quinta-feira, 27 de dezembro de 2007

O oportunismo aborteiro de Sérgio Cabral*


Elio Gaspari*
Quando o governador Sérgio Cabral usou o trabalho do eco­nomista Steven Levitt (Freako­nomics) para defender o aborto como política de segurança pública, dizendo que a favela da Rocinha "é uma fábrica de produzir marginal", juntou, num só "bonde", oportunismo, impostura e ignorância. Cabral é oportunista porque, em setembro de 1996, quando era can­didato a prefeito do Rio, descascou seu adversário, Luiz Paulo Conde, por defender o aborto. Nas suas palavras: "Conde foi leviano. O que o Rio precisa é melhorar o atendimento na saúde". Continua oportunista ao tentar rees­crever o que disse ao repórter Aluizio Freire, do portal G1, onde sua entre­vista está conservada na íntegra. Cabral praticou uma impostura quando embaralhou uma questão de direito — a decisão da Corte Suprema que, em 1973, legalizou o aborto nos Estados Unidos — com as estatísticas do crime nos anos 90. A Corte decidiu uma dúvida constitucional: o direito da mulher de interromper a gravidez. Esse é o verdadeiro e único debate do aborto. Nada a ver com o propósito de fechar (ou abrir) "fábrica de pro­duzir marginal". Levitt, por sua vez, indicou que o aborto foi responsável por até 50% da queda na criminalida­de americana. Em momento algum apresentou-o como alternativa de controle da natalidade. Pelo contrá­rio, qualificou-o como "um tipo de seguro rudimentar e drástico". Cabral submeteu-se a uma vasectomia e não terá mais filhos (teve cinco). Tanto Levitt como a Corte Su­prema não atravessaram a linha que o doutor transpôs, vendo no aborto uma modalidade de política pública capaz de produzir segurança. Uma coisa é dizer que houve uma relação de causa e efeito entre a liberação do aborto e a queda da criminalida­de. Bem outra é associar o aborto às políticas de segurança pública. A teoria de Cabral sustentou-se na ignorância. Ele disse que a Rocinha tem taxas de fertilidade africanas. Besteira, elas equivalem à metade. Em 2000, o número médio de filhos nas favelas cariocas (2,6) era superior ao dos outros bairros do Rio (1,7), mas ficava próximo da estatís­tica nacional (2,1). Quem acha que o problema da segurança está na barriga das faveladas, deve pensar em mudar de planeta. A taxa dos morros do Rio é a mesma do mundo. Nos anos 70, muitos sábios sus­tentavam que o Brasil precisava bai­xar sua taxa de fertilidade (5,8) para distribuir melhor a riqueza. Passou-se uma geração, a fertilidade caiu a um terço (1,9) e o índice de Gini, que mede as desigualdades de renda, passou de 0,56 para 0,57, chegando ao padrão paraguaio. Nasceram menos brasileiros, mas não se reduziu o fosso social. A tropa de elite pode acreditar que se aprimora a segurança pública com o capitão Nascimento cuidando dos morros e o governador Cabral dos ventres. As contas de Levitt são honestas, suas conclusões são rigoro­sas e Freakonomics é um ótimo livro. Aplicando-se a outros números de Pindorama o mesmo tipo de tortura cerebrina a que Cabral submeteu as conclusões do economista americano, seria possível dizer que a queda de 67% na taxa de fertilidade nacional provocou um aumento de 300% nos homicídios no Rio de Janeiro.
Serviço: o artigo "The Impact of Legalized Abortion on Crime", de Steven Levitt e John Donohue 3º, está na internet, infelizmente em inglês. É melhor do que o resumo publicado em "Freakonomics".
* Jornalista; coluna publicada na Folha de 28/10

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