
Juçara Azevedo de Carvalho*
Não é de hoje que o ser humano, dito “louco”, é alvo de grande interesse por parte dos estudiosos - não só na área da saúde - sendo inúmeras as pesquisas, interpretações e conclusões a respeito daqueles que adentram as portas do desconhecido, desafiando a ciência e conduzindo a sociedade a uma profunda reflexão sobre o mistério de ser humano. De fato, o tema é tão relevante e abrangente que o presente ensaio representa um modesto apontamento de alguns aspectos que englobam a delicada questão do cidadão que sofre de distúrbios psíquicos. Ressaltamos que para analisar um tema de tal dimensão faz-se necessária a edição de uma série de artigos a fim de poder destacar seus pontos fundamentais e trazer cada vez mais esclarecimentos à sociedade sobre a realidade do tratamento dispensado ao doente mental em nosso país.
A “loucura” na visão da sociedade
No mar, tanta tormenta e tanto dano,tantas vezes a morte apercebida;Na Terra tanta guerra, tanto engano,tanta necessidade aborrecida!Onde pode acolher-se um fraco humano?Onde terá segura a curta vida,Que não se arme e se indigne o céu serenoContra um bicho-da-terra tão pequeno?
Luís de Camões, Os Lusíadas
Nos primórdios da civilização, as sociedades consideravam os indivíduos com transtornos mentais como “emissários da divindade”. Platão, há quase dois mil e quinhentos anos, afirmara acreditar em uma espécie de “loucura divina” como base fundamental de toda criatividade. Desde a antiga Mesopotâmia e do Egito antigo, entre os hebreus e os persas, a “loucura” era concebida como condição de proximidade com o sublime. Na Idade Média a existência da doença mental passa a ser atribuída a espíritos maus, que se apossavam das pessoas ou as atormentavam e, por isso, tinham que ser exorcizadas ou isoladas do convívio com a sociedade. Nessa época a loucura ainda não era vinculada a uma questão científica ou médica. Posteriormente, surgiu a necessidade de um controle social nos grandes centros urbanos que começavam a surgir, e os asilos nasceram a partir daí. As grandes instituições faziam o recolhimento de pessoas desvalidas que, em um primeiro momento, não tinham exatamente problemas mentais: os mendigos, leprosos, tuberculosos, fisicamente inválidos, ou seja, pessoas extremamente pobres e que ameaçavam, segundo as classes dominantes, o equilíbrio social. Tais asilos funcionavam como uma espécie de depósitos do que se considerava “lixo humano”.O médico Philippe Pinel, na França do final do século XVIII, logo após a Revolução, passou a discriminar os casos sociais das anomalias mentais e criou o Tratamento Moral, primeiro método terapêutico para a loucura na modernidade, baseado em confinamentos, sangrias e purgativos, consagrando assim o hospital psiquiátrico (hospício, ou manicômio) como o destino social dos loucos. Desde então, há a busca de uma causa biológica para a loucura a fim de tornar convincente sua inserção no campo das Ciências Naturais, na Medicina.Em 1934, o Decreto-Lei nº 24.559, dispensou o tratamento ao doente mental como caso de polícia e de ordem pública, permitindo a internação por meio de mera requisição da autoridade policial. Em 1940, com o Código Penal e o Código de Processo Penal, estabelece-se o conceito de periculosidade e recomenda-se o recolhimento do doente mental ao manicômio. Ressalte-se que não há ênfase na recuperação e no tratamento dos indivíduos, o Estado só os segrega. O modelo assistencial psiquiátrico caracteriza-se então pelo desrespeito aos Direitos Humanos, tornando-se ícone, emblema da exclusão e seqüestro da cidadania, os hospitais psiquiátricos.Na década de 50, a Organização Mundial da Saúde (OMS) recomendou o “investimento em ações de saúde mental” incorporando assim a assistência psiquiátrica à Saúde Pública e constituindo a Psiquiatria Comunitária.Com relação à visão tanto social quanto científica da loucura cumpre ressaltar que durante o século XX inúmeros estudos começaram a investigar uma loucura “diferente”: a do gênio. A cada dia aumentam as evidências científicas de que poder criativo e doença mental andam de fato muito próximos. Uma breve visita aos livros de história nos mostra como é tênue a linha que separa a loucura da genialidade. “Muitas pessoas já me caracterizaram como louco”, escreveu certa vez Edgar Allan Poe (1809-1849). “Resta saber se a loucura não representa, talvez, a forma mais elevada de inteligência.” Uma lista significativa de homens célebres parece confirmar este ponto de vista defendido desde Platão. Vincent van Gogh, Paul Gauguin, Lord Byron, Liev Tolstói, Serguei Rachmaninov, Piotr Ilitch Tchaikówski, Robert Schumann, Friedrich Nietzsche, Hölderling, Kleist, Eduard Munch, Pablo Picasso, são alguns desses exemplos. O impressionante poder criativo de todos eles caminhava lado a lado com uma instabilidade psíquica claramente dotada de traços patológicos. Variações extremas de humor, manias, fixações, dependência de álcool ou drogas atormentaram a vida de muitas mentes brilhantes. Esta seria a “loucura do gênio”. Mas, falemos de uma outra classe de loucura.
A “loucura do cidadão comum”
“Fui internado ontemNa cabine cento e trêsDo hospício do Engenho de DentroSó comigo tinham dez Estou doente do peitoEstou doente do coraçãoA minha cama já virou leitoDisseram que eu perdi a razãoEstou maluco da idéiaGuiando o carro na contra-mãoSaí do palco fui pra platéiaSaí do quarto fui pro porão.”
(Sérgio Sampaio, do disco “Claro”, de Luiz Melodia)
Segundo representantes do Ministério da Saúde, hoje, cerca de 3 a 5% da população brasileira precisam de assistência psiquiátrica intensiva, ou seja, quase 5 milhões de pessoas. Incluem-se aí esquizofrenias, doenças psicóticas, neuroses graves, demência, alcoolismos, dependência de drogas, problemas da infância com distúrbios, síndrome do pânico, o transtorno bipolar, a esquizofrenia, depressão e outros. Dos dez principais males que afetam a população mundial de 15 a 44 anos, quatro estão associados a distúrbios mentais. Estima-se em 2 milhões o número de novos casos de depressão, no mundo, a cada ano. Cerca de 330 milhões de pessoas sofrem de algum tipo de distúrbio mental. Segundo a Organização Mundial de Saúde – OMS - em 1996, 120 mihões de pessoas sofriam de alcoolismo no mundo e 103 mil morreram por motivos relacionados à doença. Calcula-se que a depressão afeta 20% da população mundial. A OMS estima que os distúrbios de humor, incluindo a depressão, devem afetar cerca de 340 milhões de pessoas nos próximos anos. No ano 2020, segundo a OMS, a depressão será o principal distúrbio mental a atingir a população dos países em desenvolvimento.
Infelizmente, a psiquiatria ainda não encontrou uma medicação para a cura da doença mental, uma vez que os medicamentos podem reprimir os sintomas e até sustá-los, sem, no entanto, chegar nas causas da mesma. Sabe-se, hoje, que as causas das doenças mentais são multi-fatoriais. Conforme esclarece o médico psiquiatra Julius Martins Teixeira, isso significa que as relações que o homem estabelece podem interferir em sua psique. “Por exemplo” - diz ele – “podemos citar a síndrome do estresse pós-traumático, com possibilidade de aparecer em uma pessoa que se submete a uma situação de estresse permanente e contínuo, ao longo da sua vida, sem que haja perspectiva de solução, gerando pânico, medo e outros tipos de neuroses, psicoses, alcoolismo, dependência a drogas, etc. As situações geradoras de estresses pós-traumáticos, como a questão da insegurança econômica da população, violência, falta de perspectiva profissional e desemprego, podem causar todo um desequilíbrio na estrutura de vida da pessoa, tendo grande chance de desenvolver muitos tipos de doenças orgânicas como úlceras gástricas, hipertensão, diabetes, e sobretudo, as mentais. Obviamente, isso não quer dizer que todos enlouquecerão, mas que, nas atuais circunstâncias de vida, a pressão é grande e muitos estão sofrendo graves conseqüências psíquicas. A angústia existencial, tão presente no nosso tempo, pode levar uma pessoa à loucura”.
O quantitativo de hospitais psiquiátricos no Brasil era nenhum em 1852. Em 1961 já existiam 54 públicos e 81 privados, totalizando 135 contra acanhados 17 ambulatórios de psiquiatria em todo o território nacional, conforme dados do Ministério da Saúde. Francisco D. M. de Moura Neto, com base em dados do IBGE de 1983, informa que o Brasil possuía 427 hospitais psiquiátricos, totalizando 106.605 leitos, dos quais 40.708 localizados no Estado de São Paulo, com 163 hospitais. Segundo levantamento feito em 1981, 80% da população internada tinha, já naquela época, mais de seis meses de internação. Lentamente, a partir da redemocratização do país e início da Reforma Sanitária e Reforma Psiquiátrica começou a diminuir o ritmo da escalada de hospitais e leitos psiquiátricos contratados. Em 1991 refluiu para 54 públicos e 259 privados e 88.000 leitos. Em 1996, eram 72.514 leitos e em julho de 2001 caiu para 66.000 leitos.Em Janeiro de 2004 o Ministério da Saúde publicou a Portaria MS/Nº 0052, 20/01/2004, que instituiu o Programa Anual de Reestruturação da Assistência Psiquiátrica Hospitalar no SUS – 2004, visando permitir uma transição adequada do modelo assistencial para a assistência psiquiátrica, definindo nova classificação dos hospitais psiquiátricos, baseada no número de leitos contratados/conveniados ao SUS, com novos valores de remuneração das diárias hospitalares, nas quais estão incorporados o incentivo de qualificação do atendimento prestado, aferido pelo PNASH/Psiquiatria - Programa Nacional de Avaliação dos Hospitais Psiquiátricos, e também o incentivo pela redução dos leitos. Apesar da redução de cerca de 37.000 leitos de internação psiquiátrica desde a década de 1970 e criação de aproximadamente 266 Serviços Substitutivos, o modelo tradicional ainda prevalece. Este grupo de morbidade constitui o 4º maior nos gastos do SUS, tendo consumido, no ano de 2001, aproximadamente R$ 470 milhões, sendo que apenas 10% deste valor são despendidos com os serviços substitutivos, sendo os restantes 90% ainda destinados ao financiamento das internações.Dados do Ministério da Saúde de agosto de 2004 indicavam existir, em todo o país, 220 Serviços Residenciais Terapêuticos - SRT (nos quais moram cerca de 2 mil pessoas) e 546 Centros de Atenção Psicossocial - CAPS, dos quais 64 especificamente para o tratamento de dependentes de álcool e drogas e 41 voltados para crianças e adolescentes. O número de atendimentos nos CAPS, que em 2002 foi de 389 mil, em 2003 chegou a 3,7 milhões - quase dez vezes maior!Conforme dados do Cadastro Nacional de Estabelecimentos de Saúde - CNES, extraídos em maio de 2004, revelam que ainda existem no Brasil 55.792 leitos de psiquiatria, dos quais 7.660 (13,73%) sem vinculação com o SUS e 48.132 (86,27%) vinculados ao SUS. Em 2005, a meta era reduzir mais 3,5 mil leitos. Hoje, segundo a mesma fonte, atualizada em 24/09/2007, o número de leitos em psiquiatria é 53.485, sendo 44.182 vinculados ao sus e 9.303 não vinculados. e, em saúde mental: 2.597 leitos, sendo 2.260 vinculados com o sus e 337 não vinculados. Pretende-se que o dinheiro usado na manutenção dos leitos psiquiátricos desativados seja investido na rede extra-hospitalar, além dos ambulatórios e na atenção básica, especialmente o Programa Saúde da Família (PSF).Acredita-se que, dos leitos de psiquiatria existentes no país, aproximadamente 20 mil estão ocupados por pacientes - moradores: pessoas completamente abandonadas pela família e pela sociedade, sem nenhuma perspectiva de vida. Por outro lado, pelo menos 15 mil deles poderiam retornar imediatamente ao convívio social. Cada um desses internos representa, individualmente, em termos de custo ao Estado, cerca de R$ 1.000,00 por mês, repassados diretamente para essas instituições asilares. Esta realidade vem sendo alvo de denúncias sistemáticas e bem documentadas.
A indústria da loucura
Não nos surpreendemos com vosso despreparo diante de uma tarefa para a qual só existem uns poucos predestinados. No entanto nos rebelamos contra o direito concedido a homens - limitados ou não - de sacramentar com o encarceramento perpétuo suas investigações no domínio do espírito’.A. Artaud (carta aos médicos-chefes dos manicômios)
Ao longo do século XX, com o advento da psicanálise, os hospitais psiquiátricos que se alastraram pelo mundo, longe de trazer a cura aos doentes, além de servirem de depósitos de “lixo humano” criaram a chamada “indústria da loucura”. É fato comprovado, que o hospital psiquiátrico, tal como concebido, nada contribui para a recuperação do paciente ou sua reintegração social. A instituição assumiu características exclusivamente asilares; no manicômio se entra e lá se permanece. Tornou-se evidente a crueldade e o mercantilismo em prol dos interesses pessoais de uma camada entre os profissionais de alguns segmentos da sociedade, ávida de lucros. O doente se transformou em mercadoria e a sua doença em fonte de lucro, perpetuando a manutenção de um sistema assistencial que, na realidade, foi criado para esta finalidade lucrativa, e não para recuperar sua saúde. É sabido que esses hospitais funcionam em precárias condições, na mais das vezes, sem fiscalização sequer dos órgãos sanitários responsáveis pelo seu gerenciamento, constituindo-se em espaço de violência e de destruição institucionalizados. Embora legitimados e reconhecidos pelo Estado como “espaços terapêuticos”, servem apenas para gerar riqueza para os donos desses hospitais, principalmente nas décadas de 60 e 70, do século passado, quando o doente mental se tornou importante instrumento de lucro para o setor privado de prestação de serviços à saúde, gerando a “indústria da loucura”. Esta se acentuou no apogeu da ditadura militar, quando o governo optou por terceirizar a assistência psiquiátrica, ou seja, deixou de conceder diretamente a assistência através dos hospitais públicos. Fomentou-se, nessa época, o surgimento das “Clínicas de Repouso”, eufemismo dado aos hospitais psiquiátricos. Adotaram-se métodos de busca e internamento de pessoas a tal ponto que ambulâncias percorriam as cidades, especialmente após clássicos de futebol e carnaval, identificando indivíduos que portassem a carteira do INPS e que estivessem dormindo embriagados na via pública, os quais eram levados e internados com o diagnóstico de “psicose alcoólica”! Note-se que eram pessoas produtivas e socialmente inseridas, uma vez que portavam carteira profissional, mas internadas sob o discurso preventista da recém criada e rendosa indústria da loucura.
As empresas de saúde mental, que predominam até hoje, são movidas pela lógica do lucro máximo. Conforme alerta o psiquiatra Julius Martins Teixeira, o desemprego, a miséria e a fome enchem os hospícios. Toda a pobreza extrema que atinge a população, dentro do modelo degenerado e cruel que assegura o domínio da oligarquia que nada produz de útil, arrasta a psiquiatria para o âmbito dos grandes negócios, ficando à mercê de uma casta que é dona dos hospitais e manicômios. Se por um lado, ao longo dos anos 70/80, a indústria da loucura crescia e passava a ser hegemônica no panorama da assistência psiquiátrica, por outro lado os hospitais públicos começavam a ser abandonados e as condições de vida das pessoas dentro deles pioraram muito. Os asilos pareciam, cada vez mais, campos nazistas de concentração. Resumindo, o sistema de exploração, a espoliação do país pelos monopólios, a competição exacerbada, o individualismo, a falta de horizontes, a desonestidade e o desafeto, enlouquecem ricos e pobres, porque causam a miséria material e também a humana, gerando todo tipo de frustrações, enganos e desesperanças. Em outras palavras, o próprio sistema leva à loucura e dela se alimenta. Esta é a “loucura dos poderosos”.
O Movimento Antimanicomial
O Movimento Antimanicomial se refere a um processo mais ou menos organizado de transformação dos Serviços Psiquiátricos, derivado de uma série de eventos políticos nacionais e internacionais. Na sua origem, esse movimento está ligado à Reforma Sanitária Brasileira da qual resultou a criação do Sistema Unico de Saúde (SUS); está ligado também às experiências de desinstitucionalização da Psiquiatria desenvolvidas em Gorizia e em Trieste, na Itália, por Franco Basaglia nos anos 60.No âmbito dessa discussão, foram incluídos temas como o da segregação, da violência e dos maus tratos aos pacientes que, sem nenhuma forma de defesa, eram destituídos de cidadania. Influenciados pelos movimentos de reforma da psiquiatria que aconteciam na Europa e nos Estados Unidos, diversos setores da sociedade civil foram mobilizados em favor da luta pelos direitos dos pacientes. A reflexão sobre a loucura passou a integrar o quadro de discussões das universidades, dos meios intelectuais e dos profissionais de instituições psiquiátricas e as práticas cruéis e justificativas correspondentes passaram a ser duramente criticadas. Iniciava a luta contra o mercantilismo na saúde mental; a luta pela humanização dos hospitais psiquiátricos, buscando a reversão do modelo asilar caótico, segregador e dissocializante; e a luta por melhores condições de trabalho para os profissionais de saúde mental, tanto no que se refere às melhorias econômicas quanto às questões ligadas à autonomia científica e profissional. É fato que o resgate da cidadania das pessoas portadoras de sofrimento mental não se exauriu com a extinção, pura e simples, das instituições asilares. Mas, é importante destacar a necessidade de uma mudança de visão do portador de sofrimento psíquico, não mais como um indivíduo perigoso, inválido e improdutivo. Superar o paradigma da exclusão para, com sentimento solidário e de quem busca uma sociedade justa e fraterna, oferecer ao doente um tratamento digno, que valorize suas potencialidades e diminua seu sofrimento.No entanto, essa reforma, no Brasil, está atrelada a uma necessidade de ajuste econômico, o que, na verdade, significa não mexer nos interesses dos “poderosos” indiferentes à saúde da população. Por todo o exposto, o Ministério Público vem trazendo à tona reflexões com relação ao Direito Sanitário, a Reforma Psiquiátrica, promovendo uma visão crítica da “Reorientação do Modelo Assistencial” de Saúde Mental, na condição de órgão fiscalizador dos serviços de relevância pública e defensor dos interesses da sociedade.
Justiça para os excluídos: a função do Ministério Público
Mais um dos grandes obstáculos para os portadores de sofrimento psíquico é o problema que aflige a população carente em geral e não somente os ditos loucos: a falta do acesso à Justiça. Também contribui para o retardo na implementação da reforma o desconhecimento da lei e as propostas nela inseridas. Mesmo na área de saúde pública e até na jurídica ainda há operadores que a desconhecem. Que se dirá então da comunidade em geral.Por isso, o Ministério Público foi incumbido , pela Constituição, de cobrar dos poderes públicos e dos serviços de relevância pública o efetivo respeito aos direitos do cidadão (CF, art. 129, II), e sendo as ações e serviços de saúde, públicas ou privadas, serviços de relevância pública (CF, art. 197), está o Ministério Público autorizado a promover todas as medidas necessárias à garantia dos direitos previstos, também na Lei 10.216/2001. Esta lei chama a atenção de todos, inclusive do Ministério Público, para os direitos da “pessoa portadora de transtornos mentais” (ter acesso ao melhor tratamento, ser tratado com humanidade,visando a alcançar sua recuperação, ser protegido contra qualquer forma de abuso, ter garantido o sigilo nas informações prestadas, ter direito à presença médica para esclarecer a necessidade ou não de sua internação involuntária, ter livre acesso aos meios de comunicação disponíveis, receber o maior número de informações a respeito de sua doença e tratamento, ser tratado em ambiente terapêutico pelos meios menos invasivos possíveis e ser tratado, preferencialmente, em serviços comunitários de saúde mental), enfatizando que a internação, em qualquer de suas modalidades, só será indicada quando os recursos extra-hospitalares se mostrarem insuficientes. Houve uma reformulação do modelo de Atenção à Saúde Mental, transferido o foco do tratamento que se concentrava na instituição hospitalar, para uma Rede de Atenção Psicossocial, estruturada em unidades de serviços comunitários e abertos.Além disso, ao Ministério Público se incumbiu relevante papel pois passou a ser o destinatário de comunicações das internações involuntárias e também fiscalizar as internações compulsórias, isto é, medidas de segurança, a legalidade e dignidade das instalações, impedindo que se converta em “prisão perpétua”, e com o concurso de familiares, responsáveis e curadores, promover todas as modalidades de garantia aos direitos dos internados em geral, participando da formulação de políticas públicas e de instituições voltadas para a reabilitação psicossocial, fomentando a criação de serviços substitutivos ao manicômio.A internação psiquiátrica, segundo a concepção da Lei 10.216, deve ser encarada como exceção no tratamento e as internações involuntárias representam uma exceção ainda maior porque a Constituição Federal estabelece, dentre os direitos e garantias fundamentais do cidadão, que ninguém pode ser privado da sua liberdade e de seus bens sem o devido processo legal. O Judiciário tem que se manifestar. Inclusive, o Código Penal considera crime de cárcere privado a privação da liberdade de alguém mediante a internação da vítima em casa de saúde ou hospital. Portanto, quando o médico determina uma internação sem a concordância do paciente não está, a princípio, agindo em conformidade com o referido comando constitucional. Nada mais apropriado, como garantia para o paciente, para o médico e para a sociedade, que um ato tão sério como este (determinação de internação involuntária) esteja submetido a controles. Surge aí o Ministério Público como destinatário da comunicação de tais internações.O advento da Lei 10.216/01 obriga os operadores do direito em geral e o Ministério Público brasileiro em particular a reverem toda a sua concepção acerca do tratamento reservado pelo Direito para o paciente psiquiátrico. Até então, o centro das atenções, quando se tratava desse tema, era a interdição e a curatela, atos que visavam, sobretudo, a proteção do patrimônio do interdito. Sua pessoa, sua cidadania e todos os direitos dela advindos ficavam relegados a plano secundário. O Ministério Público, inserido nesse contexto jurídico, atuava, basicamente, como fiscal da lei nos processos de interdição ou em qualquer outro em que havia interesse de interdito, ou então requeria a interdição caso não houvesse familiar do doente mental que pudesse fazê-lo. Deveria, ainda, fiscalizar os locais de internação. A lei citada renova essa concepção, mostrando que o paciente psiquiátrico é sim um sujeito de direitos, merecedor, por sua especial condição, de toda atenção por parte do Estado e do órgão estatal eleito constitucionalmente como defensor dos mais importantes direitos da cidadania, o Ministério Público. Para o fortalecimento da cidadania é fundamental aos operadores do direito e membros do Ministério Público reverem seus conceitos e sua base doutrinária. E nada melhor que iniciem esse processo dialogando com aqueles que têm o conhecimento técnico e colocam a “mão na massa” no tema da saúde mental, ou sejam, os usuários do sistema: médicos, enfermeiros, psicólogos, assistentes sociais, familiares e pacientes. Tal iniciativa propiciará a atuação destes agentes sociais que já têm bagagem na tutela de tantos outros interesses da sociedade, podendo contribuir muito, na proporção do conhecimento do Direito Sanitário, na implementação das garantias dos que têm sofrimento psíquico, com o concurso imprescindível dos familiares e da própria sociedade na discussão e a elaboração de propostas e na luta pelo reconhecimento pleno da cidadania dessa parcela da sociedade.
A sociedade trabalhando pela saúde
O descaso com o portador de sofrimento psíquico é diretamente proporcional à debilidade do conceito de cidadania vigente em nosso corpo social geral. É preciso romper, de uma vez por todas, com o esquema montado na área da saúde a fim de impedir a continuidade da política de dominação. Conforme esclarece o Promotor de Justiça Renoir da Silva Cunha em seu trabalho desenvolvido na Faculdade de Direito da Universidade de Brasília, para o curso de Especialização em Direito Sanitário para membros do Ministério Público, é preciso enfrentar essa situação de forma mais efetiva tanto por meio da Lei de Reforma Psiquiátrica bem como todos os dispositivos que estiverem ao nosso alcance no sentido de avançarmos na luta antimanicomial, sem que isso implique no retrocesso da qualidade, humanização, acesso e controle social, indicativo de sua organicidade para com a construção de um Sistema Único de Saúde, público, de amplo acesso e eficaz.Separar os mitos e preconceitos e evitar os rótulos, que sempre envolveram a doença mental, da realidade, embora não solucionem de todo o problema, constitui um grande passo em direção ao resgate proposto.Quanto à periculosidade, esta não é própria do transtorno mental, mas de alguns casos somente. Alguns portadores de sofrimento psíquico podem cometer crimes graves, mas também é verdade que os tidos como normais cometem um número bem maior dessas infrações. O Paciente psiquiátrico pode constituir perigo real para a família e para a comunidade. Esta noção é bastante conhecida. O que ainda não foi suficientemente esclarecido e divulgado é o tanto que esse perigo é imaginário, e o tanto que o louco é agredido pela sociedade que nele vê refletida sua própria agressividade. Então o problema é o posicionamento da sociedade, da família e do Estado em relação ao doente mental. Nossa tendência de excluir, segregar e punir o diferente, pelo simples fato de ser diferente do estabelecido nas pautas sociais, e não pelos efetivos danos que possa causar ao corpo social. O paradigma a ser transposto não é o manicômio, mas a exclusão, porque acabar, pura e simplesmente, com os hospitais psiquiátricos não resgata a cidadania e a dignidade do portador de sofrimento psíquico. Vencer a exclusão exige uma adaptação geral às formas de se encarar o homem e o mundo. A vida em sociedade requer, cada vez mais, o estabelecimento de regras claras de convivência e a integração de todos os indivíduos na formulação e emprego dessas regras, fortalecendo-se, assim, a cidadania em geral.Os Serviços Territoriais de Atenção Diária em Saúde Mental, de base comunitária (Centros e Núcleos de Atenção Psicossocial – CAPS/NAPS), as Oficinas Terapêuticas, as Oficinas de Capacitação/Produção, os Ambulatórios de Saúde Mental, as Equipes de Saúde Mental em Hospitais Gerais, as Moradias Terapêuticas, os Centros de Convivência, o atendimento ambulatorial, o hospital-dia e os serviços de urgência permitem o acompanhamento da evolução do paciente e a intervenção da equipe de saúde mental sem retirá-lo do convívio familiar e de suas ocupações habituais. O convívio e a interação com a família e a comunidade evitam a perda dos vínculos, estes essenciais para a recuperação, que certamente ocorre na internação tradicional. O tratamento em unidades psiquiátricas de hospitais gerais, propicia uma atenção integral à saúde do paciente, pois é muito mais fácil dotar o hospital geral de assistência psiquiátrica adequada do que aparelhar o hospital psiquiátrico para atendimento médico complexo. Os centros de convivência, as moradias protegidas, as cooperativas de trabalho que impliquem constituição de empresas sociais que garantam trabalho e remuneração, como elementos integradores e organizadores dos sujeitos na vida societária, são auxiliares primorosos para que se busque a eqüidade nas estruturas assistenciais disponíveis, valorizando o paciente e quebrando o estigma de representar apenas um peso morto para a família e para a comunidade.Significativo avanço na consolidação dos direitos das pessoas portadoras de sofrimento mental se deu com a legislação recentemente obtida, declarando sua cidadania mediante o reconhecimento dos seus direitos e explicitando as obrigações do Estado. Porém, é necessário que sociedade, família e Estado, conjuguem esforços para efetivar essas garantias, por meio do fortalecimento do controle social das ações e serviços de saúde, da municipalização do atendimento tornando-o cada vez mais próximo do usuário, da criação da rede substitutiva ao hospital psiquiátrico, da articulação e qualificação constante de profissionais de saúde e profissionais do Direito que busquem facilitar a vida do usuário dos serviços e de seus familiares. É verdade que a lei, por si, não altera a realidade, mas permite o debate, o lançamento de idéias e propostas de solução para o problema.
*Juçara Azevedo de CarvalhoPromotora de Justiça titular da 7.ª Promotoria de Justiça da Cidadania da Comarca de Salvador, Estado da Bahia, atualmente em exercício na 3.ª Promotoria de Justiça Criminal da Capital e membro do MPD