domingo, 2 de dezembro de 2007

Um confronto anunciado!!


Flavio Goulart
Médico; Doutor em Saúde Pública; Professor Titular (aposentado) da Universidade de Brasília.
Há alguns meses, publiquei aqui no Correio Braziliense artigo em alertava para problemas relativos aos conselhos de saúde brasileiros, ou seja, de que estariam se arvorando a uma espécie de quarto poder, ao arrepio das leis vigentes, bem como desenvolvendo certas tendências preocupantes, tais como sua autonomização radical; sua "parlamentarização"; a profissionalização de seus conselheiros, além de uma inédita e radical auto-regulação.
A matéria do dia 17 de novembro último, neste mesmo Correio Braziliense, intitulada "Troca de farpas entre Temporão e CNS", veio demonstrar que as preocupações manifestadas no texto anterior eram procedentes e, como conseqüência, já se prenuncia uma era de confrontos entre o Executivo, de um lado e o Conselho Nacional de Saúde, de outro. Falo das duas entidades como pertencentes a “lados” distintos – o que não teria cabimento – apenas para reforçar o que a realidade vem demonstrando, no caso, a emergência do atual conflito, que talvez seja apenas o primeiro de uma longa série.
O CNS tem uma prerrogativa praticamente exclusiva quando comparado aos demais conselhos de políticas sociais no Brasil: sua presidência não é exercida por um ator governamental, do estatuto de um ministro de Estado ou um funcionário graduado, mas sim por uma liderança da sociedade civil, no caso o farmacêutico e líder sindical Francisco Batista Junior.
Batista Junior declara sua oposição ao projeto do Ministério da Saúde que cria as Fundações Estatais de Direito Privado. Até aí, nada de mais, seria um direito seu, como cidadão. O problema é que, no caso, ele está inserido na máquina governamental, como dirigente de um órgão que se situa, de fato e de direito, na esfera do Executivo. Também não haveria nada de mais em sua opinião, se ela não refletisse certo viés sindicalista e coorporativista, o que, aliás, tem prevalecido nas discussões sobre o referido projeto, longe, portanto, do interesse maior da sociedade brasileira, ao qual, por princípio, um presidente de conselho nacional deveria estar atento.
Os vários conselhos de políticas sociais existentes no Brasil (além da Saúde, nas áreas de Educação, Meio Ambiente, Criança e Adolescente, Previdência Social, Direitos Humanos, Desenvolvimento Social, entre outras) têm como aspectos comuns: a vinculação ao Poder Executivo, o estatuto de política de governo, os atributos de instância de consulta, acompanhamento e formulação de políticas, com o poder deliberativo atrelado a diretrizes previamente estabelecidas em leis e normas. A saúde se configura como exceção, não só por ter a presidência exercida por um ator externo, mas também por sua paridade auto-regulada, pela escolha direta de conselheiros a partir das bases, e por um forte discurso autonomista, que se estende até mesmo à reivindicação de autonomia orçamentária e administrativa.
Seriam essas prerrogativas e este ineditismo de práticas vigentes no CNS vantajosos para a área da saúde? Não necessariamente. Se há avanços na participação em saúde, há também dilemas não resolvidos, por exemplo, na promoção de falsas expectativas nos participantes dos conselhos de saúde quanto a um suposto poder autônomo de decisão sobre a política de saúde, bem como na constituição dos conselhos como fóruns de debates focados na ideologia, no corporativismo e no partidarismo e não no que eles deveriam ser de fato: organismos de formulação, apoio e sustentação estratégica de políticas de interesse coletivo, necessariamente vinculados ao Estado. Assim, resta grande distância entre o idealizado e o real, ou entre o ideológico e o jurídico-administrativo e essas disjunções acarretam enormes prejuízos para a participação em saúde, longe de favorecê-la.
Corajoso, mais uma vez, foi o Ministro Temporão, que em outro momento enfrentou dogmas religiosos e agora se dispõe a resistir a dogmas corporativos, ao sugerir ao farmacêutico Batista Junior que sua vontade de criar leis seja canalizada através de um cargo no Legislativo. Afinal, o verdadeiro e final poder de deliberação é atributo da tríade Executivo – Legislativo - Judiciário, como afirmam e reafirmam as leis, sendo que os conselhos pertencem á primeira destas esferas, não constituindo um poder a parte dos demais. Isso não impede que outras tarefas, também nobres, possam e devam ser assumidas pelos conselhos, de acordo com o que está referido na Resolução 333 do próprio CNS: formular, mobilizar, fiscalizar, discutir, opinar, propor, exercer visão estratégica.
Há novos tempos na saúde e a sociedade brasileira deseja mudanças. É preciso ultrapassar os movimentos marcadamente ideológicos, típicos (e necessários) nos anos de arbítrio, em direção à ação política não mais em ambiente de competição partidária e ideológica ou de temor conspiratório, mas de construção solidária do bem comum.

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