em último ou penúltimo lugar em cinco de seis quesitos, que incluem qualidade, acesso e eficiência. Os EUA são o único país entre os analisados que recusa a cobertura universal em saúde.
Cada sistema e cada país têm suas características particulares. Não há uma solução que se aplique da mesma forma a dois países. Por isso, comparações podem ser enganosas. Elevar a proporção do PIB gasta com saúde não se justifica por si só. Investimentos em outras áreas, como saneamento básico, educação, alimentação e segurança, também resultam em melhora na saúde, especialmente em um país em desenvolvimento.
Bosi Ferraz fez projeções para os próximos 20 anos sobre o PIB, a inflação e o sistema de saúde. Considerando-se um crescimento médio anual do PIB de 3,5% até 2025, uma inflação anual média de 5% e uma distribuição de renda semelhante à atual, daqui a duas décadas será necessário investir em saúde cerca de 10% do PIB apenas para manter o nível atual de serviço. "Todo o sistema remuneratório do setor saúde é mais centrado no pagamento de ações e serviços para quem já está doente", diz Carvalho. "Além disso, há perda pela corrupção e pelo baixo nível de comprometimento ético e moral".
Dar prioridade à prevenção evitaria gastos futuros com tratamento de doentes
Qual é a saída - De Nova York, onde acaba de assumir um posto como pesquisador da Academia de Medicina local, o professor Alexandre Kalache diz não ter dúvida: concentrar o máximo da verba em ações de prevenção contra doenças que afetam os adultos - a parte da população que cresce mais rapidamente à medida que cai o número de filhos por família. As ações preventivas (como promover a atividade física e realizar campanhas de vacinação) reduziriam a incidência de doenças. Impediriam que muitos casos de diabetes evoluam para cegueira ou insuficiência renal e adiariam os processos degenerativos que levam a doenças e à morte. Além disso, segundo Kalache, há outro grande desafio: a prevenção das chamadas "causas de morte externas". É a violência urbana que mata sobretudo jovens entre 15 e 24 anos, uma perda humana e econômica.
Tais providências ajudariam as gerações futuras, mas teriam pouca influência sobre o tratamento de quem já está doente. E 75% das pessoas que precisam de cuidados dependem exclusivamente do Sistema Único de Saúde. Criado em 1988 e implementado em 1991, o SUS é considerado o sistema de saúde mais abrangente do mundo, com a maior população coberta, apesar da ineficiência. Enquanto os outros fatores que produzem doenças não são atacados, a saída continua sendo alocar recursos para o SUS. É o que poderá acontecer se for aprovado um projeto de lei que regulamenta a Emenda Constitucional 29.
Criada em 2000, a Emenda 29 define o porcentual mínimo que União, Estados e municípios devem investir na saúde. Para os Estados, a emenda impõe 12% da receita corrente bruta, para os municípios 15%. O porcentual da União ficou para ser definido em 2004, mas até agora não foi estabelecido. Sem a regulamentação, o governo federal ficou desobrigado a investir um porcentual fixo. Em 2007, a fatia da União ficou em apenas 47%, os outros 53% vieram dos Estados (26%) e dos municípios (27%). Em 1980, a União financiava 75% da saúde, os Estados 18% e os municípios 7%. "A União desonerou-se da responsabilidade com saúde e descentralizou-a a Estados e municípios sem o correspondente financiamento", diz Carvalho.
Atualmente, o governo federal aplica R$ 48 bilhões por ano no setor, o que corresponde a cerca de 7% de sua receita. O projeto em discussão obriga a União a repassar 10% de suas receitas brutas para o setor, partindo da posição atual e subindo de forma escalonada, até 2011. Aprovada, a proposta aumentará em R$ 23 bilhões a verba para a saúde.
Isso quer dizer que o governo federal está devendo - e muito. Quando o piso mínimo de 10% do orçamento for aprovado, a parte da União ainda ficará longe de sua contribuição de um quarto de século atrás. Mesmo assim, haveria 1% a mais do PIB para a saúde. "Vivemos num mundo globalizado. Somos tentados a consumir do bom e do melhor disponível no mundo. Com a saúde não é diferente", diz Bosi Ferraz. Todos querem medicamentos para novas doenças, diagnósticos, prevenção. O Brasil vive essa tentação de consumo de hoje com um porcentual de gasto em saúde que os países desenvolvidos gastavam duas, três ou até quatro décadas atrás. Essa conta nunca vai fechar, quaisquer que sejam os recursos aplicados, se a sociedade mantiver a ilusão de que planejamento e continuidade são passatempos de quem não tem nada para fazer de útil no setor público ou no privado.
Texto: Revista Época
Essa transformação está na contramão da tendência mundial. Dos 192 países analisados pela OMS, nada menos que 108 exibem gastos públicos acima de 50% no setor. Dos 48 países com menor taxa de mortalidade infantil, em 44 predomina o financiamento público em saúde.
Os R$ 166 bilhões aplicados na saúde em 2006 correspondiam a 8% do PIB, mesmo porcentual que os países desenvolvidos aplicavam na década de 1980. Nos anos 60, o mundo rico destinava 4% de sua renda para a saúde. Vinte anos mais tarde, a taxa dobrou. Hoje, seis países já dedicam pelo menos 10% do PIB à saúde. Dados da OMS de 2004 revelam que os Estados Unidos chegaram a 15,3%. Segundo Carvalho, o Brasil ocupa a 45ª posição em porcentual do PIB gasto em saúde. Quando se compara o gasto absoluto em saúde por habitante, em termos de paridade do poder de compra, os EUA investem nove vezes mais que o Brasil; e a Inglaterra, três a quatro vezes mais, de acordo com o pesquisador Marcos Bosi Ferraz.
Seja num país em desenvolvimento, como o Brasil, seja nos EUA, a ampliação de gastos com saúde está longe de assegurar melhora automática do serviço. Um estudo financiado pelo Commonwealth Fund comparou EUA, Austrália, Canadá, Alemanha, Nova Zelândia e Reino Unido e concluiu que o aparato de saúde americano está em último ou penúltimo lugar em cinco de seis quesitos, que incluem qualidade, acesso e eficiência. Os EUA são o único país entre os analisados que recusa a cobertura universal em saúde.
Cada sistema e cada país têm suas características particulares. Não há uma solução que se aplique da mesma forma a dois países. Por isso, comparações podem ser enganosas. Elevar a proporção do PIB gasta com saúde não se justifica por si só. Investimentos em outras áreas, como saneamento básico, educação, alimentação e segurança, também resultam em melhora na saúde, especialmente em um país em desenvolvimento.
Bosi Ferraz fez projeções para os próximos 20 anos sobre o PIB, a inflação e o sistema de saúde. Considerando-se um crescimento médio anual do PIB de 3,5% até 2025, uma inflação anual média de 5% e uma distribuição de renda semelhante à atual, daqui a duas décadas será necessário investir em saúde cerca de 10% do PIB apenas para manter o nível atual de serviço. "Todo o sistema remuneratório do setor saúde é mais centrado no pagamento de ações e serviços para quem já está doente", diz Carvalho. "Além disso, há perda pela corrupção e pelo baixo nível de comprometimento ético e moral".
Dar prioridade à prevenção evitaria gastos futuros com tratamento de doentes
Qual é a saída - De Nova York, onde acaba de assumir um posto como pesquisador da Academia de Medicina local, o professor Alexandre Kalache diz não ter dúvida: concentrar o máximo da verba em ações de prevenção contra doenças que afetam os adultos - a parte da população que cresce mais rapidamente à medida que cai o número de filhos por família. As ações preventivas (como promover a atividade física e realizar campanhas de vacinação) reduziriam a incidência de doenças. Impediriam que muitos casos de diabetes evoluam para cegueira ou insuficiência renal e adiariam os processos degenerativos que levam a doenças e à morte. Além disso, segundo Kalache, há outro grande desafio: a prevenção das chamadas "causas de morte externas". É a violência urbana que mata sobretudo jovens entre 15 e 24 anos, uma perda humana e econômica.
Tais providências ajudariam as gerações futuras, mas teriam pouca influência sobre o tratamento de quem já está doente. E 75% das pessoas que precisam de cuidados dependem exclusivamente do Sistema Único de Saúde. Criado em 1988 e implementado em 1991, o SUS é considerado o sistema de saúde mais abrangente do mundo, com a maior população coberta, apesar da ineficiência. Enquanto os outros fatores que produzem doenças não são atacados, a saída continua sendo alocar recursos para o SUS. É o que poderá acontecer se for aprovado um projeto de lei que regulamenta a Emenda Constitucional 29.
Criada em 2000, a Emenda 29 define o porcentual mínimo que União, Estados e municípios devem investir na saúde. Para os Estados, a emenda impõe 12% da receita corrente bruta, para os municípios 15%. O porcentual da União ficou para ser definido em 2004, mas até agora não foi estabelecido. Sem a regulamentação, o governo federal ficou desobrigado a investir um porcentual fixo. Em 2007, a fatia da União ficou em apenas 47%, os outros 53% vieram dos Estados (26%) e dos municípios (27%). Em 1980, a União financiava 75% da saúde, os Estados 18% e os municípios 7%. "A União desonerou-se da responsabilidade com saúde e descentralizou-a a Estados e municípios sem o correspondente financiamento", diz Carvalho.
Atualmente, o governo federal aplica R$ 48 bilhões por ano no setor, o que corresponde a cerca de 7% de sua receita. O projeto em discussão obriga a União a repassar 10% de suas receitas brutas para o setor, partindo da posição atual e subindo de forma escalonada, até 2011. Aprovada, a proposta aumentará em R$ 23 bilhões a verba para a saúde.
Isso quer dizer que o governo federal está devendo - e muito. Quando o piso mínimo de 10% do orçamento for aprovado, a parte da União ainda ficará longe de sua contribuição de um quarto de século atrás. Mesmo assim, haveria 1% a mais do PIB para a saúde. "Vivemos num mundo globalizado. Somos tentados a consumir do bom e do melhor disponível no mundo. Com a saúde não é diferente", diz Bosi Ferraz. Todos querem medicamentos para novas doenças, diagnósticos, prevenção. O Brasil vive essa tentação de consumo de hoje com um porcentual de gasto em saúde que os países desenvolvidos gastavam duas, três ou até quatro décadas atrás. Essa conta nunca vai fechar, quaisquer que sejam os recursos aplicados, se a sociedade mantiver a ilusão de que planejamento e continuidade são passatempos de quem não tem nada para fazer de útil no setor público ou no privado.
Texto: Revista Época
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