domingo, 30 de dezembro de 2007

Cuidado com os discursos fáceis.....!!!!!!!!


Saúde e segurança mantidas sem cortes

Jornal do Brasil, 27/12/2007

Karla Correia
Com um rombo de R$ 40 bilhões para equacionar no Orçamento de 2008, o governo começou ontem a definir a estratégia de redução das despesas da União para o próximo ano, de forma a compensar o impacto provocado pelo fim da CPMF na arrecadação. Em reunião da coordenação política, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva disse a ministros que os programas sociais, a saúde e a segurança pública deverão ficar de fora do corte nas despesas. Segundo relato do ministro de Relações Institucionais, José Múcio Monteiro, as emendas parlamentares estão na mira da tesoura do governo.
- A saúde já sofreu sua perda, uma vez que a regulamentação da Emenda 29 ficou sem sua principal fonte de recursos, que era a CPMF - disse José Múcio, depois da reunião com o presidente Lula. De acordo com o ministro, até fevereiro, quando o Congresso volta de seu recesso, o governo deverá ter estipulado o desenho dos cortes para cada área da administração.
- Todas as áreas vão dar sua contribuição, inclusive o Congresso. Estamos fazendo um esforço muito grande pela liberação de emendas parlamentares relativas ao Orçamento deste ano, mas há uma distância entre o sonho e o possível.
Enquanto decide na ponta do lápis o que cortar e o que preservar no Orçamento de 2008, o governo pretende enviar ao Congresso, no fim de janeiro, sua proposta de reforma tributária. De acordo com José Múcio, a idéia é apresentar o texto já no início do ano legislativo para ganhar tempo, uma vez que, com as eleições municipais, o Parlamento tende a ser esvaziado a partir do segundo semestre.
Também em janeiro o presidente Lula pretende resolver suas pendências com partidos aliados, sobretudo o PMDB. Entram nessa negociação o comando do ministério de Minas e Energia, vaga destinada ao senador Edison Lobão (PMDB-MA), e cargos no segundo escalão do governo, principalmente em estatais do setor elétrico.
- Nossa idéia é que logo na primeira semana de janeiro todas essas questões estejam resolvidas - afirmou o ministro, que evitou, contudo, confirmar a indicação de Lobão para a pasta.
Pronunciamento
Às vésperas de um ano eleitoral, o governo vai aproveitar o período de festas para vender os números positivos da economia para a população. O presidente Lula fará hoje um pronunciamento em cadeia de rádio e TV descrevendo, em tom otimista, os avanços da economia brasileira em 2007. O crescimento econômico, a geração de empregos com carteira assinada e a ascensão de 20 milhões de brasileiros das classes D e E para a classe C serão os principais assuntos da fala de Lula.
O rascunho do discurso foi apresentado ontem ao presidente na reunião de coordenação política. - Vai ser um presente de Natal para os brasileiros, as notícias serão alvissareiras, não obstante algumas derrotas e problemas - disse o ministro José Múcio. As tesouradas no Orçamento e o possível aumento na alíquota de impostos serão mantidos à distância do discurso presidencial à nação.
- Época de Natal não é época de se falar de impostos.

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Isenção para trabalhador do SUS

Jornal de Brasília, 28/12/2007

Com objetivo de melhorar a qualidade da prestação de serviços ao Sistema Único de Saúde (SUS), o senador Alvaro Dias (PSDB-PR) apresentou projeto de lei para isentar do pagamento do Imposto de Renda Pessoa Física os honorários recebidos por profissionais de saúde pela remuneração de seus serviços, quando prestados ao SUS.
Em sua justificativa, Alvaro Dias argumenta que, diante da notória dificuldade do SUS de remunerar adequadamente os profissionais de saúde, a isenção do pagamento de Imposto de Renda funcionará como estímulo aos prestadores de serviços para que ofereçam serviços de melhor qualidade à população.
"A tabela do SUS exibe valores aviltantes, como a remuneração de R$ 7,00 por consulta médica especializada e de R$ 117,30 para toda a equipe médica envolvida numa cirurgia cesariana. Além de ser fator de desestímulo, esses baixos níveis de remuneração representam um convite à fraude", afirmou à Agência Senado. Ele admite que a solução ideal seria aquela que envolvesse a atualização realista da tabela, oferecendo aos profissionais de saúde remuneração mais adequada.

Morte por verminose em pleno Século XXI.


No último dia 26 de dezembro, uma criança de apenas 1 ano e 6 meses foi a óbito vítima da desigualdade reinante neste país. A criança moradora de um município próximo de Joinville deu entrada no Hospital Infantil Dr. Jeser Amarante Faria ( Joinville ) apresentando complicações de uma doença que é muito comum entre a população infantil de baixa renda nesse país.........a nossa já velha conhecida de todos, a VERMINOSE (popularmente conhecida como lombriga ). De tão comum parece que em algumas situações ela perdeu a importância na hora do diagnóstico e do tratamento. Tratamento este não só a base de medicamentos, mas também de saneamento básico e principalmente de no mínimo um pouco mais de igualdade social.
A complicação que vitimou essa criança foi a tão temida obstrução intestinal.
Sou profissional de saúde, e tenho como lema que: Criança não nasceu para morrer........e muito menos morrer por uma complicação de uma doença relativamente banal e facílima de tratamento prévio com medicamento disponível na rede básica da maioria dos municípios.
Após o falecimento dessa criança no mínimo ficaram os seguintes questionamentos:
- Quantas crianças ainda precisam morrer de complicações por verminose para que todos tomemos os cuidados necessários? Nesse TODOS incluo gestores e profissionais de saúde, e com certeza os pais.
- Será que este fato não deveria servir para que a rede de atenção básica de saúde dos nossos municípios reavalie suas estratégias de trabalho, em especial aqueles serviços onde o Programa Saúde da Família já se encontra em funcionamento, como foi o caso dessa criança?
- E o investimento em Saneamento Básico, como anda? Precisamos investir em obras que ficam debaixo da terra, longe dos olhos dos eleitores, para evitar que em vez dos tubos, sejamos obrigados a enterrar nossas crianças......!
- E os pais, que de forma irresponsáveis, colocam no mundo 1,2,3,4,5 filhos sem avaliar as condições mínimas de vida que já vivem..ou melhor, sobrevivem?
Infelizmente, parece que esta criança é mais uma vítima dessa sociedade desumana em que vivemos, e sinto muito dizer, mas está cada vez pior....desculpem o meu pessimismo e o desabafo!!

Contra iniqüidades, ações intersetoriais.


Bruno Camarinha Dominguez - Radis 64 • dez/2007

A intersetorialidade é a chave para o enfrentamento das ini­qüidades. Esta foi a conclusão de pesquisadores estrangeiros e brasileiros no encerramento do Sim­pósio sobre Determinantes Sociais da Saúde, no Rio de Janeiro — realizado entre os dias 26 e 28 de setembro no Hotel Pestana Atlântica. O encontro era parte do processo de preparação do relatório final da Comissão sobre Determinantes Sociais da Saúde (CDSS) da Organização Mundial da Saúde (OMS), a ser lançado em março.
Cerca de 70 representantes das três instituições organizadoras — OMS, Centro Internacional de Pesquisa para o Desenvolvimento e Fiocruz — e ou­tros especialistas analisaram dados sobre os determinantes sociais da saúde e debateram recomendações de políticas públicas para a diminuição das iniqüidades, que podem ser incor­poradas ao relatório da CDSS.
Os dados foram coletados e orga­nizados por redes de conhecimento a partir de pesquisas já existentes sobre nove tópicos relacionados aos DSS:
exclusão social, gênero, ambientes urbanos, globalização, condições de trabalho, sistemas de saúde, condições de saúde pública, desenvolvimento infantil e medição de iniqüidades. No simpósio, os responsáveis pelo amplo estudo apresentaram relatórios com evidências da influência dessas ques­tões na saúde da população mundial.
Na abertura, o presidente da CDSS, o epidemiologista inglês Michael Marmot, destacou a importância da produção de conhecimento. Contou que, ao anunciar sua intenção de criar uma comissão so­bre determinantes sociais, deparou-se com dois tipos de reação: uns diziam já saber do assunto, outros afirmavam que não havia evidências. “Agora nós temos evidências, sem as quais não poderíamos embasar nossas recomendações”, ob­servou. O presidente da Fiocruz, Paulo Buss, coordenador da Comissão Nacional sobre Determinantes Sociais da Saúde (CNDSS), concordou: “Do ponto de vista da saúde e da ciência, é um tesouro ter esse material reunido”.
Para os analistas do tópico “medição e evidências”, mostrar a iniqüidade em saúde como social­mente determinada é um dos maiores desafios às políticas públicas, no sentido de que seja descrita com exatidão a relação entre os fatores sociais e a biologia humana. Segundo os especialistas, isso permitiria que as ações públicas tivessem um foco preciso, que hoje inexiste. “Entre­tanto”, ressalva o relatório, “o fato de que ainda não é possível descrever a cadeia causal das iniqüidades com precisão não pode e não deve ser uma desculpa para a falta de ação”.
No dia 26, houve nove sessões simultâneas para debate de itens específicos. Na sessão em que foram apresentadas informações sobre os ambientes urbanos, constatou-se que o processo de urbanização das cidades nem sempre tem como conseqüência a melhoria das condições de vida. Mais da metade da população mundial vive em áreas urbanas, sendo que um bilhão de pessoas mora em favelas e assentamen­tos informais. “E esse número tende a dobrar nas próximas décadas se não forem desenvolvidas e implementadas políticas que visem à equidade”, previu o pesquisador Tord Kjellstrom, da Uni­versidade Nacional Australiana.
“As falhas de governança resul­taram nos problemas atuais”, avaliou Tord. Os pesquisadores que estudaram o assunto apontam para a necessidade de desenvolvimento sustentado das cidades, com intervenções que levem em conta os determinantes sociais, ar­ticuladas pela saúde, por outros setores governamentais e pela sociedade civil. Em duas palavras, ações intersetoriais.
A falta de moradia, água e esgo­tamento sanitário de qualidade, entre outras questões, impacta fortemente a expectativa de vida nessas áreas pobres. Em Nairóbi, capital do Quênia, a mortalidade infantil na região mais pobre é três vezes superior à média da cidade e 10 vezes maior do que na região mais rica, por exemplo. Os dados divulgados indicam que, em geral, as principais ameaças à saúde nas cidades são a violência, o abuso de drogas, a má nutrição, a obesidade, os acidentes de trânsito e a aids.
O relatório sobre o tema também afirma que a pobreza não é conseqü­ência da distância em relação a infra-estrutura e serviços, e sim da exclusão a ambos. “Segurança, educação, transporte, moradia, saúde e salário de qualidade ainda são monopólio de uma minoria privilegiada”, diz o tex­to. O tema voltou a ser discutido na sessão sobre exclusão social. O rela­tório cita que a população da Noruega é 40 vezes mais saudável do que a da Nigéria. E segue com outros dados alarmantes: em 1999, 100 milhões de pessoas na América Latina não tinham acesso a sistemas de saúde.
CRESCIMENTOX EMPREGO
O relatório sobre globalização mostra que a expansão do mercado global não favoreceu a diminuição da pobreza — por conta da má distribuição de renda. Calcula-se que, entre 1990 e 2001, de cada US$ 100 de crescimento mundial, só US$ 0,60 contribuíram para a redução do número de pessoas que vivem com menos de US$ 1 por dia, 73% menos que nos anos 80.
Do mesmo modo, na tarde do dia 26, pesquisadores envolvidos no estudo das condições de trabalho afirmaram que o crescimento da economia nos últimos cinco anos não se traduziu no aumento da oferta de empregos decentes. Em 2006, afirmaram, o número de desempregados bateu recorde histórico: 195 milhões. “Não houve emprego de qualidade sufi­ciente para melhorar a situação dos mais de 1 bilhão de trabalhadores pobres e suas famílias, que vivem abaixo da linha da pobreza (US$ 2)”, informa o documen­to distribuído no simpósio.
O desemprego afeta principalmen­te a região do Oriente Médio e do norte da África, que registrou taxa de 12,2% de desempregados no ano passado. Na América Latina, esse índice era de 8%. Mulheres, jovens e pessoas com poucos anos de estudo são os mais atingidos pela falta de oportunidade de trabalho.
Na sessão sobre o tema, o professor Joan Benach, da Universidade Pompeu Fabra, na cidade espanhola de Barcelo­na, divulgou outros dados relativos ao tema: em 2000, 27 milhões de pessoas eram escravizadas; em 2004, 25% da po­pulação economicamente ativa tinham emprego informal e 15,8% das crianças de 5 a 17 anos trabalhavam. Os progra­mas de transferência de renda do Brasil, segundo o relatório sobre condições de trabalho, são exemplos de mecanismos capazes de reduzir a incidência de ex­ploração de mão-de-obra infantil.
As más condições de trabalho se refletem no número de acidentes fatais (970 por dia e 350 mil por ano) e de mortes causadas por doenças relacionadas ao trabalho (5 mil por dia e 2 milhões por ano). Diretor de plane­jamento estratégico do Departamento de Saúde da África do Sul, Yogan Pillay creditou ao modelo de desenvolvimen­to vigente parte da culpa por esses pro­blemas. O próprio documento lembra que, nos últimos 30 anos, as grandes corporações aumentaram sua influência e a racionalidade neoliberal passou a dominar as políticas públicas.
“Nos países pobres, o efeito des­sas mudanças foi o estabelecimento de um novo padrão de crescimento eco­nômico, que inclui condições precárias de trabalho e cortes de investimento público”. Yogan questionou o papel da saúde na determinância desses mode­los: “Que tipo de Estado, sociedade e desenvolvimento nós queremos?”
MULTISETORIALIDADE
“É necessário um esforço para que essas informações cheguem de maneira útil aos gestores, à aca­demia, aos movimentos sociais, de modo a influenciar a agenda polí­tica”, disse Paulo Buss na plenária “Políticas sob o ponto de vista dos países”, na manhã do último dia do evento. Buss observou que as ações que visam à diminuição das iniqüida­des não dependem apenas do setor saúde. “A promoção da eqüidade necessita vitalmente de políticas pú­blicas inter e multisetoriais: formula­das, implementadas e executadas de forma no mínimo articulada”.
O presidente da Fiocruz disse acreditar que o ministro da Saúde, José Gomes Temporão, vem cami­nhando na direção da intersetoria­lidade. Lembrou que o ministro tem sido bem-sucedido ao mostrar que o setor é gerador de riquezas, o que interessa aos ministérios da Fazenda e do Planejamento, por exemplo. “E não é uma geração de riqueza qualquer, é uma geração de riqueza a serviço do social”, frisou.
O relatório final da CNDSS vai refletir a preocupação com políticas in­tersetoriais, adiantou o secretário-exe­cutivo da comissão, Alberto Pellegrini. “Analisamos cerca de 100 programas de diversos ministérios e percebemos que são iniciativas fragmentadas”, avaliou. “Nossa intenção é institucio­nalizar a intersetorialidade”.
A comissão brasileira, aliás, recebeu elogios de Michael Marmot. “O trabalho do Brasil é muito im­pressionante, pois conseguiu atingir a sociedade e seus líderes, apoiado pela comunidade da saúde pública”, disse. Marmot indicou avanços da discussão sobre determinantes sociais no Reino Unido, no Canadá, no Sri Lanka e no Chile — cuja subsecretária de Saúde Pública, Lydia Amarales, participou do simpósio. “Se não atuarmos nos determinantes sociais da saúde, não diminuiremos a desigualdade e segui­remos tendo diferenças na morbidade e na mortalidade de acordo com clas­ses sociais”, resumiu.

quinta-feira, 27 de dezembro de 2007

Manifesto em defesa de recursos definidos, definitivos e suficientes para a saúde.


I – FATOS
As contribuições sociais previstas no art. 195 da CF são destinados ao financiamento da seguridade social (saúde, previdência e assistência social), onerando trabalhadores (empregados ou autônomos), empregadores, sobre produção e trabalho: folha de pagamento, faturamento e lucro das empresas. Ainda que o arrecadador seja o empregador, todas as contribuições sempre oneram o consumidor de bens e serviços, que as paga embutidas nos preços finais.
A EC 20 vinculou as fontes dos incisos I, a e II do art. 195 a pagamento de benefícios previdenciários, restando para a saúde e assistência social apenas as fontes I, b e c e III (faturamento, lucro liquido e concurso de prognóstico). Estes recursos são comprovadamente insuficientes para a reestruturação da saúde, de acordo com todas as entidades de defesa do SUS.
II – PROPOSTA
• Que o governo federal garanta ao Ministério da Saúde o mínimo de 10% da receita corrente bruta ou um percentual crescente do orçamento da Seguridade Social até atingir os 30% previstos na CF de 1988;
• Excluir da incidência da DRU (de uso livre pelo governo) as fontes da Seguridade Social, o que vem ferindo a lógica das contribuições sociais criadas com a finalidade precípua do social;
• Redefinir a participação da Saúde, da Previdência e da Assistência Social nas atuais e futuras receitas da Seguridade Social ou suas expansões;
• Recriar a Contribuição Social sobre a Movimentação Financeira no elenco do art. 195 da CF com características específicas, que a diferenciariam da CPMF vigente até 2007. As características diferenciais e agregadoras de valores são: caráter definitivo (como as outras contribuições sociais da CF); total vinculação à saúde; desoneração total da DRU; alíquotas menores que as de 2007.
III – JUSTIFICATIVA
Faz-se necessária a criação de contribuição social que onere a "todos", já que saúde é para “todos”; que seja eqüitativa em seu caráter progressivo, onerando mais quem mais tem ou consome. A Contribuição sobre a Movimentação Financeira mostrou-se eficaz em atender a estes pressupostos, somando-se facilidade arrecadatória, baixo ônus individual e seu efeito coibidor da sonegação fiscal.
IV – ESTRATÉGIA
Garantir apoio a esta contribuição de todas as forças vivas da sociedade: Conselhos de Saúde, Nacional, Estaduais e Municipais; dirigentes públicos através do Conass e do Conasems; profissionais de saúde (associações, sindicatos e conselhos); prestadores privados de saúde (CNS, FBH, CMB, FMB) e cidadãos usuários de toda a sociedade civil organizada (aposentados, portadores de agravos; dirigentes de sociedades amigos de bairro ou de vila; representantes de denominações religiosas etc.).
Este manifesto será, oportunamente, encaminhado ao presidente da República solicitando que envie uma PEC sobre o assunto ao Congresso Nacional.
Lenir Santos

Gastão Wagner

Nelson Rodrigues dos Santos

Gilson Carvalho

O oportunismo aborteiro de Sérgio Cabral*


Elio Gaspari*
Quando o governador Sérgio Cabral usou o trabalho do eco­nomista Steven Levitt (Freako­nomics) para defender o aborto como política de segurança pública, dizendo que a favela da Rocinha "é uma fábrica de produzir marginal", juntou, num só "bonde", oportunismo, impostura e ignorância. Cabral é oportunista porque, em setembro de 1996, quando era can­didato a prefeito do Rio, descascou seu adversário, Luiz Paulo Conde, por defender o aborto. Nas suas palavras: "Conde foi leviano. O que o Rio precisa é melhorar o atendimento na saúde". Continua oportunista ao tentar rees­crever o que disse ao repórter Aluizio Freire, do portal G1, onde sua entre­vista está conservada na íntegra. Cabral praticou uma impostura quando embaralhou uma questão de direito — a decisão da Corte Suprema que, em 1973, legalizou o aborto nos Estados Unidos — com as estatísticas do crime nos anos 90. A Corte decidiu uma dúvida constitucional: o direito da mulher de interromper a gravidez. Esse é o verdadeiro e único debate do aborto. Nada a ver com o propósito de fechar (ou abrir) "fábrica de pro­duzir marginal". Levitt, por sua vez, indicou que o aborto foi responsável por até 50% da queda na criminalida­de americana. Em momento algum apresentou-o como alternativa de controle da natalidade. Pelo contrá­rio, qualificou-o como "um tipo de seguro rudimentar e drástico". Cabral submeteu-se a uma vasectomia e não terá mais filhos (teve cinco). Tanto Levitt como a Corte Su­prema não atravessaram a linha que o doutor transpôs, vendo no aborto uma modalidade de política pública capaz de produzir segurança. Uma coisa é dizer que houve uma relação de causa e efeito entre a liberação do aborto e a queda da criminalida­de. Bem outra é associar o aborto às políticas de segurança pública. A teoria de Cabral sustentou-se na ignorância. Ele disse que a Rocinha tem taxas de fertilidade africanas. Besteira, elas equivalem à metade. Em 2000, o número médio de filhos nas favelas cariocas (2,6) era superior ao dos outros bairros do Rio (1,7), mas ficava próximo da estatís­tica nacional (2,1). Quem acha que o problema da segurança está na barriga das faveladas, deve pensar em mudar de planeta. A taxa dos morros do Rio é a mesma do mundo. Nos anos 70, muitos sábios sus­tentavam que o Brasil precisava bai­xar sua taxa de fertilidade (5,8) para distribuir melhor a riqueza. Passou-se uma geração, a fertilidade caiu a um terço (1,9) e o índice de Gini, que mede as desigualdades de renda, passou de 0,56 para 0,57, chegando ao padrão paraguaio. Nasceram menos brasileiros, mas não se reduziu o fosso social. A tropa de elite pode acreditar que se aprimora a segurança pública com o capitão Nascimento cuidando dos morros e o governador Cabral dos ventres. As contas de Levitt são honestas, suas conclusões são rigoro­sas e Freakonomics é um ótimo livro. Aplicando-se a outros números de Pindorama o mesmo tipo de tortura cerebrina a que Cabral submeteu as conclusões do economista americano, seria possível dizer que a queda de 67% na taxa de fertilidade nacional provocou um aumento de 300% nos homicídios no Rio de Janeiro.
Serviço: o artigo "The Impact of Legalized Abortion on Crime", de Steven Levitt e John Donohue 3º, está na internet, infelizmente em inglês. É melhor do que o resumo publicado em "Freakonomics".
* Jornalista; coluna publicada na Folha de 28/10

segunda-feira, 24 de dezembro de 2007

Assistência hospitalar como indicador da desigualdade social*


INTRODUÇÃO
É conhecida de há muito tempo a relação entre nível de vida - ou condições de vida e de trabalho - e a saúde. Recentemente Paim6 (1995), em extensa revisão do assunto, levantou as principais propostas metodológicas para o estudo da desigualdade de origem social, desde a concepção ecológica da epidemiologia clássica (positivista), o enfoque geográfico-ecológico - caracterização do grau de desenvolvimento econômico e social de cada unidade de estudo _ até a construção de indicadores (Borrell1, 1995). A tautologia, assinalada por Samaja8 e ainda não resolvida, concebe a saúde como componente e ao mesmo tempo como resultado do nível de vida. Para os objetivos do presente trabalho consideramos que a saúde e o nível de vida são produtos da forma de organização da produção social e da inserção concreta do indivíduo no sistema produtivo e na sociedade. Destaca-se o estudo da desigualdade no adoecer e sua manifestação no interior dos sistemas de assistência à saúde num momento concreto. Na área da saúde, estudos epidemiológicos têm privilegiado a ocupação do indivíduo como o indicador principal do lugar que ele ocupa na sociedade; à ocupação encontram-se associados a renda, o nível de vida e as condições de saúde. A esses indicadores associa-se também o nível de acesso e consumo de serviços de saúde; no geral, igual aos outros setores sociais, tem-se que ao maior nível socioeconômico corresponde maior, e melhor, consumo de bens e serviços de saúde. Desta forma, na sociedade de classes onde as oportunidades e o consumo de bens e serviços seguem as linhas que demarcam os diferentes segmentos sociais, o padrão de consumo de assistência à saúde corresponde ao conceito de "medicina de classes" (Donnangelo e Pereira4, 1976). Problema associado a esta concepção reside em como caracterizar os usuários dos serviços de saúde, do ponto de vista da sua inserção econômica e social, visto que a maioria dos mesmos é composta por menores de idade, donas de casa, estudantes, aposentados e idosos (Yazlle Rocha12, 1975; Forster5, 1991), não fazendo parte, portanto, da população considerada economicamente ativa. Nos sistemas de assistência à saúde, essas pessoas são, geralmente, dependentes dos membros contribuintes do sistema de saúde, à exceção dos aposentados, que recebem assistência por direito adquirido. Todavia, sabe-se que, para aliviar as tensões geradas na desigualdade originária do modo de produção capitalista, criou-se o modelo de sociedade de bem-estar, onde o Estado se obriga a oferecer às populações desfavorecidas, por fora dos mecanismos de mercado, o acesso aos bens sociais: saúde, educação, habitação e outros. Isto representaria um mecanismo de mascaramento da desigualdade originária, produzida nas relações de produção, que se deslocaria para a "igualação" na esfera do consumo (Donnangelo e Pereira6, 1976).
Nos países centrais do sistema capitalista, os Estados de bem-estar criaram sistemas e mecanismos destinados a garantir os direitos sociais que viriam a ser considerados modelos para os países do terceiro mundo. A Inglaterra desenvolveu o Sistema Nacional de Saúde, que se tornaria o paradigma da saúde nos anos 60, mas encontra-se em fase de reorganização desde 1991. Lá, após os anos 70, já se tornara evidente que as políticas compensatórias não eram capazes de atenuar diferenças sociais. A publicação no início dos anos 80 do Black Report (Towsend e Davidson10, 1982) viria mostrar ao mundo que à desigualdade no adoecer e morrer se acrescentara a desigualdade na assistência médica (Whitehead11, 1992).
A interpretação e explicação das desigualdades sociais, como exposta anteriormente, fundamenta-se na concepção marxista da sociedade capitalista, de classes; embora largamente aceita esta concepção, não se conseguiu até hoje a operacionalização da categoria classes sociais que, além da posição do indivíduo na produção, deveria incluir as práticas jurídico-políticas e ideológicas. Entretanto, na área da saúde muitos dos problemas enfrentados situam-se em "bolsões" de desigualdades, caracterizando-se antes como problemas sociais do que médicos que urge equacionar.
Na Inglaterra há uma larga tradição em estudar grupos populacionais utilizando um modelo de estratificação baseado na ocupação dos indivíduos, que divide a população economicamente ativa em seis estratos: profissionais, intermediário, qualificados não manuais, qualificados manuais, semiqualificados e não qualificados (Towsend e Davidson10, 1982). Este modelo, que já se mostrou eficiente para estudos populacionais, perde utilidade quando se deseja estudar a fração da população atendida em serviços de saúde que, como se disse anteriormente, na sua maioria é constituída por pessoas fora da População Economicamente Ativa (PEA). Para contornar este problema, Forster5 estudou uma amostra das hospitalizações em Ribeirão Preto, através de uma entrevista com os pacientes internados e/ou parentes (Forster5, 1991), encontrando forte associação entre a ocupação do chefe de família e o sistema de assistência médico-hospitalar utilizado. Conhecer as desigualdades e problematizar sua existência, traduzidas em perfis diferenciais de morbi-mortalidade e padrões desiguais de assistência, é precondição para obter o encaminhamento da solução.
O objetivo do presente trabalho é testar um modelo para o estudo das desigualdades nas hospitalizações no Município de Ribeirão Preto (SP) entendidas como decorrentes da posição social das pessoas e das políticas de assistência médico-hospitalar no Brasil.

RESULTADOS
No ano de 1993 houve 97.946 internações nos hospitais de Ribeirão Preto, das quais 94.697 tiveram alta e 3.249 foram a óbito. Eram moradores em Ribeirão Preto os pacientes de 63.993 hospitalizações; dessas foram excluídas 7.700 hospitalizações de crianças recém-nascidas resultando nas 56.293 internações ocasionadas por 44.336 pacientes, que com 20% de reinternações, incluídas nesse total, são o objeto de estudo do presente trabalho. Isto representa um coeficiente de hospitalização de 125,2 por mil habitantes. Das 56.293 hospitalizações, 35,7% eram de pacientes trabalhadores com ocupação definida no processo produtivo (ou 20.083), e as restantes 36.210 (ou 64,3%) eram de seus dependentes (do lar, menores, estudantes, desempregados) e aposentados. Na
Tabela 2 é apresentada a distribuição de hospitalizações de pacientes com inserção na economia, segundo o nível da ocupação e a categoria de internação. Verifica-se que em 4,5% dos casos, utilizaram serviços particulares, em 38,4 % deles, os sistemas de seguro saúde privados e em 57,0% das hospitalizações utilizaram o sistema único de saúde (SUS). Com referência ao nível da ocupação, tem-se que as hospitalizações de pacientes dos níveis profissional, intermediário e qualificado não manual utilizaram serviços de saúde privados, particulares e de medicina de grupo, em 4.327 oportunidades (sombreado forte) ou 66,2% destes casos; as que se utilizaram do sistema público foram 2.213 (sombreado claro) ou 33,8%. As hospitalizações de pacientes dos níveis qualificado manual, semi qualificado e não qualificado ocorreram em 56 a 79,7% dos casos no sistema público de saúde (sombreado forte) variando de 20,3 a 44,2% do total dessas hospitalizações os casos em que ocorreram em sistemas privados (sombreado claro). O teste do chi quadrado aplicado à Tabela 2 apresentou forte associação entre o nível de ocupação dos pacientes e a categoria, ou modalidade de financiamento, da internação (X2 = 2.735; p=0,000001, 10 g. l.).
Na
Tabela 3 é apresentada a distribuição das hospitalizações de pacientes sem inserção econômica na produção, segundo a "ocupação" referida e a categoria da internação. Vê-se que a proporção das hospitalizações em serviços particulares foi igual a encontrada nas hospitalizações de pacientes com inserção na PEA; as hospitalizações na medicina de grupo ocorreram em proporção um pouco menor (31,6%) sendo que as hospitalizações no sistema público ocorreram em proporção um pouco maior (64,1%). Acredita-se que no geral as hospitalizações de pacientes fora da PEA se distribuem entre as diferentes categorias de internação de forma semelhante àquela observada entre os integrantes da PEA, dos quais eles são dependentes para assistência médico-hospitalar.
Em síntese, pode-se dizer que a assistência médico-hospitalar estudada encontra-se polarizada em dois subconjuntos sociais (sombreado forte), contíguos e parcialmente superpostos:
- o pólo dominante, constituído por hospitalizações de profissionais, técnicos e trabalhadores qualificados não manuais e seus dependentes que utilizam preponderantemente sistemas privados de assistência médica (4.327 hospitalizações da
Tabela 2, ou 21,5% do total)
- o pólo subalterno, constituído por hospitalizações de trabalhadores qualificados manuais, semiqualificados e não qualificados que utilizam preponderantemente o sistema público de assistência médica (9.242 hospitalizações na
Tabela 2, ou 46%)
- as áreas de justaposição (sombreado claro), representada por hospitalizações de profissionais, técnicos e trabalhadores qualificados não manuais que utilizam serviços públicos de saúde (área de justaposição descendente de 11% do total) e as hospitalizações de trabalhadores qualificados manuais, semiqualificados e não qualificados que utilizam serviços privados de saúde (justaposição ascendente de 21,4%) somando ambas 6.514 internações ou 32,4% do total (vide
Tabela 2).
Na
Tabela 4 consta alguns indicadores das hospitalizações segundo categoria da internação e a condição de saída dos pacientes (vivos ou mortos). A idade média em que ocorre a hospitalização é significativa pois reflete o resultado da exposição a riscos e o desgaste dos grupos sociais; a média de idade, para os pacientes que egressaram vivos, foi de 39,5 anos entre as hospitalizações particulares, 36,5 naquelas da medicina de grupo e 36,3 para os pacientes do SUS; a diferença fica mais clara se for utilizada a idade mediana (35, 34 e 32 anos, respectivamente). A diferença é mais acentuada nos pacientes que faleceram na hospitalização: a idade média variou de 66,9 anos, entre os particulares, a 56,1 anos entre os pacientes do sistema público (medianas de 70 e 60 anos respectivamente), ou seja, a morte ocorre dez anos antes, em média, entre os pacientes que utilizaram o sistema público. O coeficiente de mortalidade por mil hospitalizações é mais elevado entre os pacientes do SUS, (38,8 contra 27,7 entre os particulares e 16,6 para a medicina de grupo) embora esses sejam em média mais jovens do que os outros. Se for considerado o coeficiente de mortalidade por pacientes (excluindo as reinternações) as diferenças tornam-se ainda maiores: 50,3 óbitos por mil pacientes no SUS contra 32,3 entre os particulares e 20,6 na medicina de grupo. Não apenas as doenças que levam à hospitalização incidem mais precocemente entre usuários do SUS como levam estes à morte com maior freqüência, fato que a assistência médico hospitalar não conseguiu compensar. A mortalidade hospitalar foi menor entre os hospitalizados por sistemas de medicina de grupo, o que poderia ser explicado pelo fato que estes sistemas não cobrem algumas doenças crônicas e tendem a dificultar a assistência a casos graves, excluindo aquelas patologias não rentáveis, casos estes em que os pacientes são encaminhados para a assistência particular e o sistema público. Isto pode explicar as diferenças encontradas na duração média das internações, tanto entre os pacientes egressos vivos (3,1 dias para os particulares a 3,9 dias para o SUS) como para os casos de óbito (5,3 dias para os particulares, 6,7 para os casos da medicina de grupo e 7,7 dias para os pacientes SUS); essas diferenças na duração das hospitalizações sugerem que os casos são, certamente, mais graves e complexos entre os pacientes do sistema público. Estudou-se também a repetição das internações. Para conhecer plenamente este fato seria necessário que houvesse um único número de registro hospitalar para todos pacientes do município; o que temos é que cada hospital utiliza um número único para seus próprios pacientes. Assim pôde-se detectar as reinternações quando elas ocorrem no mesmo hospital, geralmente, por conta do mesmo sistema ou categoria da internação. Infelizmente não foi possível estudar as reinternações quando ocorrem por outro sistema ou categoria da internação que, geralmente se dá, em outro estabelecimento hospitalar; assim sendo, os presentes resultados subestimam, certamente, a realidade das reinternações. No entanto, apesar dessas limitações, pôde-se determinar que a proporção de pacientes com mais de uma internação no ano foi maior entre os usuários da medicina de grupo e do SUS do que entre os usuários da categoria particular (16,4 e 16,3 contra 11,1% respectivamente); igualmente, a média de internações nos pacientes com reinternações foi maior entre os pacientes do SUS do que entre os usuários dos sistemas privados (2,81 - 2,45 - e 2,48 para hospitalizações do SUS, da medicina de grupo e particulares).
Tabela 4 - Indicadores das hospitalizações segundo categoria da internação: condição de saída, idade média e mediana, duração média da internação e % de reinternações - Ribeirão Preto, 1993. Table 4 - Indicators of hospitalisations by inpatient category: condition on discharge, average and medianages, average length of stay and re-internment percentage - Ribeirão Preto, 1993.

* Excluídas as internações psiquiátricas ** Coeficiente mortalidade por mil pacientes, excluídas as reinternações PEA - População Economicamente Ativa SUS - Sistema Único de Saúde

Na
Tabela 5 são apresentadas as causas da internação segundo grupos da Classificação Internacional de Doenças (CID) e a categoria da internação. Os perfis de morbidade hospitalar são diferentes para os dois pólos acima citados: assim, ao nível de análise dos grandes grupos da CID, entre as hospitalizações do SUS, são proporcionalmente mais freqüentes as doenças infecciosas e parasitárias, do sangue e dos órgãos hematopoiéticos, mentais, as anomalias congênitas e as lesões, envenenamentos e violências. Entre os pacientes particulares são proporcionalmente mais freqüentes as neoplasias, doenças do sistema nervoso central, do aparelho geniturinário, sistema osteomuscular, doenças perinatais e da pele e do tecido subcutâneo; entre os pacientes da medicina de grupo são mais freqüentes as hospitalizações por doenças do aparelho geniturinário, sistema osteomuscular e afeções perinatais. São proporcionalmente menos freqüentes do que o esperado entre pacientes SUS as doenças do aparelho geniturinário, do sistema osteomuscular e as afeções perinatais.
Tabela 5 - Distribuição das causas de internação segundo Capítulos da CID e categoria de internação - Ribeirão Preto, 1993. Table 5 - Distribution of the definitive causes of hospitalisation by CID chapters and inpatient category - Ribeirão Preto, 1993.
Capítulo CID
DISCUSSÃO
No Brasil há poucos estudos sobre assistência médico-hospitalar, e quando eles são realizados quase sempre estão referidos a estabelecimentos e/ou sistemas de assistência, particulares, seguros privados ou públicos o que dificulta análises gerais da assistência que possam esclarecer e orientar as decisões políticas nessa área. É desejável criar ou desenvolver bancos de dados em bases populacionais, incluindo variáveis, como a ocupação, que possam fundamentar estudos com alcance interpretativo dos fenômenos em estudo; curiosamente, o sistema de resgistro de hospitalizações da previdência social (AIH) não inclui a ocupação do paciente, mas o atestado de óbito a inclui: a ocupação passa a ser relevante somente após a morte do indivíduo?
Em estudos anteriores (Yazlle Rocha12, 1975) mostra que crianças, mulheres e idosos (acima da quinta década da vida) têm coeficientes de hospitalização mais elevados que o restante da população, sendo as causas destas internações as doenças da infância, problemas ligados à gravidez, parto e puerpério e as doenças crônicas e degenerativas, principalmente as cardíacas e vasculares cerebrais. Todavia, quando são feitos estudos em bases populacionais, trata-se a população como um todo homogêneo, abstrato, desconhecendo que há grandes diferenças entre classes (ou estratos) e que a explicação e a dinâmica da morbi-mortalidade passa pela existência e reprodução dessas desigualdades. O modelo de análise utilizado no presente estudo, centrado na inserção econômica do indivíduo na sociedade, dentro de uma perspectiva marxista, permitiu discernir a forte associação existente entre nível ocupacional e categoria da hospitalização; assim, a categoria da hospitalização, e o tipo de assistência a que se tem acesso, é atributo da situação social do paciente ou do responsável por ele, no caso dos dependentes. Pode-se então estudar os sistemas de assistência hospitalar como estimadores da posição social dos pacientes. Quando isto não se faz, e se integram estes dois subgrupos (ativos e inativos) para compor o conjunto dos hospitalizados provenientes de uma população conhecida, atribui-se as desigualdades encontradas às diferenças de idade e sexo, e não à sua base real: o pertencimento social de classes.
Entretanto, outra questão a considerar é que não há uma relação bi-unívoca entre pertencimento de classe e cobertura por sistemas sociais de assistência à saúde; isto leva à existência de áreas de justaposição, como as apresentadas na
Tabela 2, que são expressão das políticas de saúde expandindo ou não a cobertura pelos diferentes sistemas. Na última década, o fenômeno mais presente, na região, tem sido a expansão da cobertura dos sistemas privados de assistência médico-hospitalar, por conta de convênios e contratos entre empresas e hospitais ou empresas médicas. De outro lado, diante de problemas crônicos e/ou graves, deficitários para a medicina de grupo, a tendência será ao encaminhamento ou fuga para os sistemas privado ou público, dependendo da posição do paciente. Acredita-se que é possível discriminar, nesse grande conjunto, que se denomina medicina de grupo, a existência de modalidades de assistência hospitalar intermediárias, que poderão desfazer em parte as justaposições assinaladas, ilustrando melhor os diversos gradientes assistenciais da nossa medicina de classes.
Muito embora limitados a 3 categorias de internação, com justaposições, os indicadores selecionados para caracterizar a assistência (duração, idade média, mortalidade, reinternação, etc.) confirmam a grande desigualdade existente entre as hospitalizações por sistemas privados e pelo sistema público. Ou seja, à desigualdade diante dos riscos de agravos à saúde vem se acrescentar a decorrente das diferenças no sistema de financiamento da assistência médico-hospitalar e suas conhecidas conseqüências: repressão de demanda e restrições de procedimentos que acabam determinando os resultados desiguais acima assinalados.
A análise da morbidade hospitalar, ao nível dos 17 grandes capítulos da CID, é problemática porque dentro de um capítulo pode-se ter subgrupos com maior freqüência ora para um pólo de pacientes, ora para o outro, com o qual, ao totalizar os dados, as diferenças existentes se anulariam nos resultados. O melhor, no futuro, será promover a análise por subgrupos ou categorias diagnósticas associando-os às ocupações e/ou sistemas de assistência hospitalar.
O modelo de estudo aqui aplicado mostrou-se factível e eficiente para o propósito desejado; separando os pacientes das hospitalizações em participantes ou não da PEA e, estratificando os primeiros em 6 níveis ocupacionais, foi possível mostrar a forte associação existente entre a posição social do paciente e o sistema de assistência médico-hospitalar utilizado. Desta forma é possível utilizar o sistema de financiamento das hospitalizações como indicador da posição social dos pacientes, para o estudo das desigualdades sociais. Mostrou-se a polarização da assistência hospitalar entre os sistemas particular e público de saúde, com utilização predominante, respectivamente, por profissionais e trabalhadores manuais, polarização que caracteriza a medicina de classes no Brasil. Foram constatadas, também, importantes diferenças quanto à idade média dos pacientes quando ocorre a internação e, sobretudo, na idade ao morrer (quando isto ocorreu), acometendo aos pacientes SUS com uma década de antecedência em comparação com os pacientes particulares. A duração média das hospitalizações foi maior entre os pacientes SUS, bem como a freqüência de reinternações. O perfil de morbidade hospitalar é diferenciado para as categorias de internação: entre as hospitalizações do SUS foram proporcionalmente mais freqüentes as doenças infecciosas e parasitárias, do sangue e órgãos hematopoiéticos, as mentais e anomalias congênitas e as lesões, envenenamentos e violências. Entre os pacientes de serviços privados foram proporcionalmente mais freqüentes as neoplasias, as doenças do sistema nervoso central, do aparelho geniturinário, do sistema osteomuscular, as perinatais e do tecido subcutâneo. O modelo de estudo proposto foi muito eficiente para o estudo das desigualdades entre os sistemas de assistência hospitalar.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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* Apresentado no VII Congresso Anual da Associação Latina para Análise de Sistemas de Saúde, Genebra, Suíça, junho, 1996. ** Aluno do Programa de Doutorado em Medicina Preventiva da FMRP-USP. Correspondência para/Correspondence to: Juan Stuardo Yazlle Rocha - Av. Bandeirantes, 3900 - V. Monte Alegre - 14049-900 Ribeirão Preto - SP - Brasil E-mail: jsyrocha@fmrp.usp.br Edição subvencionada pela FAPESP. Processo 97/09815-2. Recebido em 3.9.1996. Reapresentado em 8.4.1997. Aprovado em 21.5.1997.

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Desigualdade educacional no Brasil é ainda maior que a renda...


da Folha Online
Reportagem da
Folha desta segunda-feira mostra que o abismo entre pobres e ricos no país em termos de educação é ainda maior do que o verificado na desigualdade de renda, área em que o país ainda figura como uma das nações mais desiguais.
De acordo com a Folha, o diagnóstico foi apontado por um estudo do pesquisador José Francisco Soares, coordenador do Grupo de Avaliação e Medidas Educacionais da Universidade Federal de Minas Gerais, publicado no jornal científico "International Journal of Educational Research" (Jornal Internacional de Pesquisa Educacional).
O estudo estimou a desigualdade na educação brasileira usando a mesma fórmula aplicada pelos economistas para avaliar o grau de desigualdade na renda de um país. Esse índice varia de zero a um, sendo um o máximo de desigualdade, segundo a reportagem.
Soares usou essa escala e calculou a desigualdade de aprendizado de alunos brasileiros a partir das notas dos estudantes de oitava série nas provas de matemática do Saeb (exame federal de avaliação de aprendizagem) em 2003 (exame do MEC que avalia a qualidade da educação) e chegou ao índice de 0,635.

domingo, 23 de dezembro de 2007

A criminalização da miséria.

por Luiz Antonio Guimarães Marrey

Maria de Tal teve que abandonar o barraco no qual vivia com seus pais, situado na encosta de um morro, quando ficou grávida. Foi então morar com seu companheiro João numa área de mangue, onde construíram outro barraco.
Para tanto, cortaram algumas árvores que lá estavam e com a construção impediram a regeneração da natureza, sendo que o mangue é área de preservação ambiental permanente.
Além disso, o esgoto da casa de Maria e João passou a ser jogado diretamente no rio ali existente, assim como faziam as outras dezenas de moradias situadas no mesmo lugar.
Enquanto João permanecia desempregado, Maria foi trabalhar, após se recuperar do parto, como garçonete num boteco situado nas imediações, ganhando cento e cinqüenta reais por mês, enquanto seu companheiro, de vez em quando, arrumava um “bico”.
Tendo havido uma fiscalização ambiental, Maria acabou processada criminalmente por infringir os artigos 48 (impedir a regeneração de vegetação), 50 (destruir vegetação protetora dos mangues) e 54 (causar poluição de qualquer natureza) da Lei nº 9605/98, que definiu os crimes ambientais.
A sociedade brasileira, na sua gritante desigualdade, deixa de oferecer perspectivas minimamente decentes e organizadas para milhares de marias e depois, quando tais pessoas, movidas pela necessidade de sobrevivência, procuram locais precários e indevidos para morar, correm o risco de serem vistas como “criminosas”.
A desordem urbana e a falta de políticas de moradia, suficientemente amplas e acessíveis, empurram muitos milhares de pessoas para a “criminalidade” dos loteamentos clandestinos e dos delitos ambientais, ao longo das represas e outros cursos d água, de tal forma que, se todos fossem punidos criminalmente, não haveria presídio que bastasse.
Enquanto não se consegue senão arranhar a impunidade dos maiores criminosos deste país, que praticam falências fraudulentas ou desviam dinheiro público mas continuam a freqüentar as colunas sociais, a falta de sensibilidade faz passar pelo constrangimento e ameaça de punição uma parcela do povo já excluída de qualquer benefício.
Essas pessoas lutam desesperadamente para sobreviver, mas também estão mais sujeitas a sofrer violência por parte de criminosos comuns e por alguns agentes públicos para os quais as garantias constitucionais são esquecidas quando se trata da população pobre.
A desigualdade da sociedade se reproduz na distribuição de justiça, que apesar de ter milhares de profissionais corretos, acaba tendo como resultado final, muitas vezes, uma justiça de classe.
É preciso lembrar que o direito à vida é o mais fundamental de todos e se sobrepõe aos outros direitos.
Apesar de isso ser o óbvio, é necessário relembrar tal conceito de tempos em tempos, sob pena da crescente criminalização de todos os movimentos sociais que direta ou indiretamente lutam pelo direito à vida.
A proteção ao meio ambiente é vital para a garantia da espécie humana e também da fauna e da flora.
A criação de uma opção digna de moradia, certamente, levaria Maria e sua família a sair do mangue possibilitando sua regeneração e preservação.
No entanto, a preservação ambiental não pode ser feita à custa da criminalização dos miseráveis, mas sim daqueles que desviam dinheiro público e empurram as pessoas para o exercício da sua “liberdade” de morar debaixo das pontes ou em áreas proibidas.
A propósito do caso acima referido, o juiz poderia absolver Maria reconhecendo que a mesma agiu em estado de necessidade, mas preferiu absolvê-la por outros motivos técnico-jurídicos.
O principal é que ficou claro que Maria não é “criminosa” mas sim uma grande vítima de um sistema que exclui e depois pune que os que teimam em sobreviver.

O ECA e o rebaixamento da maioridade penal.



por Martha de Toledo Machado

Além de afrontar cláusula pétrea da Constituição, o rebaixamento da maioridade penal é injusto e irracional. Injusto porque desrespeita as características da personalidade juvenil, que leva o adolescente a ter capacidade diversa da do adulto frente à prática de crime. Injusto porque, ao invés de apostar e investir na grande capacidade de autotransformação dos jovens, buscando estimulá-los a um comportamento mais solidário, condena-os à impossibilidade de modificação de seu destino. Irracional, porque o percentual estatístico dos crimes graves praticados por menores de 18 anos é de baixa relevância no universo dos crimes (em São Paulo e no país), como porque a completa falência da pena criminal na ressocialização dos adultos é uma constante mundial. Evidente que o sistema penal de justiça não pode ser abolido; ainda é meio de controle imprescindível à contenção da violência em níveis necessários ao convívio social. Mas também evidente é que o combate mais efetivo à criminalidade se faz principalmente atacando as causas estruturais da violência. Aqui, ou em qualquer país do mundo.
O ECA, concretizando em boa medida as garantias penais e processuais penais do adolescente autor de crime, introduzidas pela CF de 1988, representou radical e democrática ruptura com o sistema anterior, que se pautava pela mais sombria perspectiva de segurança social máxima, da criminologia positivista mais autoritária. É preciso defender essas conquistas democráticas. É preciso aprofundá-las. No campo processual, para que o contraditório, a ampla defesa e as novas garantias introduzidas pela lei sejam efetivamente asseguradas. No plano material, para que sejam realmente asseguradas as garantias constitucionais da excepcionalidade e da brevidade da privação de liberdade (que, na essência, são garantias de excepcionalidade da própria intervenção Estatal).
Há de se aprimorar a lei para dar completa incidência à reserva legal e à culpabilidade/individualização da sanção, diminuindo o espaço de discricionariedade judicial, na fixação qualitativa e quantitativa da sanção. Há de definir em lei as grandes balizas tocantes ao conteúdo da sanção, com a faceta pedagógica da medida, que a distingue da pena criminal por imposição da Constituição, limitando o poder do Estado, sem engessar a criatividade do educador. Se em privação de liberdade não há medidas sócio-educativas de boa qualidade – com a dignidade humana sendo violada no seu âmago, pelo rotineiro desrespeito às balizas que a lei já fixou –, é preciso ver que a insuficiência legislativa no tocante aos caminhos pedagógicos a serem percorridos pelo administrador e pela sociedade concorre para essa situação.
Necessário definir com mais rigidez os nortes de individualização da sanção, para assegurar o efetivo respeito à garantia da culpabilidade na aplicação da lei. Atualizar e enrijecer os parâmetros de cominação abstrata quanto às infrações de pequeno e médio potencial ofensivo (mais de 80% dos casos), para garantir tratamento mais benéfico aos jovens do que aquele reservado aos adultos, pelos sucessivos abrandamentos da Lei Penal após a vigência do ECA. Quiçá seja tempo de modificação, também, para agravar o tratamento aos crimes de altíssimo potencial ofensivo, permeados com a reincidência; mas só haverá Justiça, se vier casado ao aprofundamento das garantias do adolescente cidadão.

Dos emissários da divindade à indústria da loucura*


Juçara Azevedo de Carvalho*
Não é de hoje que o ser humano, dito “louco”, é alvo de grande interesse por parte dos estudiosos - não só na área da saúde - sendo inúmeras as pesquisas, interpretações e conclusões a respeito daqueles que adentram as portas do desconhecido, desafiando a ciência e conduzindo a sociedade a uma profunda reflexão sobre o mistério de ser humano. De fato, o tema é tão relevante e abrangente que o presente ensaio representa um modesto apontamento de alguns aspectos que englobam a delicada questão do cidadão que sofre de distúrbios psíquicos. Ressaltamos que para analisar um tema de tal dimensão faz-se necessária a edição de uma série de artigos a fim de poder destacar seus pontos fundamentais e trazer cada vez mais esclarecimentos à sociedade sobre a realidade do tratamento dispensado ao doente mental em nosso país.

A “loucura” na visão da sociedade
No mar, tanta tormenta e tanto dano,tantas vezes a morte apercebida;Na Terra tanta guerra, tanto engano,tanta necessidade aborrecida!Onde pode acolher-se um fraco humano?Onde terá segura a curta vida,Que não se arme e se indigne o céu serenoContra um bicho-da-terra tão pequeno?
Luís de Camões, Os Lusíadas
Nos primórdios da civilização, as sociedades consideravam os indivíduos com transtornos mentais como “emissários da divindade”. Platão, há quase dois mil e quinhentos anos, afirmara acreditar em uma espécie de “loucura divina” como base fundamental de toda criatividade. Desde a antiga Mesopotâmia e do Egito antigo, entre os hebreus e os persas, a “loucura” era concebida como condição de proximidade com o sublime. Na Idade Média a existência da doença mental passa a ser atribuída a espíritos maus, que se apossavam das pessoas ou as atormentavam e, por isso, tinham que ser exorcizadas ou isoladas do convívio com a sociedade. Nessa época a loucura ainda não era vinculada a uma questão científica ou médica. Posteriormente, surgiu a necessidade de um controle social nos grandes centros urbanos que começavam a surgir, e os asilos nasceram a partir daí. As grandes instituições faziam o recolhimento de pessoas desvalidas que, em um primeiro momento, não tinham exatamente problemas mentais: os mendigos, leprosos, tuberculosos, fisicamente inválidos, ou seja, pessoas extremamente pobres e que ameaçavam, segundo as classes dominantes, o equilíbrio social. Tais asilos funcionavam como uma espécie de depósitos do que se considerava “lixo humano”.O médico Philippe Pinel, na França do final do século XVIII, logo após a Revolução, passou a discriminar os casos sociais das anomalias mentais e criou o Tratamento Moral, primeiro método terapêutico para a loucura na modernidade, baseado em confinamentos, sangrias e purgativos, consagrando assim o hospital psiquiátrico (hospício, ou manicômio) como o destino social dos loucos. Desde então, há a busca de uma causa biológica para a loucura a fim de tornar convincente sua inserção no campo das Ciências Naturais, na Medicina.Em 1934, o Decreto-Lei nº 24.559, dispensou o tratamento ao doente mental como caso de polícia e de ordem pública, permitindo a internação por meio de mera requisição da autoridade policial. Em 1940, com o Código Penal e o Código de Processo Penal, estabelece-se o conceito de periculosidade e recomenda-se o recolhimento do doente mental ao manicômio. Ressalte-se que não há ênfase na recuperação e no tratamento dos indivíduos, o Estado só os segrega. O modelo assistencial psiquiátrico caracteriza-se então pelo desrespeito aos Direitos Humanos, tornando-se ícone, emblema da exclusão e seqüestro da cidadania, os hospitais psiquiátricos.Na década de 50, a Organização Mundial da Saúde (OMS) recomendou o “investimento em ações de saúde mental” incorporando assim a assistência psiquiátrica à Saúde Pública e constituindo a Psiquiatria Comunitária.Com relação à visão tanto social quanto científica da loucura cumpre ressaltar que durante o século XX inúmeros estudos começaram a investigar uma loucura “diferente”: a do gênio. A cada dia aumentam as evidências científicas de que poder criativo e doença mental andam de fato muito próximos. Uma breve visita aos livros de história nos mostra como é tênue a linha que separa a loucura da genialidade. “Muitas pessoas já me caracterizaram como louco”, escreveu certa vez Edgar Allan Poe (1809-1849). “Resta saber se a loucura não representa, talvez, a forma mais elevada de inteligência.” Uma lista significativa de homens célebres parece confirmar este ponto de vista defendido desde Platão. Vincent van Gogh, Paul Gauguin, Lord Byron, Liev Tolstói, Serguei Rachmaninov, Piotr Ilitch Tchaikówski, Robert Schumann, Friedrich Nietzsche, Hölderling, Kleist, Eduard Munch, Pablo Picasso, são alguns desses exemplos. O impressionante poder criativo de todos eles caminhava lado a lado com uma instabilidade psíquica claramente dotada de traços patológicos. Variações extremas de humor, manias, fixações, dependência de álcool ou drogas atormentaram a vida de muitas mentes brilhantes. Esta seria a “loucura do gênio”. Mas, falemos de uma outra classe de loucura.
A “loucura do cidadão comum”
“Fui internado ontemNa cabine cento e trêsDo hospício do Engenho de DentroSó comigo tinham dez Estou doente do peitoEstou doente do coraçãoA minha cama já virou leitoDisseram que eu perdi a razãoEstou maluco da idéiaGuiando o carro na contra-mãoSaí do palco fui pra platéiaSaí do quarto fui pro porão.”
(Sérgio Sampaio, do disco “Claro”, de Luiz Melodia)

Segundo representantes do Ministério da Saúde, hoje, cerca de 3 a 5% da população brasileira precisam de assistência psiquiátrica intensiva, ou seja, quase 5 milhões de pessoas. Incluem-se aí esquizofrenias, doenças psicóticas, neuroses graves, demência, alcoolismos, dependência de drogas, problemas da infância com distúrbios, síndrome do pânico, o transtorno bipolar, a esquizofrenia, depressão e outros. Dos dez principais males que afetam a população mundial de 15 a 44 anos, quatro estão associados a distúrbios mentais. Estima-se em 2 milhões o número de novos casos de depressão, no mundo, a cada ano. Cerca de 330 milhões de pessoas sofrem de algum tipo de distúrbio mental. Segundo a Organização Mundial de Saúde – OMS - em 1996, 120 mihões de pessoas sofriam de alcoolismo no mundo e 103 mil morreram por motivos relacionados à doença. Calcula-se que a depressão afeta 20% da população mundial. A OMS estima que os distúrbios de humor, incluindo a depressão, devem afetar cerca de 340 milhões de pessoas nos próximos anos. No ano 2020, segundo a OMS, a depressão será o principal distúrbio mental a atingir a população dos países em desenvolvimento.
Infelizmente, a psiquiatria ainda não encontrou uma medicação para a cura da doença mental, uma vez que os medicamentos podem reprimir os sintomas e até sustá-los, sem, no entanto, chegar nas causas da mesma. Sabe-se, hoje, que as causas das doenças mentais são multi-fatoriais. Conforme esclarece o médico psiquiatra Julius Martins Teixeira, isso significa que as relações que o homem estabelece podem interferir em sua psique. “Por exemplo” - diz ele – “podemos citar a síndrome do estresse pós-traumático, com possibilidade de aparecer em uma pessoa que se submete a uma situação de estresse permanente e contínuo, ao longo da sua vida, sem que haja perspectiva de solução, gerando pânico, medo e outros tipos de neuroses, psicoses, alcoolismo, dependência a drogas, etc. As situações geradoras de estresses pós-traumáticos, como a questão da insegurança econômica da população, violência, falta de perspectiva profissional e desemprego, podem causar todo um desequilíbrio na estrutura de vida da pessoa, tendo grande chance de desenvolver muitos tipos de doenças orgânicas como úlceras gástricas, hipertensão, diabetes, e sobretudo, as mentais. Obviamente, isso não quer dizer que todos enlouquecerão, mas que, nas atuais circunstâncias de vida, a pressão é grande e muitos estão sofrendo graves conseqüências psíquicas. A angústia existencial, tão presente no nosso tempo, pode levar uma pessoa à loucura”.
O quantitativo de hospitais psiquiátricos no Brasil era nenhum em 1852. Em 1961 já existiam 54 públicos e 81 privados, totalizando 135 contra acanhados 17 ambulatórios de psiquiatria em todo o território nacional, conforme dados do Ministério da Saúde. Francisco D. M. de Moura Neto, com base em dados do IBGE de 1983, informa que o Brasil possuía 427 hospitais psiquiátricos, totalizando 106.605 leitos, dos quais 40.708 localizados no Estado de São Paulo, com 163 hospitais. Segundo levantamento feito em 1981, 80% da população internada tinha, já naquela época, mais de seis meses de internação. Lentamente, a partir da redemocratização do país e início da Reforma Sanitária e Reforma Psiquiátrica começou a diminuir o ritmo da escalada de hospitais e leitos psiquiátricos contratados. Em 1991 refluiu para 54 públicos e 259 privados e 88.000 leitos. Em 1996, eram 72.514 leitos e em julho de 2001 caiu para 66.000 leitos.Em Janeiro de 2004 o Ministério da Saúde publicou a Portaria MS/Nº 0052, 20/01/2004, que instituiu o Programa Anual de Reestruturação da Assistência Psiquiátrica Hospitalar no SUS – 2004, visando permitir uma transição adequada do modelo assistencial para a assistência psiquiátrica, definindo nova classificação dos hospitais psiquiátricos, baseada no número de leitos contratados/conveniados ao SUS, com novos valores de remuneração das diárias hospitalares, nas quais estão incorporados o incentivo de qualificação do atendimento prestado, aferido pelo PNASH/Psiquiatria - Programa Nacional de Avaliação dos Hospitais Psiquiátricos, e também o incentivo pela redução dos leitos. Apesar da redução de cerca de 37.000 leitos de internação psiquiátrica desde a década de 1970 e criação de aproximadamente 266 Serviços Substitutivos, o modelo tradicional ainda prevalece. Este grupo de morbidade constitui o 4º maior nos gastos do SUS, tendo consumido, no ano de 2001, aproximadamente R$ 470 milhões, sendo que apenas 10% deste valor são despendidos com os serviços substitutivos, sendo os restantes 90% ainda destinados ao financiamento das internações.Dados do Ministério da Saúde de agosto de 2004 indicavam existir, em todo o país, 220 Serviços Residenciais Terapêuticos - SRT (nos quais moram cerca de 2 mil pessoas) e 546 Centros de Atenção Psicossocial - CAPS, dos quais 64 especificamente para o tratamento de dependentes de álcool e drogas e 41 voltados para crianças e adolescentes. O número de atendimentos nos CAPS, que em 2002 foi de 389 mil, em 2003 chegou a 3,7 milhões - quase dez vezes maior!Conforme dados do Cadastro Nacional de Estabelecimentos de Saúde - CNES, extraídos em maio de 2004, revelam que ainda existem no Brasil 55.792 leitos de psiquiatria, dos quais 7.660 (13,73%) sem vinculação com o SUS e 48.132 (86,27%) vinculados ao SUS. Em 2005, a meta era reduzir mais 3,5 mil leitos. Hoje, segundo a mesma fonte, atualizada em 24/09/2007, o número de leitos em psiquiatria é 53.485, sendo 44.182 vinculados ao sus e 9.303 não vinculados. e, em saúde mental: 2.597 leitos, sendo 2.260 vinculados com o sus e 337 não vinculados. Pretende-se que o dinheiro usado na manutenção dos leitos psiquiátricos desativados seja investido na rede extra-hospitalar, além dos ambulatórios e na atenção básica, especialmente o Programa Saúde da Família (PSF).Acredita-se que, dos leitos de psiquiatria existentes no país, aproximadamente 20 mil estão ocupados por pacientes - moradores: pessoas completamente abandonadas pela família e pela sociedade, sem nenhuma perspectiva de vida. Por outro lado, pelo menos 15 mil deles poderiam retornar imediatamente ao convívio social. Cada um desses internos representa, individualmente, em termos de custo ao Estado, cerca de R$ 1.000,00 por mês, repassados diretamente para essas instituições asilares. Esta realidade vem sendo alvo de denúncias sistemáticas e bem documentadas.

A indústria da loucura
Não nos surpreendemos com vosso despreparo diante de uma tarefa para a qual só existem uns poucos predestinados. No entanto nos rebelamos contra o direito concedido a homens - limitados ou não - de sacramentar com o encarceramento perpétuo suas investigações no domínio do espírito’.A. Artaud (carta aos médicos-chefes dos manicômios)
Ao longo do século XX, com o advento da psicanálise, os hospitais psiquiátricos que se alastraram pelo mundo, longe de trazer a cura aos doentes, além de servirem de depósitos de “lixo humano” criaram a chamada “indústria da loucura”. É fato comprovado, que o hospital psiquiátrico, tal como concebido, nada contribui para a recuperação do paciente ou sua reintegração social. A instituição assumiu características exclusivamente asilares; no manicômio se entra e lá se permanece. Tornou-se evidente a crueldade e o mercantilismo em prol dos interesses pessoais de uma camada entre os profissionais de alguns segmentos da sociedade, ávida de lucros. O doente se transformou em mercadoria e a sua doença em fonte de lucro, perpetuando a manutenção de um sistema assistencial que, na realidade, foi criado para esta finalidade lucrativa, e não para recuperar sua saúde. É sabido que esses hospitais funcionam em precárias condições, na mais das vezes, sem fiscalização sequer dos órgãos sanitários responsáveis pelo seu gerenciamento, constituindo-se em espaço de violência e de destruição institucionalizados. Embora legitimados e reconhecidos pelo Estado como “espaços terapêuticos”, servem apenas para gerar riqueza para os donos desses hospitais, principalmente nas décadas de 60 e 70, do século passado, quando o doente mental se tornou importante instrumento de lucro para o setor privado de prestação de serviços à saúde, gerando a “indústria da loucura”. Esta se acentuou no apogeu da ditadura militar, quando o governo optou por terceirizar a assistência psiquiátrica, ou seja, deixou de conceder diretamente a assistência através dos hospitais públicos. Fomentou-se, nessa época, o surgimento das “Clínicas de Repouso”, eufemismo dado aos hospitais psiquiátricos. Adotaram-se métodos de busca e internamento de pessoas a tal ponto que ambulâncias percorriam as cidades, especialmente após clássicos de futebol e carnaval, identificando indivíduos que portassem a carteira do INPS e que estivessem dormindo embriagados na via pública, os quais eram levados e internados com o diagnóstico de “psicose alcoólica”! Note-se que eram pessoas produtivas e socialmente inseridas, uma vez que portavam carteira profissional, mas internadas sob o discurso preventista da recém criada e rendosa indústria da loucura.
As empresas de saúde mental, que predominam até hoje, são movidas pela lógica do lucro máximo. Conforme alerta o psiquiatra Julius Martins Teixeira, o desemprego, a miséria e a fome enchem os hospícios. Toda a pobreza extrema que atinge a população, dentro do modelo degenerado e cruel que assegura o domínio da oligarquia que nada produz de útil, arrasta a psiquiatria para o âmbito dos grandes negócios, ficando à mercê de uma casta que é dona dos hospitais e manicômios. Se por um lado, ao longo dos anos 70/80, a indústria da loucura crescia e passava a ser hegemônica no panorama da assistência psiquiátrica, por outro lado os hospitais públicos começavam a ser abandonados e as condições de vida das pessoas dentro deles pioraram muito. Os asilos pareciam, cada vez mais, campos nazistas de concentração. Resumindo, o sistema de exploração, a espoliação do país pelos monopólios, a competição exacerbada, o individualismo, a falta de horizontes, a desonestidade e o desafeto, enlouquecem ricos e pobres, porque causam a miséria material e também a humana, gerando todo tipo de frustrações, enganos e desesperanças. Em outras palavras, o próprio sistema leva à loucura e dela se alimenta. Esta é a “loucura dos poderosos”.
O Movimento Antimanicomial
O Movimento Antimanicomial se refere a um processo mais ou menos organizado de transformação dos Serviços Psiquiátricos, derivado de uma série de eventos políticos nacionais e internacionais. Na sua origem, esse movimento está ligado à Reforma Sanitária Brasileira da qual resultou a criação do Sistema Unico de Saúde (SUS); está ligado também às experiências de desinstitucionalização da Psiquiatria desenvolvidas em Gorizia e em Trieste, na Itália, por Franco Basaglia nos anos 60.No âmbito dessa discussão, foram incluídos temas como o da segregação, da violência e dos maus tratos aos pacientes que, sem nenhuma forma de defesa, eram destituídos de cidadania. Influenciados pelos movimentos de reforma da psiquiatria que aconteciam na Europa e nos Estados Unidos, diversos setores da sociedade civil foram mobilizados em favor da luta pelos direitos dos pacientes. A reflexão sobre a loucura passou a integrar o quadro de discussões das universidades, dos meios intelectuais e dos profissionais de instituições psiquiátricas e as práticas cruéis e justificativas correspondentes passaram a ser duramente criticadas. Iniciava a luta contra o mercantilismo na saúde mental; a luta pela humanização dos hospitais psiquiátricos, buscando a reversão do modelo asilar caótico, segregador e dissocializante; e a luta por melhores condições de trabalho para os profissionais de saúde mental, tanto no que se refere às melhorias econômicas quanto às questões ligadas à autonomia científica e profissional. É fato que o resgate da cidadania das pessoas portadoras de sofrimento mental não se exauriu com a extinção, pura e simples, das instituições asilares. Mas, é importante destacar a necessidade de uma mudança de visão do portador de sofrimento psíquico, não mais como um indivíduo perigoso, inválido e improdutivo. Superar o paradigma da exclusão para, com sentimento solidário e de quem busca uma sociedade justa e fraterna, oferecer ao doente um tratamento digno, que valorize suas potencialidades e diminua seu sofrimento.No entanto, essa reforma, no Brasil, está atrelada a uma necessidade de ajuste econômico, o que, na verdade, significa não mexer nos interesses dos “poderosos” indiferentes à saúde da população. Por todo o exposto, o Ministério Público vem trazendo à tona reflexões com relação ao Direito Sanitário, a Reforma Psiquiátrica, promovendo uma visão crítica da “Reorientação do Modelo Assistencial” de Saúde Mental, na condição de órgão fiscalizador dos serviços de relevância pública e defensor dos interesses da sociedade.
Justiça para os excluídos: a função do Ministério Público
Mais um dos grandes obstáculos para os portadores de sofrimento psíquico é o problema que aflige a população carente em geral e não somente os ditos loucos: a falta do acesso à Justiça. Também contribui para o retardo na implementação da reforma o desconhecimento da lei e as propostas nela inseridas. Mesmo na área de saúde pública e até na jurídica ainda há operadores que a desconhecem. Que se dirá então da comunidade em geral.Por isso, o Ministério Público foi incumbido , pela Constituição, de cobrar dos poderes públicos e dos serviços de relevância pública o efetivo respeito aos direitos do cidadão (CF, art. 129, II), e sendo as ações e serviços de saúde, públicas ou privadas, serviços de relevância pública (CF, art. 197), está o Ministério Público autorizado a promover todas as medidas necessárias à garantia dos direitos previstos, também na Lei 10.216/2001. Esta lei chama a atenção de todos, inclusive do Ministério Público, para os direitos da “pessoa portadora de transtornos mentais” (ter acesso ao melhor tratamento, ser tratado com humanidade,visando a alcançar sua recuperação, ser protegido contra qualquer forma de abuso, ter garantido o sigilo nas informações prestadas, ter direito à presença médica para esclarecer a necessidade ou não de sua internação involuntária, ter livre acesso aos meios de comunicação disponíveis, receber o maior número de informações a respeito de sua doença e tratamento, ser tratado em ambiente terapêutico pelos meios menos invasivos possíveis e ser tratado, preferencialmente, em serviços comunitários de saúde mental), enfatizando que a internação, em qualquer de suas modalidades, só será indicada quando os recursos extra-hospitalares se mostrarem insuficientes. Houve uma reformulação do modelo de Atenção à Saúde Mental, transferido o foco do tratamento que se concentrava na instituição hospitalar, para uma Rede de Atenção Psicossocial, estruturada em unidades de serviços comunitários e abertos.Além disso, ao Ministério Público se incumbiu relevante papel pois passou a ser o destinatário de comunicações das internações involuntárias e também fiscalizar as internações compulsórias, isto é, medidas de segurança, a legalidade e dignidade das instalações, impedindo que se converta em “prisão perpétua”, e com o concurso de familiares, responsáveis e curadores, promover todas as modalidades de garantia aos direitos dos internados em geral, participando da formulação de políticas públicas e de instituições voltadas para a reabilitação psicossocial, fomentando a criação de serviços substitutivos ao manicômio.A internação psiquiátrica, segundo a concepção da Lei 10.216, deve ser encarada como exceção no tratamento e as internações involuntárias representam uma exceção ainda maior porque a Constituição Federal estabelece, dentre os direitos e garantias fundamentais do cidadão, que ninguém pode ser privado da sua liberdade e de seus bens sem o devido processo legal. O Judiciário tem que se manifestar. Inclusive, o Código Penal considera crime de cárcere privado a privação da liberdade de alguém mediante a internação da vítima em casa de saúde ou hospital. Portanto, quando o médico determina uma internação sem a concordância do paciente não está, a princípio, agindo em conformidade com o referido comando constitucional. Nada mais apropriado, como garantia para o paciente, para o médico e para a sociedade, que um ato tão sério como este (determinação de internação involuntária) esteja submetido a controles. Surge aí o Ministério Público como destinatário da comunicação de tais internações.O advento da Lei 10.216/01 obriga os operadores do direito em geral e o Ministério Público brasileiro em particular a reverem toda a sua concepção acerca do tratamento reservado pelo Direito para o paciente psiquiátrico. Até então, o centro das atenções, quando se tratava desse tema, era a interdição e a curatela, atos que visavam, sobretudo, a proteção do patrimônio do interdito. Sua pessoa, sua cidadania e todos os direitos dela advindos ficavam relegados a plano secundário. O Ministério Público, inserido nesse contexto jurídico, atuava, basicamente, como fiscal da lei nos processos de interdição ou em qualquer outro em que havia interesse de interdito, ou então requeria a interdição caso não houvesse familiar do doente mental que pudesse fazê-lo. Deveria, ainda, fiscalizar os locais de internação. A lei citada renova essa concepção, mostrando que o paciente psiquiátrico é sim um sujeito de direitos, merecedor, por sua especial condição, de toda atenção por parte do Estado e do órgão estatal eleito constitucionalmente como defensor dos mais importantes direitos da cidadania, o Ministério Público. Para o fortalecimento da cidadania é fundamental aos operadores do direito e membros do Ministério Público reverem seus conceitos e sua base doutrinária. E nada melhor que iniciem esse processo dialogando com aqueles que têm o conhecimento técnico e colocam a “mão na massa” no tema da saúde mental, ou sejam, os usuários do sistema: médicos, enfermeiros, psicólogos, assistentes sociais, familiares e pacientes. Tal iniciativa propiciará a atuação destes agentes sociais que já têm bagagem na tutela de tantos outros interesses da sociedade, podendo contribuir muito, na proporção do conhecimento do Direito Sanitário, na implementação das garantias dos que têm sofrimento psíquico, com o concurso imprescindível dos familiares e da própria sociedade na discussão e a elaboração de propostas e na luta pelo reconhecimento pleno da cidadania dessa parcela da sociedade.

A sociedade trabalhando pela saúde
O descaso com o portador de sofrimento psíquico é diretamente proporcional à debilidade do conceito de cidadania vigente em nosso corpo social geral. É preciso romper, de uma vez por todas, com o esquema montado na área da saúde a fim de impedir a continuidade da política de dominação. Conforme esclarece o Promotor de Justiça Renoir da Silva Cunha em seu trabalho desenvolvido na Faculdade de Direito da Universidade de Brasília, para o curso de Especialização em Direito Sanitário para membros do Ministério Público, é preciso enfrentar essa situação de forma mais efetiva tanto por meio da Lei de Reforma Psiquiátrica bem como todos os dispositivos que estiverem ao nosso alcance no sentido de avançarmos na luta antimanicomial, sem que isso implique no retrocesso da qualidade, humanização, acesso e controle social, indicativo de sua organicidade para com a construção de um Sistema Único de Saúde, público, de amplo acesso e eficaz.Separar os mitos e preconceitos e evitar os rótulos, que sempre envolveram a doença mental, da realidade, embora não solucionem de todo o problema, constitui um grande passo em direção ao resgate proposto.Quanto à periculosidade, esta não é própria do transtorno mental, mas de alguns casos somente. Alguns portadores de sofrimento psíquico podem cometer crimes graves, mas também é verdade que os tidos como normais cometem um número bem maior dessas infrações. O Paciente psiquiátrico pode constituir perigo real para a família e para a comunidade. Esta noção é bastante conhecida. O que ainda não foi suficientemente esclarecido e divulgado é o tanto que esse perigo é imaginário, e o tanto que o louco é agredido pela sociedade que nele vê refletida sua própria agressividade. Então o problema é o posicionamento da sociedade, da família e do Estado em relação ao doente mental. Nossa tendência de excluir, segregar e punir o diferente, pelo simples fato de ser diferente do estabelecido nas pautas sociais, e não pelos efetivos danos que possa causar ao corpo social. O paradigma a ser transposto não é o manicômio, mas a exclusão, porque acabar, pura e simplesmente, com os hospitais psiquiátricos não resgata a cidadania e a dignidade do portador de sofrimento psíquico. Vencer a exclusão exige uma adaptação geral às formas de se encarar o homem e o mundo. A vida em sociedade requer, cada vez mais, o estabelecimento de regras claras de convivência e a integração de todos os indivíduos na formulação e emprego dessas regras, fortalecendo-se, assim, a cidadania em geral.Os Serviços Territoriais de Atenção Diária em Saúde Mental, de base comunitária (Centros e Núcleos de Atenção Psicossocial – CAPS/NAPS), as Oficinas Terapêuticas, as Oficinas de Capacitação/Produção, os Ambulatórios de Saúde Mental, as Equipes de Saúde Mental em Hospitais Gerais, as Moradias Terapêuticas, os Centros de Convivência, o atendimento ambulatorial, o hospital-dia e os serviços de urgência permitem o acompanhamento da evolução do paciente e a intervenção da equipe de saúde mental sem retirá-lo do convívio familiar e de suas ocupações habituais. O convívio e a interação com a família e a comunidade evitam a perda dos vínculos, estes essenciais para a recuperação, que certamente ocorre na internação tradicional. O tratamento em unidades psiquiátricas de hospitais gerais, propicia uma atenção integral à saúde do paciente, pois é muito mais fácil dotar o hospital geral de assistência psiquiátrica adequada do que aparelhar o hospital psiquiátrico para atendimento médico complexo. Os centros de convivência, as moradias protegidas, as cooperativas de trabalho que impliquem constituição de empresas sociais que garantam trabalho e remuneração, como elementos integradores e organizadores dos sujeitos na vida societária, são auxiliares primorosos para que se busque a eqüidade nas estruturas assistenciais disponíveis, valorizando o paciente e quebrando o estigma de representar apenas um peso morto para a família e para a comunidade.Significativo avanço na consolidação dos direitos das pessoas portadoras de sofrimento mental se deu com a legislação recentemente obtida, declarando sua cidadania mediante o reconhecimento dos seus direitos e explicitando as obrigações do Estado. Porém, é necessário que sociedade, família e Estado, conjuguem esforços para efetivar essas garantias, por meio do fortalecimento do controle social das ações e serviços de saúde, da municipalização do atendimento tornando-o cada vez mais próximo do usuário, da criação da rede substitutiva ao hospital psiquiátrico, da articulação e qualificação constante de profissionais de saúde e profissionais do Direito que busquem facilitar a vida do usuário dos serviços e de seus familiares. É verdade que a lei, por si, não altera a realidade, mas permite o debate, o lançamento de idéias e propostas de solução para o problema.
*Juçara Azevedo de CarvalhoPromotora de Justiça titular da 7.ª Promotoria de Justiça da Cidadania da Comarca de Salvador, Estado da Bahia, atualmente em exercício na 3.ª Promotoria de Justiça Criminal da Capital e membro do MPD