quarta-feira, 19 de dezembro de 2007

A reforma do Estado SUS e a proposta das fundações públicas ou estatais 1


Nelson Rodrigues dos Santos1
1 Professor colaborador do Departamento de Medicina Preventiva e
Social da UNICAMP e Ex-assessor do Gabinete do Ministério da Saúde.
nelsonrs@fcm.unicamp.br
1Esta versão incorpora aprimoramentos de grande pertinência e consistência de vários militantes da reforma sanitária, em especial, Francisco Braga, Gilson Carvalho, Jairnilson Paim, Lenir Santos, Luiz Cecilio, Marco Antonio Teixeira e Paulo Elias, sem comprometê-los com dubiedades, equívocos e limitações ainda existentes, que seguem por nossa conta. Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 30, n. 72, p. 120-128, jan./abr. 2006 SANTOS, N. R. • A reforma do Estado ‘SUS’ e a proposta das fundações públicas ou estatais 121 “... o erro de reduzir a política à macroeconomia, de subordinar as ações construtivas à miragem fugidia das perfeitas condições econômicas, condena os governos a um começo perpetuamente adiado...” (VACLAV HAVEL, último presidente da Tchecoslováquia)
A CONSTITUIÇÃO CIDADÃ E A REFORMA DO ESTADO ‘SUS’
Sabe-se que a demarcação do que é público e privado e da dinâmica da coexistência entre os interesses e instituições públicas e privadas tem relação com o pacto social entre os diferentes segmentos da sociedade civil e destes com os aparelhos de Estado, o que, por sua vez, tem relação com os valores sociais prevalentes e o grau de consciência coletiva dos direitos sociais, dos rumos do modelo do desenvolvimento e da democratização do Estado e mobilizações daí decorrentes. Em sociedades em que estas questões se encontram mais avançadas, com nível reconhecidamente mais elevado do processo civilizatório, o pacto social e federado construído e celebrado intensivamente, desdobra-se no permanente cotidiano da sociedade e do Estado, em vigilância eficaz contra retrocessos e por aprimoramentos. É o paradigma da ‘res-pública’. Tivemos no Brasil auspicioso período pós-ditadura, com crescente mobilização da sociedade civil nos anos 1980, com o ápice no processo da Constituinte em 1987/1988, quando novo e avançado pacto social e federado consagrou princípios e diretrizes com base nos direitos de cidadania e cuja implementação apontou para a adequação e reforma dos aparelhos de Estado, incluindo legislação infraconstitucional.
Por outro lado, a formação histórica do nosso país dispôs reconhecida diversidade entre os setores socioeconômicos sob o ângulo do avanço da consciência, organização e mobilização da sociedade e a resistência dos segmentos conservadores. No setor saúde, no âmbito da seguridade social, houve verdadeiro salto de qualidade no pacto social e federado construído pelo movimento da Reforma Sanitária brasileira e os Constituintes: o Sistema Único de Saúde (SUS), que adentrou os anos 1990 com potência suficiente para conquistar significativas reformas nos aparelhos de Estado, como a profunda descentralização/municipalização, a criação de comissões permanentes de pactuação entre as três esferas de governo com a Norma Operacional Básica do SUS (NOB-93), os conselhos e conferências de saúde – enquanto expressivo avanço na gestão participativa –, a direção única em cada esfera com a extinção do Instituto Nacional de Assistência Médica da Previdência Social (INAMPS) e a criação dos Fundos de Saúde e dos repasses fundo a fundo. Este grande avanço foi realizado até 1994, no âmbito da ‘gestão de sistemas’ (municipal, estadual e nacional) e, no seu bojo, já se previam etapas seguintes voltadas para a gestão/gerência das unidades prestadoras de serviços, desde as básicas até as de alta complexidade, com base em metas de prestação de serviços necessários à população e autonomia gerencial para cumpri-las com qualidade. Sua efetivação, entretanto, vem passando por desvios e bloqueios a seguir expostos. EVOLUÇÃO PÓS-1994 A continuidade ou extensão da reforma do Estado ‘SUS’ à rede prestadora de serviços implicava a partir de 1994, em: Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 30, n. 72, p. 120-128, jan./abr. 2006 122 SANTOS, N. R. • A reforma do Estado ‘SUS’ e a proposta das fundações públicas ou estatais a) reconhecer e identificar nos aparelhos de Estado e nos correspondentes procedimentos e instrumentos gerenciais (dos recursos financeiros, materiais e humanos) a pesada e complexa herança da formação do Estado brasileiro: unitário (avesso à diversidade regional e local), cartorial, patrimonialista, burocratizado e clientelista, com a administração pública direta e indireta impregnadas com todas as vertentes particularistas e corporativistas; b) formular estratégias e desenvolver novos modelos gerenciais capazes de deslocar a hegemonia do ‘modelo da oferta’, substituindo-a pelo ‘modelo das necessidades e direitos da população’; c) superar o grande abalo produzido em 1993 com a retirada repentina e arbitrária do financiamento do SUS, de sua maior fonte (previdenciária), quebrando-o e obrigando o Ministério da Saúde, por meio de decreto de calamidade pública, a contrair empréstimo perante o Fundo de Amparo ao Trabalhador (FAT); e d) antepor alternativas de reforma e avanços gerenciais nas unidades do SUS, à proposta apresentada na época pelo governo federal, de simples abdicação dessa responsabilidade, e sua entrega a entidades do setor privado (organizações sociais do Plano Diretor de Reforma do Estado, 1995). Na época, já se tornava clara a percepção do grande desafio do cidadão se reconhecer no sistema público, inclusive a classe média, o servidor público, o gestor e o conselheiro enquanto usuários, do sistema público universalizado. A realização deste reconhecimento, desse pertencimento, passa pela consciência das necessidades, pela consciência dos direitos, pela consciência política e pela conquista de um SUS tão público quanto já é estatal. Não houve potência suficiente para a continuidade ou extensão da reforma do Estado ‘SUS’ à rede prestadora de serviços: o sub-financiamento, a pulverização dos parcos repasses federais em 130 fragmentos, o largo predomínio do pagamento dos serviços por produção e com valores abaixo dos custos operacionais, a desastrosa precarização da gestão dos trabalhadores de saúde incluindo o festival de terceirizações, têm sido, desde 1990, os grandes indutores do perfil da oferta de serviços. A atenção básica não consegue desenvolver alta resolutividade (acima de 80%) nem a porta de entrada predominante nem a estruturação do conjunto do sistema; os serviços de média e alta complexidade (eletivos e de urgência) super-congestionados, reprimem a demanda e reproduzem os interesses do modelo da oferta com altos índices de atos evitáveis e/ou desnecessários de difícil controle neste modelo. A REFORMA DO ESTADO ‘SUS’ NA CONTRA-HEGEMONIA O impulso da Reforma do Estado ‘SUS’ até 1994 entrou, a partir de 1995, em desvantagem. Esta impediu sua continuidade e extensão às necessárias reformas de gerência na rede prestadora de serviços graças ao fortalecimento de políticas institucionais econômicas, da ‘inteligência’ de Estado e da sua reforma ‘liberal’ e nas políticas públicas, que avançaram no ideário da focalização e segmentação /estratificação, sobrepondo-se, na prática, ao ideário da Reforma Sanitária brasileira universalista, com equidade e integralidade. Esta nova hegemonia delimitou os avanços da NOB-96 e da Norma Operacional da Assistência à Saúde (NOAS-00) a uma implementação racionalizadora da produtividade de Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 30, n. 72, p. 120-128, jan./abr. 2006 SANTOS, N. R. • A reforma do Estado ‘SUS’ e a proposta das fundações públicas ou estatais 123 ações e serviços de saúde na direção da gestão descentralizada “Tirar água das pedras” sob baixíssimo financiamento. Esta reforma, contudo, continuou emergindo na contra-hegemonia em numerosas trincheiras e ocasiões, seis delas de alto significado para a retomada da reforma do Estado ‘SUS’: • Setembro/1995: Realiza-se a oficina de Trabalho “Alternativas de Gestão das Unidades Públicas Governamentais do SUS”, com a participação de 109 técnicos e dirigentes do Conselho Nacional de Secretários de Saude (CONASS) (promotor), Conselho Nacional de Secretarias Municipais de Saúde (CONASEMS), Organização Pan-Americana de Saúde/Organização Mundial de Saúde (OPAS/OMS), Associação Brasileira de Estágios (ABRES), Instituto de Direito Sanitário Aplicado (IDISA), Associação Brasileira de Pós-Graduação em Saúde Coletiva (ABRASCO) e Centro Brasileiro de Estudos de Saúde (CEBES), a qual, por unanimidade, condenou as fundações privadas de apoio a unidades públicas e terceirizações das unidades públicas, assim como propôs a continuidade da condição estatal nas unidades públicas e seu aprimoramento gerencial por meio de modalidades de autonomia de gestão e contratos de metas qualitativas, subordinadas aos preceitos constitucionais e da legislação infraconstitucional, a começar pela definição dos papéis e objetivos de cada unidade pública em função da sua integração funcional às redes hierarquizadas e regionalizadas. • Dezembro/1996: Realiza-se a oficina de trabalho “Reforma Administrativa”, com a participação de 96 técnicos e dirigentes das Secretarias de Estado de Saúde, promovida pelo CONASS, a qual, por unanimidade aprovou a autonomia de gestão das unidades estatais, a flexibilização em função da realização de metas e objetivos, mas sem transformá-las em organizações sociais privadas com desresponsabilização do Estado. • Dezembro/1996: Deliberação do Conselho Nacional de Saúde solicita ao governo federal a suspensão da aplicação no SUS, por seis meses, da reforma pretendida, com vistas ao necessário aprofundamento e posicionamento do Conselho Nacional de Saúde (CNS). Paralelamente, houve mobilização política de várias entidades desse Conselho, inclusive em audiência pública na Câmara dos Deputados, o que resultou na suspensão solicitada. • Maio/1997: É discutido e aprovado, por unanimidade, no plenário do CNS, circunstanciado relatório de grupo de trabalho especial criado em 1996, que condena a entrega de unidade pública a ‘organizações sociais’ do setor privado para depois contratá-las, com a justificativa de se desfazer do peso da lentidão, baixíssimo orçamento, burocratismo, clientelismo, baixa eficácia e eficiência, e preconiza que a reforma do Estado remova este peso no próprio setor público, criando e promovendo a imprescindível flexibilização e agilização gerencial e administrativa, com autonomia gerencial dos órgãos públicos em questão, atrelada ao cumprimento de metas de produção e qualidade, sob contratos de gestão, sempre em função dos resultados para a população, e com quadro do pessoal de saúde ingressando por concurso público, com carreiras e criação do emprego público pela Consolidação das Leis do Trabalho (CLT) com adicionais por desempenho e resultados para a população. • Novembro/1999: É discutido e aprovado, por unanimidade, no plenário do CNS. Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 30, n. 72, p. 120-128, jan./abr. 2006 124 SANTOS, N. R. • A reforma do Estado ‘SUS’ e a proposta das fundações públicas ou estatais segundo grupo de trabalho especial sobre a reforma do Estado e criação de organizações sociais privadas. Este relatório, mais abrangente que o de 1977, preconiza que antes de implantar as organizações sociais, deveria ser garantida maior autonomia às unidades públicas de saúde, com profissionalização do gestor público, adoção do contrato de gestão para cumprimento de metas, etc., por meio de projeto de Lei que contemple maior flexibilidade gerencial e controle social dos resultados. Se, posteriormente, as organizações sociais voltassem à discussão a interlocução sobre a sua necessidade e oportunidade, isto se daria perante um Estado eficaz, eficiente, com resultados maiores para a população e com controle social mais desenvolvido nas atividades-meio do Estado e, principalmente, nos resultados. • Agosto/2002: É discutido durante sete reuniões ordinárias, e aprovado por unanimidade no plenário do CNS o documento “O Desenvolvimento do SUS: Avanços, Desafios e Reafirmação dos seus Princípios e Diretrizes”. No décimo desafio consta a “valorização de planos de cargos, carreiras e salários com adicionais de desempenho e resultados para a saúde da população”, e no 11º desafio consta “unidades estatais de saúde com autonomia administrativa para cumprimento de metas de produção, de qualidade, com humanização e resultados, em função das necessidades e prioridades da população aprovadas nos conselhos de saúde”, assim como “termos de compromisso e contratos de gestão com o Gestor”. Nestas seis manifestações ficaram inequívocas: a) Condenação de todas as formas de terceirizações/privatizações da gestão das unidades e serviços governamentais de saúde e, b) Proposição de criação e efetivação de formas de combater dentro do setor público, o subfinanciamento, burocratismo, clientelismo, ineficiência e ineficácia, por meio da profissionalização do gestor público, do concurso público, carreiras, adicionais por desempenho/resultados, contratos pela Consolidação das Leis do Trabalho (CLT), efetivação do controle social dos resultados, e em especial, as modalidades de autonomia gerencial comprometida com o cumprimento de metas quantitativas e de indicadores de qualidade, contratadas pela Gestão do SUS. c) Nelas se encontram – ainda que na condição subalterna ou contra-hegemônica –, as raízes do atual esforço de criação das Fundações Públicas ou Estatais, neste momento expresso no substitutivo do deputado Pepe Vargas ao Partido Liberal Progressista (PLP) n. 92/2007, cuja versão inicial está lacônica e vulnerável. DELIMITAÇÃO DA AUTONOMIA GERENCIAL NA CONSTRUÇÃO DO SUS A implantação e implementação da autonomia gerencial com contratos de metas será avanço tanto maior quanto mais vinculado a outros avanços que constroem o SUS, como: a) No financiamento e gestão dos recursos financeiros: • Regulamentação, da Emenda Constitucional, 29, conforme dispõe o PLP 01/2003 ou similar. • Substituição dos repasses federais fragmentados por repasses vinculados às metas estaduais e Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 30, n. 72, p. 120-128, jan./abr. 2006 SANTOS, N. R. • A reforma do Estado ‘SUS’ e a proposta das fundações públicas ou estatais 125 municipais de atenção integral à saúde aprovadas pelos conselhos de saúde, inclusive as prioridades e etapas constantes nos planos anuais e pluri-anuais. Esta substituição não interrompe a transferência de recursos, constando de transição pactuada entre as esferas envolvidas. No caso de descumprimento das metas acordadas sem justificativa aceita pelos órgãos de avaliação, controle, auditoria e Conselho de Saúde, aplica-se, se for o caso, o disposto no § único do Art. 4º da Lei n. 8.142/1.990, ou na punição da(s) autoridade(s) sanitária(s) responsáveis em quaisquer dos níveis da gestão e gerência do sistema. • Substituição da predominância no SUS, da remuneração dos serviços por produção e com valor menor que o custo, pela remuneração das metas de atenção integral com indicadores de qualidade, eficiência e eficácia pactuados na Comissão Intergestora Bipartite (CIT) e Comissão Intergestora Bipartite (CIBs) aprovados nos conselhos de saúde, com valores não inferiores ao custo. Fica assim proscrita também a possibilidade de remuneração global com valores menores que o custo, inclusive porque estão impedidos valores irrisórios ou inexeqüíveis pela Lei n. 8.666/1.993. b) Nas inovações de gestão: • As fundações públicas ou estatais deverão estar em princípio vinculadas à Gestão Municipal e supletivamente à Estadual, conforme dispõe a Lei n. 8080/90. • A definição e efetivação dos papéis e responsabilidades de cada unidade autônoma devem inserir-se na construção das redes hierarquizadas e regionalizadas, desde os distritos sanitários (com unidades básicas, policlínicas e hospitais de menor porte), até hospitais complexos de grande porte. • As fundações públicas ou estatais devem participar do regramento e regulamentação dos fluxos de demanda dos consumidores dos planos privados de saúde aos serviços do SUS. • As fundações públicas ou estatais devem alimentar, sistematicamente, os bancos de dados e informações do Gestor Público Contratante, em função da obrigação legal do Gestor alimentar o Sistema de Informações sobre Orçamento Público em Saúde (SIOPS), Sistemas Integrados de Acompanhamento Financeiro (SIAFI) e congêneres estaduais e municipais, assim como os de produção de ações e serviços do SUS. • Devem ser elaborados e disponibilizados relatórios de gestão ao gestor contratante, com diretrizes pactuadas na CIT e CIBs, contendo metas cumpridas, indicadores de qualidade, desempenho, eficiência e resultados cumpridos, e a forma e grau de inserção no processo da regionalização, assim como os balanços financeiro, patrimonial e orçamentário também submetidos ao gestor contratante, que legalmente presta contas aos órgãos oficiais de controle interno e externo, aos respectivos conselhos de saúde, ao Legislativo e ao Ministério Público. • Devem integrar toda a implementação do Pacto pela Vida, e Defesa do SUS e de Gestão. c) Na gestão dos recursos materiais: • Devem ser adotados os procedimentos legais inclusive a consulta pública e o pregão público. d) Na gestão dos recursos humanos: • Efetivação das medidas de desprecarização da gestão do trabalho e dos trabalhadores de saúde no SUS, pactuadas na CIT, CIBs e conselhos de saúde, com vistas à fixação e adesão do pessoal junto à população. Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 30, n. 72, p. 120-128, jan./abr. 2006 126 SANTOS, N. R. • A reforma do Estado ‘SUS’ e a proposta das fundações públicas ou estatais população, preferentemente sob o regime de emprego público pela CLT. Esta delimitação da autonomia gerencial foi, certamente, a preocupação do CNS em sua reunião de agosto/2007, ao aprovar dez diretrizes a serem respeitadas nos avanços do modelo de gestão no SUS, que valem ser aqui transcritas: 1 – seja estatal e fortaleça o papel do Estado na prestação de serviços de saúde; 2 – seja 100% SUS, com financiamento exclusivamente público e operando com uma única porta de entrada; 3 – assegure autonomia de gestão para a equipe dirigente dos serviços, acompanhada pela sua responsabilização pelo desempenho desses serviços, com o aperfeiçoamento dos seus mecanismos de prestação de contas; no qual é assegurada à autonomia dos gestores do SUS de cada esfera do governo com relação à gestão plena dos respectivos fundos de saúde e das redes de serviços; no qual a ocupação dos cargos diretivos ocorra segundo critérios técnicos, mediante o estabelecimento de exigências para o exercício dessas funções gerenciais; 4 – envolva o estabelecimento de um termo de relação entre as instâncias gestoras do SUS e os serviços de saúde, no qual estejam fixados os compromissos e deveres entre essas partes, dando transparência sobre os valores financeiros transferidos e os objetivos e metas a serem alcançados, em termos da cobertura, da qualidade da atenção, da inovação organizacional e da integração no SUS, em conformidade com as diretrizes do pacto de gestão; 5 – empregue um modelo de financiamento global, que supere as limitações e distorções do pagamento por procedimento; 6 – aprofunde o processo de controle social do SUS no âmbito da gestão dos serviços de saúde; 7 – institua processos de gestão participativa nas instituições e serviços públicos de saúde; 8 – enfrente os dilemas das relações público e privado que incidem no financiamento, na organização, na gestão, na prestação de serviços e nas relações de trabalho na saúde; 9 – que garanta a valorização do trabalho em saúde, por meio da democratização das relações de trabalho de acordo com as diretrizes da mesa nacional de negociação do SUS. 10 – que se coadune com as demais políticas e iniciativas de fortalecimento do SUS. Concluindo, a implantação e implementação das fundações públicas ou estatais, e demais mudanças no modelo de gestão, na ausência de avanços da implementação de procedimentos básicos de gestão como os acima apontados, estas fundações por si não mudarão o modelo de gestão (modelo da oferta),e serão, provavelmente, compelidas a desenvolver boa produtividade em economia de escala, com seleção de demanda e cumprimento de bom padrão de qualidade, especialmente no caso de hospitais complexos de maior porte, mas descoladas dos vasos comunicantes da construção do novo modelo de atenção e de gestão comandados pelos princípios e diretrizes constitucionais, e por isso mais uma “panacéia” no interior do velho modelo. Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 30, n. 72, p. 120-128, jan./abr. 2006 SANTOS, N. R. • A reforma do Estado ‘SUS’ e a proposta das fundações públicas ou estatais 127 BREVE CONSIDERAÇÃO SOBRE O DIREITO PÚBLICO E PRIVADO A pouca clareza e delimitação entre os interesses públicos e privados em nossos aparelhos de Estado, referida no início deste texto, mantém historicamente um estreitamento dos interesses públicos quando comparamos com nações em maior grau de desenvolvimento e do próprio processo civilizatório. Salvo desconhecimento da nossa parte, nesses países as jurisprudências e legalidades firmadas no campo do Direito Público estariam mais avançadas e expandidas para respaldar as autonomias gerenciais e contratos de metas com qualidade, sem necessidade de valer-se, para tanto, de instrumentos legais do campo do Direito Privado, mesmo que sob controle público. Por outro lado, o Direito Privado não é por definição área jurídico-legal destinada exclusivamente a respaldar o mercado e menos ainda sua depredação da coisa pública (res-pública); sua abrangência vai muito além do mercado, incluindo entidades privadas sem fins lucrativos que atendem o interesse público e social, e também, toda a dinâmica e a vida da sociedade civil, e nesta abrangência, sem a ativa participação da sociedade civil na formulação e controle das políticas públicas de Estado, não há construção do Estado democrático. Nas sociedades mais desenvolvidas são usuais expressões como ‘Estado regulador’, ‘Estado contratante’ e ‘Estado negociador’, qualquer uma delas significando um Estado capaz de, quando for o caso, se valer de procedimentos do direito privado no que tange a garantia, rapidez e qualidade de resultados à sociedade, avançando sua finalidade pública por meio de entidades estatais autônomas sob controle público e social. O AVANÇO GERENCIAL, A MUDANÇA DO MODELO E A RETOMADA DA REFORMA DO ESTADO ‘SUS’ Nesta última parte, é oportuno lembrar que: a) os avanços pontuais no campo administrativo e normativo da gestão pública não evoluem e nem mesmo se consolidam caso não assumidos e respaldados pelo conjunto dos gestores, trabalhadores de saúde e, principalmente, pela população usuária e suas entidades representativas. Há penosos exemplos no SUS, como: descumprindo a exigência de Planos de cargos, carreiras e salários (PCCS) no art. 4º da Lei n. 8142/90 com a desastrosa precarização da gestão do trabalho e dos trabalhadores de saúde, ou descumprindo os art. 35 e 36 da Lei n. 8080/90, com a fragmentação dos repasses federais em mais de 130 ‘mini-repasses’, ou descumprindo importantes pactuações expressas na NOB-96 e na NOAS, com as portarias normativas ministeriais, que chegaram a oito por dia útil em 2001/2002, tudo isso alertando para a necessidade da maior lucidez e competência estratégica na implantação e implementação de cada avanço programático ou gerencial do SUS; e b) a autonomia gerencial das unidades prestadoras mais complexas de serviços e respectivos contratos de metas de produção com qualidade são realizadas sob variadas modalidades legais e institucionais, em regra, nos sistemas públicos de saúde de países mais avançados e respaldados pela sociedade ou que estejam em estágios mais avançados da sua construção, avançando o próprio caráter público. Para nós, um desafio inabdicável, mas com os cuidados também inabdicáveis. Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 30, n. 72, p. 120-128, jan./abr. 2006 128 SANTOS, N. R. • A reforma do Estado ‘SUS’ e a proposta das fundações públicas ou estatais Por final, é necessário reconhecer que as forças econômicas sociais e políticas pela construção do SUS permanecem contra-hegemônicas perante aquelas que vêm predominando em nossas políticas públicas de Estado desde 1990, mas com potência para resistir no geral e avançar no pontual, avanço este sob os riscos antes exemplificados. Se houver disposição dos gestores públicos, das entidades dos usuários, dos trabalhadores de saúde e dos prestadores de serviços, de reconhecer e enfrentar articuladamente os fatores desses riscos, as fundações públicas ou estatais poderão, ao contrário de ser cooptadas pelo modelo da oferta, vir a ser ‘o fio da meada da retomada da reforma do Estado SUS’. Saúde em Debate, Rio de Janeiro , v. 30, n. 72, p. 129-138, jan./abr. 2006.

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