terça-feira, 20 de maio de 2008

Violência como um problema de saúde pública: da teoria à prática.


09/05/2008

Por Silvio Fernandes da Silva (*) O título acima é o da mesa-redonda em que participei no Seminário Nacional do CONASS, Violência uma epidemia silenciosa, ocorrido nos dias 29 e 30 de abril de 2008 em Porto Alegre, representando o Cebes. Para abordar o tema proposto torna-se necessário previamente posicionar-se sobre o conceito de violência e suas causas. Violência tem sido associada frequentemente ao crescimento da morbi-mortalidade por causas externas. Essa associação é compreensível em virtude do número elevado de mortes no trânsito – situação na qual o Brasil ocupa o segundo lugar no mundo por número de veículos – e especialmente pelos números assustadores de homicídios de jovens nas cidades de grande e médio porte. Esta é uma dimensão importante da violência, mas não me parece aconselhável reduzi-la a esse componente, como frequentemente ocorre com o senso comum, sob risco de associá-la apenas à criminalidade e políticas de segurança pública. O conceito de violência é maior do que o ligado à crime, agressão, homicídio e trânsito. A violência se expressa em todas as formas de exploração e dominação, desde as ligadas a fatores econômicos, que levam à exclusão e desigualdade social, até os inerentes as relações que acontecem no cotidiano, família, trabalho e outras formas de convívio social. Além da natureza complexa, a violência é multicausal. Seria um equívoco atribuí-la de forma exclusiva à desigualdade social, assim como também o seria supervalorizar unicamente os aspectos culturais ou biológicos ou de convívio social. Considerando as diferentes linhas de pesquisa e publicações de especialistas sobre as causas da violência, penso que três são as mais importantes na explicação do seu crescimento no Brasil e em países da América Latina, nas últimas décadas. A primeira diz respeito à visibilidade que assumiu a desigualdade social em decorrência da globalização e das formas de comunicação contemporânea. A explicitação das diferenças entre os que têm e os que não têm, entre os que podem e os que não podem consumir em um mundo no qual os valores neoliberais predominam, estimulam frustrações e sentimentos de revolta. A segunda tem a ver com a ética vigente na sociedade e à degradação de valores morais relacionados ao respeito aos direitos do outro. Aparentemente cresce a concepção de que não é errado “levar vantagem em tudo”. Cresce a crença de que essa regra faz parte do jogo social, afinal “todos fazem isso”. Diz respeito também à facilidade de, ultrapassando os limites da ética e da moral e entrando no campo da legalidade e honestidade, transgredir em decorrência da sensação da impunidade vigente. A terceira causa situa-se no campo das políticas públicas. Políticas sociais ineficientes e ineficazes na efetivação dos direitos de cidadania e ações inconsistentes e de pouco impacto na área de segurança pública são fatores importantes para o crescimento da violência. Nesta última, não apenas na punição da criminalidade, mas também em sua inibição e na recuperação dos transgressores. Na América Latina, o crescimento da violência nas últimas décadas guarda relação direta com a incapacidade dos Estados nacionais em reduzir a desigualdade social e implementar políticas sociais de qualidade. As medidas de ajuste fiscal neoliberal obedeceram um padrão muito similar nos países do continente a partir das décadas de 1980 e 1990. Os ajustes macroeconômicos diminuíram a capacidade dos países em desenvolver sistemas de proteção social e levaram, em muitos países, à redução ainda maior dos gastos públicos em saúde, educação, habitação popular, assistência social, incentivos à população trabalhadora de baixa renda, entre outros, e aumentou de forma significativa a drenagem de recursos Sul/Norte. Não foi por outro motivo que a América Latina se consolidou nas últimas décadas como o continente de maior desigualdade social do planeta, fato que contribui para ampliar as bases estruturais da violência social.
Passar da teoria à prática no enfrentamento da violência, conforme propõe o tema dessa mesa-redonda, é não desconsiderar essa dimensão estrutural e também implementar políticas públicas adequadas para reduzir sua incidência e amenizar seus efeitos. Nesse sentido a Reforma Sanitária brasileira constitui um excelente exemplo. A incorporação de saúde como um direito universal de cidadania na Constituição e a luta cotidiana para tornar realidade esse direito, resulta em ações concretas e práticas nas mais diferentes áreas, especialmente se considerarmos saúde da forma abrangente como propõe nossa reforma. Para ilustrar, que ações práticas podem ser consideradas mais efetivas na luta contra a violência do que a reforma psiquiátrica brasileira? Que violência se praticou − e ainda se pratica, agora felizmente menos − contra brasileiros em estado de sofrimento psíquico, estigmatizando-os, discriminando-os, institucionalizando-os em manicômios? Que ação concreta pode ser considerada mais adequada do que reinserir esse brasileiros em uma condição mais adequada de cidadania, lutando contra o estigma a que são submetidos, desinstitucionalizando-os e procurando favorecer sua reinserção social? Entre as políticas públicas de saúde que podem ser desenvolvidas contra a violência, pela necessidade de ser sucinto me refiro neste momento apenas ao desafio das gestões locais. Nos municípios é possível articular as forças sociais para otimizar as ações de prevenção da violência. Estímulo à cultura de paz, articulação intersetorial envolvendo educação, justiça e segurança pública, melhor regulação dos espaços urbanos reduzindo horário de funcionamento de bares e jogos de azar e vigilância e intervenção em áreas e populações de maior risco social constituem exemplos concretos. Nesse último tópico, a criação de equipamentos públicos e políticas específicas que acolham a população mais vulnerável, entre os quais crianças, mulheres, idosos e minorias sociais. Torna-se necessário o aperfeiçoamento das informações e a criação da vigilância epidemiológica de acidentes e violência e, para o desencadeamento das ações de saúde, é imprescindível que os gestores tenham um olhar abrangente sobre as causas da violência. Ilustro com um dado sobre o qual me deparei há algum tempo: crescimento da incidência de mortes e ferimentos por atropelamento de ciclistas e pedestres em vias rápidas da periferia da cidade. A maioria era de pessoas que retornavam do trabalho no centro da cidade, não sendo incomum algumas terem ingerido bebida alcoólica no trajeto para casa. Um olhar reduzido sobre esse achado pode atribuir à bebida e ao descuido o crescimento dos acidentes. Um olhar mais abrangente vai revelar a injusta ocupação do solo urbano que “empurra” a população mais pobre para uma periferia distante do seu local de trabalho associado à deficiência do transporte público, a falta de ciclovias e de rotas adequadas para pedestres, um inadequado controle de tráfego, entre outros, como fatores importantes de serem considerados. Para encerrar penso que a “epidemia da violência” é determinada por vários fatores e comporta, portanto, muitos desafios. Trazer esse tema para a agenda da saúde é uma estratégia importante, o primeiro passo no sentido de articular melhor as ações e aperfeiçoar as políticas públicas nessa área. Bibliografia MINAYO, Maria Cecília de Souza e SOUZA, Edinilsa Ramos (organizadoras). Violência sob o olhar da saúde: a infrapolítica da contemporaneidade brasileira. Rio de Janeiro, Editora Fiocruz, 2003. SILVA, Silvio Fernandes da. Crescimento da violência urbana: as grandes cidades estão diante de uma epidemia social? Divulgação em Saúde para Debate. Rio de Janeiro, v.30, p. 10-14, 2004. WAISELFISZ, Julio Jacobo. Mapa da violência dos municípios brasileiros. Brasília: Organização dos Estados Ibero-Americanos para a Educação, a Ciência e a Cultura, 2007.

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