
A brasileira que faz aborto é uma mulher casada, que já é mãe, trabalha fora e tem, em média, entre 20 e 29 anos. É católica e tem alguma escolaridade - completou ao menos os oito anos do ensino fundamental. A decisão pela interrupção da gravidez é tomada com o parceiro. Por se tratar de uma prática ilegal no País, ela opta por métodos caseiros, como ingestão de chás e ervas, misturados ao uso do misopostrol, medicamento de uso restrito cujo nome comercial é Cytotec. Apenas 2,5% das mulheres que abortaram ficaram grávidas ao terem uma relação eventual. A adolescente que opta pelo aborto também engravida dentro de uma relação estável. Decide com o namorado que vai colocar um término na gestação e, perto dos três meses de gravidez, usando os mesmos métodos da adulta, enraizados num conhecimento popular, aborta. São principalmente jovens entre 17 e 19 anos. Além disso, tendem a engravidar novamente após dois anos. O perfil da mulher que interrompe a gravidez foi traçado pela primeira vez em um levantamento em 2.135 pesquisas de campo feitas em universidades e publicadas em periódicos científicos nos últimos 20 anos. Mesmo assim, o perfil é incompleto, pois está baseado nos registros existentes, que são das mulheres que chegaram aos serviços públicos após usarem métodos abortivos. Desse modo, não inclui abortos feitos pelas mulheres de classes média e alta em clínicas e hospitais privados. O trabalho, obtido pelo Estado com exclusividade, foi realizado pela Universidade de Brasília (UnB) e pela Universidade Estadual do Rio (UERJ) e tem apoio do Ministério da Saúde e financiamento da Organização Pan-Americana de Saúde (Opas). "Os dados mostram que não é a mulher considerada leviana que aborta. É uma mulher comum, que vive uma relação estável e que já tem um filho", afirma uma das autoras do estudo, a antropóloga Débora Diniz, da UnB. "É depois de ser mãe, de saber o que é a maternidade, que ela decide com o parceiro pelo aborto. É uma decisão responsável e baseada na experiência", complementa. Débora explica que o objetivo da pesquisa foi justamente reunir todos os dados existentes sobre o aborto no Brasil, colhidos por pesquisadores das mais variadas vertentes, contrários e favoráveis à descriminação, para permitir que o tema seja debatido com base em fatos e não em suposições. "Muita gente opina sobre o aborto sem ter dados, com base apenas em crenças morais ou opiniões pessoais. É comum ouvir dizer, por exemplo, que a mulher que aborta se arrepende e sofre de problemas mentais. Isso não foi encontrado em nenhuma pesquisa", afirma. 1,5 milhão ao ano O número total de abortos feitos no País é outra questão analisada pelo trabalho. Estimativas conservadoras, baseadas nos registros do Sistema Único de Saúde (SUS), apontam para pelo menos 1,5 milhão de abortos todos os anos. Ela é feita levando em conta estudos médicos que mostram que a cada 100 mulheres que abortam de maneira insegura, 20 têm problemas e procuram o serviço público com dores, hemorragias ou infecções. Apesar de aceito pelos especialistas, e também pelo Ministério da Saúde, grupos religiosos tendem a questionar o número, dizendo que os dados do SUS não são tão confiáveis e que, portanto, o índice seria mais baixo. A pesquisa, no entanto, mostra o contrário. E dá indícios de que deve ocorrer, em média, pelo menos o dobro de abortos anuais no Brasil, levando em conta as mulheres pobres que recorrem ao SUS e as das classes média e alta que permanecem em silêncio no mundo privado. E o número não está baseado em estimativa, mas em pesquisas populacionais, feitas por amostragem estatística em várias regiões. Nesse caso, estudos mostraram que, na Região Norte, por exemplo, há um índice de 40 abortos para cada 100 mulheres em idade fértil. Para as regiões Sudeste e Sul esse índice fica em torno de 20 abortos para cada 100 mulheres. "É alto, mas muito mais próximo da realidade. Uma mulher pode omitir que fez um aborto, mas nunca diria que fez um quando não fez", explica a outra autora da pesquisa, a médica especializada em saúde pública Marilena Corrêa, da UERJ. Para se chegar a esses dados, costuma-se usar duas metodologias: uma na qual um entrevistador pergunta diretamente se a mulher já fez ou não um aborto e outra na qual a própria mulher recebe uma ficha, preenche anonimamente e coloca em uma urna. Prevenção Outro ponto do senso comum que o levantamento questiona é que a mulher que aborta engravidou por desconhecer ou não ter acesso aos métodos contraceptivos. De maneira geral, ela os usa ou já usou em algum momento. E as adultas e mais velhas o fazem muito mais do que as adolescentes. "Gravidez indesejada acontece em todas as classes sociais e por diversas razões, infelizmente", afirma o médico Thomas Gollop, especialista em medicina fetal da Universidade de São Paulo (USP). "Por isso, não resolve o argumento de que em vez de discutirmos o aborto, aumentar a oferta de métodos de contracepção resolveria o problema", afirma. O médico reafirma a importância da divulgação e aumento da oferta de métodos de planejamento familiar, mas ressalta que há uma condenação da mulher por ficar grávida sem planejar. "No Brasil, culturalmente olhamos para a mulher como irresponsável por seus atos, mas na verdade ela é responsável na maioria dos casos, inclusive quando opta por terminar a gravidez." A questão, coloca ele, não é ser favorável ou não à opção dela pelo aborto. "A questão está colocada de maneira equivocada. Ninguém é a favor do aborto", afirma. "Mas somos a favor de que essa mulher casada, mãe, que trabalha, deve ser presa por ter se submetido a um aborto?" Entrada do misopostrol substituiu a agulha de tricô A entrada do misopostrol, o famoso Cytotec, no mercado brasileiro a partir do início dos anos 90 mudou a forma como as mulheres abortam no País - colaborando, segundo as pesquisas, para a queda no número de mortes ocorridas no período, mas levando um contingente de mulheres a um comércio ilegal, semelhante ao de drogas. Foi com a difusão do medicamento nesse período que os métodos usados pelas mulheres de classes mais baixas até fim dos anos 1980, como agulhas de tricô ou objetos perfurantes, bebidas cáusticas e injeções, foram pouco a pouco abandonadas. Até mesmo as clínicas clandestinas, onde leigos atuavam, perderam espaço. O misoprostol entrou no mercado brasileiro em 1986 para tratamento de úlcera gástrica e até 1991 sua venda era permitida nas farmácias. Mesmo assim, foi o tempo suficiente para que, de alguma maneira, seu uso como substância abortiva fosse boca a boca sendo difundido entre as mulheres. Nos anos 1980, apenas 15% das mulheres atendidas em hospitais tinham usado algum medicamento para abortar. Em 1990, cerca de 76% delas usaram o misopostrol ou outro remédio cujo nome "não se lembravam". Pesquisa citada pelo levantamento mostra que no início dos anos 1990 o preço médio do misoprostol era de US$ 6, ao passo que um aborto em clínica privada custava US$ 144. Outra curiosidade é que hoje a aquisição do remédio é uma função masculina. São os maridos que compram o medicamento para as mulheres. A forma como eles adquirem não foi estudada, mas traficantes de anabolizantes e remédios para emagrecer, também de venda restrita, costumam contrabandear caixas do medicamento, muitas vezes pela internet. "É provavelmente hoje o método abortivo mais usado no País, apesar de não termos dados mais específicos de onde ele circula e como se compra", explica a médica Marilena Corrêa, da UERJ. "O uso do misopostrol é muito discutido. Sabe-se que ele, quando usado corretamente, não provoca riscos para a saúde das mulheres, elas não sofrem grandes hemorragias, mas quando usam sozinhas, e não abortam, existem discussões sobre riscos de danos ao feto", diz. A médica diz também que, além de estarem expostas ao mercado ilegal para adquirir o produto, as mulheres estão sujeitas a falsificações, que colocam suas vidas em risco. Atualmente, apenas hospitais podem adquirir legalmente o misopostrol. É comum usá-lo hoje para induzir partos naturais e ajudar a mulher a ter contrações. Mesmo com a mudança, o risco de mortalidade materna por causa de abortos provocados de maneira insegura continuam muito altos no Brasil. De acordo com a Organização Mundial da Saúde (OMS), o risco de morrer em um aborto nos países onde ele é permitido e feito por médicos é de 1 em 1 milhão. No Brasil, a proporção está em 1 para cada 100 mil casos - mil vezes mais alto. 'Eu respeito e peço para ser respeitada também' A secretária Ana Lúcia Maricato conta que fez um aborto aos 27 anos. Na época, morava com o marido num apartamento emprestado pelo sogro na zona norte de São Paulo e cuidava da filha, que estava com 6 anos. Tanto ela quanto o marido estavam empregados - ela num escritório e ele numa empresa automotiva. A relação seguia sem grandes percalços, mas ela afirma que não tinha vontade nem condições de ter outro filho. "Não dava", diz. "Descobri na sexta semana que estava grávida, fiquei triste porque já sabia que não teria." Ela conta que esperou o fim de semana e conversou com o marido, que também tinha dúvidas a respeito de um outro filho. Decidiram juntos pelo aborto. Poucas pessoas ficaram sabendo da experiência, por recato, privacidade e, principalmente, para não ter de se explicar para ninguém nem ouvir "lição de moral de quem não estava na minha pele". Pensaram em comprar um remédio pela internet e fazer em casa - ela diz que uma amiga próxima tinha feito isso, sabia como usar e tinha dado certo. Foi o marido quem a convenceu a ir para uma clínica particular, próxima a um grande hospital, onde outra conhecida tinha feito um aborto dois anos antes. Ela diz nem se lembrar de quanto pagou na época, há sete anos. "Meu marido ligou para mim, marcou um horário e fomos", conta. "Ele me levou, me atenderam bem. Acordei um pouco tonta e fui para casa no mesmo dia", diz ela. "Dormi bastante aquela noite, não senti dores, nem tive hemorragia. Cheguei a me sentir culpada por estar aliviada, mas era, na verdade, o que estava sentindo." 'É preciso ser realista' Ela conta a experiência com pesar, lamenta e sente por ter feito o que fez, mas diz que não se arrepende e que, hoje, diante de uma outra gravidez, faria a mesma coisa. "Amo minha filha, ser mãe é uma experiência muito importante, me transformou, mas é preciso ser realista e ver que não queríamos e não estávamos em condições de ter outra criança." Ana Lúcia tomava anticoncepcionais. "Esqueci alguns dias, me descuidei, acontece com todo casal", conta. Ela diz respeitar a opinião de quem a condenaria pelo fato, por entender que cada um deve agir de acordo com seus próprios valores, mas repete: "Eu respeito e peço para ser respeitada também."
Fonte: reportagens publicadas no jornal O Estado de S. Paulo, editoria Vida&, edição de 20/4/2008
Fonte: reportagens publicadas no jornal O Estado de S. Paulo, editoria Vida&, edição de 20/4/2008
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