sexta-feira, 18 de abril de 2008

Sobre crianças e epidemias.


Por Paula.


Contribuidores: Luiz Ricardo Leitão
Há episódios surreais nesta guerra santa contra o inseto da dengue, dignas até de uma aventura do incrível exército de Brancaleone

16/04/2008
Luiz Ricardo Leitão
No Rio de Janeiro, as crianças – sobretudo as mais pobres – são as maiores vítimas da dengue. Quando escrevo dengue, o grande vilão, por certo, está longe de ser o mosquito: as dezenas de pessoas mortas pela epidemia padeceram em realidade a incúria, a omissão e o descalabro dos poderes municipais, estaduais e federais, a começar pela péssima gestão do SUS na capital, onde o presunçoso alcaide ‘democrata’ (?!), o fanfarrão César Maia, prefere escrever blogs cibernéticos a estabelecer uma política de saúde pública compatível com as demandas de uma cidade histórica e geograficamente submetida a “fatalidades” mais do que previsíveis.
Há episódios surreais nesta guerra santa contra o inseto, dignas até de uma aventura do incrível exército de Brancaleone contra as pestes medievais. À falta dos mata- mosquitos (que o ex-ministro tucano, o sanguessuga Serra, houve por bem demitir), a Prefeitura contratou “agentes de saúde” e os enviou para a frente de batalha, à caça das larvas fatais. Todavia, como as verbas andam escassas no município (embora tenham sobrado recursos para as obras faraônicas do Pan), muitos soldados marcharam desarmados para o combate, isto é, sem ao menos dispor de repelente contra os mosquitos, e já na primeira batalha houve um enorme número de baixas na tropa dos trabalhadores, ainda que entre as ‘autoridades’ continuem todos incólumes, lépidos e faceiros.
As crianças morrem como insetos no Rio, mas são apenas retratos fugazes nas telas da TV. Vivem em bairros do subúrbio ou da Baixada, longe dos cartões postais da Zona Sul. Algumas eram até fotogênicas, mas como concorrer com a trágica e doentia novelaepidemia Isabella, que a mídia espetacular nos inocula a cada minuto? Embora tão dolorido quanto a morte de qualquer inocente, seu trágico destino tornou-se um folhetim que emissoras como a Globo exploram 24 horas por dia, como se fora um novo BBB em que as emoções reais e tangíveis valem bem mais que a razão.
À mercê da artilharia midiática, pais e fi lhos da classe média paulistana estão assustados. Contudo, enquanto a intelligentsia nacional denuncia a morbidez dos meios de comunicação, a elite (?) bandeirante segue delirando nos salões dos Jardins, ouvindo um “filósofo do luxo” (valei-me, Sócrates!) discorrer sobre “o prazer inigualável do consumo sem culpas de qualquer espécie”, profetizando, com a desfaçatez própria dos bobos da corte, que a grande batalha do século XXI será “consumir e gozar – e não estocar”. O apologista do consumo e seus adeptos, cujo tempo ocioso é fruto dos tempos superexplorados de milhões de brasileiros, ainda nos brindam com uma pérola do hedonismo neoliberal de Bruzundangas: “O que fazer amanhã? Nada! Eu comprei um carro novo e vou passar o dia dedicado a esse brinquedo que eu me proporcionei.”
Longe de tanto cinismo e provocação, sem que nenhuma epidemia as prive da infância, nem a voragem do consumo as lance precocemente no universo dos adultos, as crianças cubanas crescem em paz. Quando forem maiores, decerto enfrentarão contradições agudas, cuja solução nem sempre será tão mirabolante quanto a de uma novela global. Seus pais se debatem com os graves desafios de construção de uma via alternativa ao capitalismo, mas guardam dentro de si uma certeza: a saúde e a dignidade física e espiritual de suas crianças estão a salvo de muitas epidemias. O “filósofo do luxo” talvez lamente esse figurino ‘anacrônico’, mas sua falácia de autêntico sofista nada poderá fazer contra os que desejam apenas as benesses de um mundo mais solidário e fraterno.
Luiz Ricardo Leitão é escritor e professor adjunto da UERJ. Doutor em Literatura Latino-americana pela Universidade de La Habana, é autor de Lima Barreto: o rebelde imprescindível (Editora Expressão Popular).

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