
Claudio Weber Abramo2
Na linguagem comum, o termo “corrupção” tem uma acepção ampla, referindo-se a qualquer processo de deterioração de valores e das práticas que acompanham e sinalizam tal deterioração. Fala-se, por exemplo, em “corrupção de costumes” para se referir a fenômenos como a proliferação de programas de televisão do tipo “mundo cão”. Um católico obediente às orientações papais se referirá à legalização do aborto como processo de corrupção. Um racionalista dirá que a proliferação de misticismos é sinal de corrupção. Um puritano fará julgamento semelhante em relação aos exercícios de exibição de carne humana típicos da publicidade brasileira. Uma feminista concordaria quanto a tal julgamento. Esses exemplos têm a finalidade de mostrar que um julgamento de corrupção é sempre referido a algum conjunto de valores. No caso dos programas de televisão, tais valores podem dizer respeito à dignidade humana; no caso do aborto, trata-se de valores elaborados no seio de uma doutrina religiosa e disseminados por via da doutrinação e da subordinação hierárquica a uma autoridade reconhecida, algo que, no que tange a doutrinação (mas não à hierarquia), se repete no caso do puritano; já em se tratando da feminista, os valores invocados relacionam-se a valores como o direito de não se tratar mulheres como coisas sujeitas às determinações e desejos masculinos, por sua vez baseado em princípios de dignidade anteriores. O exemplo do tratamento da mulher pela publicidade mostra que uma mesma conclusão a respeito de comportamentos pode basear-se em pressupostos completamente diferentes entre si – pode-se especular que poucas feministas usariam metáforas bíblicas para justificar a mesma condenação partida do puritano. Grupos diferentes baseiam-se em diferentes sistemas de valores relativos ao comportamento esperado ou recomendado às pessoas. Esses sistemas de valores são chamados de sistemas éticos. A palavra “ética”, por sua vez, refere-se à disciplina filosófica que se ocupa desses sistemas. Não existe ética individual. Sistemas éticos estão na retaguarda dos julgamentos (“bom”/”mau”), estes sim individuais, sobre comportamentos concretamente realizados, os quais compõem o território da moral.
Na linguagem comum, o termo “corrupção” tem uma acepção ampla, referindo-se a qualquer processo de deterioração de valores e das práticas que acompanham e sinalizam tal deterioração. Fala-se, por exemplo, em “corrupção de costumes” para se referir a fenômenos como a proliferação de programas de televisão do tipo “mundo cão”. Um católico obediente às orientações papais se referirá à legalização do aborto como processo de corrupção. Um racionalista dirá que a proliferação de misticismos é sinal de corrupção. Um puritano fará julgamento semelhante em relação aos exercícios de exibição de carne humana típicos da publicidade brasileira. Uma feminista concordaria quanto a tal julgamento. Esses exemplos têm a finalidade de mostrar que um julgamento de corrupção é sempre referido a algum conjunto de valores. No caso dos programas de televisão, tais valores podem dizer respeito à dignidade humana; no caso do aborto, trata-se de valores elaborados no seio de uma doutrina religiosa e disseminados por via da doutrinação e da subordinação hierárquica a uma autoridade reconhecida, algo que, no que tange a doutrinação (mas não à hierarquia), se repete no caso do puritano; já em se tratando da feminista, os valores invocados relacionam-se a valores como o direito de não se tratar mulheres como coisas sujeitas às determinações e desejos masculinos, por sua vez baseado em princípios de dignidade anteriores. O exemplo do tratamento da mulher pela publicidade mostra que uma mesma conclusão a respeito de comportamentos pode basear-se em pressupostos completamente diferentes entre si – pode-se especular que poucas feministas usariam metáforas bíblicas para justificar a mesma condenação partida do puritano. Grupos diferentes baseiam-se em diferentes sistemas de valores relativos ao comportamento esperado ou recomendado às pessoas. Esses sistemas de valores são chamados de sistemas éticos. A palavra “ética”, por sua vez, refere-se à disciplina filosófica que se ocupa desses sistemas. Não existe ética individual. Sistemas éticos estão na retaguarda dos julgamentos (“bom”/”mau”), estes sim individuais, sobre comportamentos concretamente realizados, os quais compõem o território da moral.
Neste ponto importa observar o emprego equivocado de expressões como “comportamento ético”. Quando as pessoas usam essas palavras, referem-se, na verdade, à moral. Um político ou empresário envolvido num esquema de corrupção não é apenas “eticamente” condenável, mas culpado de transgressão moral (além, é claro, de culpado perante a lei). É interessante pensar sobre os motivos de se evitarem menções à moral, preferindo-se a ética. Ética parece mais distante, mais abstrata, algo afastado das contingências do cotidiano, pertencente ao terreno das especulações sujeitas a debate intelectual. Dizer-se de alguém que seu comportamento é “antiético” parece menos diretamente ofensivo do que afirmar-se da mesma pessoa que seu comportamento é “imoral”. O componente acomodatício da cultura brasileira pode contribuir para o fenômeno. De toda forma, convém guardar em mente que, no discurso contemporâneo, as ocorrências da palavra “ética” e derivados funcionam, na maior parte dos casos, como metáfora atenuante de “moral”. Genericamente, portanto, uma vez que pertencem ao domínio da ação e não ao dos sistemas de idéias, atos de corrupção constituem transgressões de natureza moral. Como demonstram os exemplos listados há pouco, o reconhecimento de que um ato qualquer é corrupto não é necessariamente unânime. Legalizar o aborto pode ser considerado moral por uns e imoral por outros. Tais diferenças constituem uma parte muito importante das disparidades culturais entre grupos. Estipulações de natureza ética, voltadas para regular o comportamento moral das pessoas, constituem parte integrante de toda comunidade. Pode-se dizer que a própria noção de comunidade implica a subordinação a um determinado conjunto de valores, que pode ser mais ou menos elaborado, mais ou menos extenso. Em certos casos, as estipulações normativas são explicitadas em códigos formais, como entre médicos. Em outros casos, como na família, é difuso. Todo indivíduo pertence a alguma espécie de grupo, e em geral a diversos deles simultaneamente, e essa pertinência implica a obediência a regras. Na grande maioria dos casos, a decisão de pertencer ou não a um grupo é voluntária. Ninguém é obrigado a ser médico, associar-se a um certo clube, filiar-se a um partido político. Há um grupo, contudo, em que a filiação não é voluntária, ao menos para a esmagadora maioria das pessoas: a sociedade nacional na qual se vive. De toda forma, mesmo que um indivíduo exerça a opção de mudar-se de país, ao fazê-lo assume explicitamente o compromisso de se conformar às regras do país de escolha. Enquanto é perfeitamente possível a alguém viver sem pertencer a clubes ou agremiações profissionais, em algum país todo mundo vive e trabalha.3 Num clube, as regras de convivência são especificadas em seus estatutos e regulamentos. O mesmo acontece com a sociedade em que vivemos: suas regras são explicitadas num conjunto de estipulações explícitas, que nascem da Constituição. O Estado corresponde ao conjunto de estruturas concebidas para garantir o cumprimento das normas constitucionais. O arcabouço legal de um país é ao mesmo tempo conseqüência e origem, embora não exclusiva, do conjunto de estipulações éticas predominante naquela sociedade. Transgressões a essas regras legais constituem, genericamente, atos de corrupção.
É claro que existe uma gradação quanto à gravidade dos atos de corrupção. Estacionar o automóvel em local proibido, ou descumprir a lei do silêncio, são atos leves de corrupção. De modo a não generalizar demasiadamente, a palavra vem sendo empregada para referir-se a um certo subconjunto de atos ilegais, a saber, a apropriação de recursos públicos para fins privados. É essa acepção reduzida que se empregará no que se segue. A corrupção nesse sentido deve ser distinguida da fraude, em que mecanismos ilegais interferem nas relações estritamente privadas ou em atividades exercidas por empresas, sem participação de administradores públicos (como na sonegação de impostos, por exemplo). Há outro motivo mais importante, além do terminológico, para frisar o aspecto legal. Ele diz respeito aos mecanismos mais eficazes para combater a corrupção. Como se verá, um dos argumentos centrais expostos nas presentes notas é o de que só há eficácia no combate à corrupção quando se age sobre o arcabouço institucional. Outras medidas (como a participação da sociedade civil organizada) são também relevantes nesse combate, mas não têm efeito se tomadas isoladamente. Agir sobre e com as instituições é uma condição necessária para reduzir a corrupção. Em outros termos: se o combate à corrupção não incluir a ação institucional, a probabilidade de êxito será muito pequena.
Já que os atos de corrupção configuram imoralidades, seria quase natural esperar que o melhor combate a ela se daria no terreno moral. A saber, por meio de exortações e processos de convencimento educaionais/doutrinários exercidos sobre as comunidades submetidas às tentações da corrupção. E, de fato, durante muito tempo a corrupção foi abordada dessa maneira. A partir da indignação moral provocada pelo testemunho de práticas de corrupção, imaginava-se que o problema pudesse ser enfrentado por meio de intervenções diretas no próprio terreno da moral. Nada poderia demonstrar com mais eloqüência o fracasso de uma tal estratégia do que o fato empírico de que, apesar de décadas (e mesmo séculos) de perorações, elas, por si sós, jamais levaram a qualquer melhoria. Comportamentos não se combatem falando-se a respeito deles – embora, evidentemente, seja necessário falar-se deles para despertar a consciência sobre sua existência –, mas principalmente alterando-se as condições materiais que os propiciam. A realidade muda os padrões morais, e não o contrário: “Identificar e condenar a corrupção genericamente, mesmo que de forma eloqüente, não é o suficiente, e a longo prazo pode mesmo ser antiprodutivo. A denunciação excessivamente vaga que não resulte em medidas concretas pode muito bem minar a indignação popular”.
Conseqüências sobre o setor privado
A corrupção sempre coloca de um lado um agente do Estado e, de outro, um interesse privado. Não há corrupção sem corrompido (o agente público) ou sem corruptor (o agente privado). Pode-se distinguir entre “pequena” e “grande” corrupção. A primeira envolve um agente público individual e um cidadão, também individual, em torno de algum serviço sob responsabilidade do agente. Uma propina, em geral de pequena monta, passa do cidadão ao agente público para que este cumpra (ou deixe de cumprir) seu dever (carimbar um papel, por exemplo). A “grande” corrupção acontece, mais tipicamente, em licitações públicas, incluindo-se a fase política de definição de projetos e a execução física do que se licitou. Transferências financeiras subsidiadas, para financiamento de projetos industriais ou agrícolas (Sudam e Sudene), recaem nesta categoria, assim como influenciar os regulamentos de agências reguladoras para evitar obrigações. O mesmo quanto a esquemas de facilitação de dificuldades tributárias de empresas, sempre sediados nas secretarias de Fazenda e geralmente envolvendo grandes parcelas da hierarquia funcional. Na “grande” corrupção enquadra-se também a maior de todas, a eleitoral, que se caracteriza pelos famosos “caixas 2” das campanhas, pela compra de votos e pelo uso da máquina administrativa para fins eleitorais. A principal característica da “grande” corrupção não é tanto o volume de recursos envolvidos e desviados, mas a circunstância de afetar grandes contingentes populacionais e prejudicar o desenvolvimento econômico de longo prazo. Tal prejuízo se dá não apenas porque os recursos públicos deixam de ser empregados onde seriam mais eficientes, mas também porque, ao introduzir fatores extra-econômicos nas relações do mercado, prejudicam o desenvolvimento de inteiros setores da economia. É por isso que, crescentemente, a corrupção vem sendo encarada como ameaça pelos interesses privados, em especial dos países centrais (movidos, é claro, pelas pressões da globalização). São diversas as conseqüências da corrupção em termos da alocação e distribuição da riqueza. Ela:
• Aumenta os custos das transações e, assim, reduz o investimento e o crescimento.
• Resulta em má alocação dos recursos públicos, com hiperfavorecimento de setores cartelizados e conseqüente redução de recursos que poderiam ser alocados em outros setores.
• Resulta em má alocação dos recursos públicos, com hiperfavorecimento de setores cartelizados e conseqüente redução de recursos que poderiam ser alocados em outros setores.
• Por ser secreta, introduz incerteza na resolução de conflitos. O investimento realizado para corromper um agente do Estado não pode ser defendido por foros de julgamento e conciliação independentes.
• Desestimula a inovação tecnológica e o desenvolvimento gerencial.
• Desestimula a inovação tecnológica e o desenvolvimento gerencial.
• Interfere perversamente com o papel redistributivo do Estado e estimula a fraude fiscal.
• Reduz a qualidade dos bens e serviços adquiridos pelo Estado.
• Estimula a invasão da atividade produtiva pelo crime organizado, decorrente da identificação dos métodos e agentes.
• Contamina a atividade política, que se torna alvo de caçadores de renda.
• Reduz a qualidade dos bens e serviços adquiridos pelo Estado.
• Estimula a invasão da atividade produtiva pelo crime organizado, decorrente da identificação dos métodos e agentes.
• Contamina a atividade política, que se torna alvo de caçadores de renda.
Boa parte dessas conseqüências incide não apenas sobre a economia como um todo, mas também sobre setores econômicos e empresas individuais. Um setor em que a capacidade de corromper se transforma em vantagem competitiva tem correspondentemente reduzido o estímulo para reduzir custos por meio de novas soluções tecnológicas e aperfeiçoamentos dos processos produtivos.
Nas relações econômicas, todo fator interveniente pode e é utilizado no eterno jogo das vantagens. Os processos corruptivos não são diferentes. Assim, o poder de corromper é empregado para fortalecer cartéis – cuja razão de ser é formar preços e desestimular a entrada de novos participantes – e subjugar inteiros setores a uma espécie de ordem hierárquica em que quem está mais abaixo recebe serviços de quem está mais acima, desde que se conforme a não competir diretamente por negócios. Pouca coisa poderia ser mais prejudicial ao progresso do que isso. Uma conseqüência não desprezível da corrupção sobre as empresas diz respeito ao ambiente interno a que dá lugar. Numa empresa em que corromper agentes públicos é considerado prática “normal”, todas as relações, inclusive as internas, são afetadas. Se é admitido que se paguem propinas para se vencer uma licitação, então também se admite que se paguem gorjetas aos compradores de seus clientes privados, e como decorrência inevitável se enfrenta a ameaça permanente de que, por sua vez, seus próprios compradores sejam “comprados” pelos fornecedores. A fraude passa a incorporar a cultura da empresa. Como não há nenhuma razão pela qual comportamentos fraudulentos permaneçam encerrados no interior de algum segmento específico de atividade da empresa, eles tendem a invadir todas as relações, incluindo-se as corporativas e as trabalhistas. A racionalidade na contratação e alocação dos recursos materiais e humanos cede lugar a mecanismos desviantes.
Como combater a corrupção em licitações públicas
De todas as infinitas manifestações de corrupção, uma se destaca por sua magnitude e conseqüências sobre a economia: aquela que afeta licitações públicas. Em qualquer país, o Estado é o maior consumidor de bens e serviços, e tudo isso é, ou deveria ser, sujeito a licitação pública. Uma parcela gigantesca do Produto Interno Bruto de todos os países corresponde a licitações. No agregado dos países membros da OCDE, por exemplo, a porcentagem é de cerca de 7,5%, e isso contando apenas contratações realizadas pelos governos centrais.9 Em países em desenvolvimento, esse porcentual tende a ser mais elevado, devido ao peso relativamente maior dos investimentos em infraestrutura. Para compreender como se combate a corrupção no mercado de licitações públicas, o primeiro passo é reconhecer que se trata de um mercado. Evidentemente, uma vez que envolve diretamente o interesse público, não faria sentido que fosse um mercado “puro”, sujeito apenas à “mão invisível”. Trata-se de,um mercado regulado por legislação específica.
Tal regulação não se limita a ordenar relações puntiformes entre o Estado e seus fornecedores privados. Exatamente por corresponder ao instrumento que o Estado emprega para realizar todos os seus investimentos, é um elemento crucial para a execução de estratégias de desenvolvimento. É por meio de licitações que se concretiza, por exemplo, o fomento a setores econômicos politicamente escolhidos como prioritários. É, assim, crucial que a regulamentação de licitações seja concebida de forma a maximizar a eficiência alocativa do Estado. Em outras palavras, que garanta que os gastos de investimentos e custeio do Estado trabalhem a favor do crescimento econômico e da saúde das relações entre os agentes econômicos.,Quase tudo o que se deve esperar de licitações públicas pode ser resumido numa frase: a regulamentação deve procurar evitar a oportunidade de se erigirem barreiras à entrada. Isso faz sentido não apenas econômico (barreiras reduzem a eficiência alocativa), mas também no que tange ao combate à corrupção. De fato, todo ato de corrupção em licitações públicas se traduz pela invenção de barreiras à entrada, concebidas para favorecer um concorrente sobre os demais, o que se faz contra o pagamento de uma propina. Nesse particular, a lei brasileira de licitações10 se compara favoravelmente com a legislação da maioria dos países, desenvolvidos ou não. Embora seja comum se ouvirem críticas à lei (partidas de funcionários públicos em busca de maior autonomia de ação, bem como de certos grupos empresariais interessados), ela na verdade cobre com eficácia a maioria das vulnerabilidades que afetam a relação econômica entre o Estado e o setor privado.
Durante o ano de 2001, a Transparência Internacional realizou um exercício de avaliação do arcabouço institucional sobre licitações em nove países latino-americanos, um trabalho que foi coordenado pela Transparência Brasil. O objetivo era traçar o “mapa de riscos” em licitações nos países estudados. Para a confecção desses mapas, identificaram-se 27 “marcos”, cuja presença ou ausência foi então, determinada em cada país. A razão entre marcos identificados e o total de marcos produz um “Índice de risco”.
Os resultados estão resumidos na tabela seguinte: País x Índice de risco
Argentina 91%
Brasil 22%
Chile 45%
Colômbia 64%
Equador 100%
Panamá 86%
Paraguai 100%
Peru 48%
Argentina 91%
Brasil 22%
Chile 45%
Colômbia 64%
Equador 100%
Panamá 86%
Paraguai 100%
Peru 48%
Dos países que participaram do estudo, o Brasil é aquele cujo arcabouço institucional menos apresenta riscos à corrupção. Os fatores de risco identificados no Brasil foram:
• Exigência de experiência prévia de empresas para participar de licitações.13
• Falta de informações sobre a execução de contratos.
• Inexistência de regulamentação para estabelecer preços e qualidades.14
• Falta de controle social sobre os mecanismos de contratação.
No quadro brasileiro, pode-se dizer que o principal fator de risco é o último da lista. Há pouca preocupação dos agentes sociais no acompanhamento dos processos de licitação. A omissão mais gritante é a do setor privado. Contam-se nos dedos as organizações privadas (associações setoriais, sindicatos, federações e confederações patronais) que se ocupam de um acompanhamento sistemático dos processos de licitação que se dão nos diversos setores da economia. Caso tal acompanhamento se fizesse de forma mais consistente do que ocorre, os demais fatores de risco seriam eliminados ou teriam drasticamente reduzida sua influência. Por exemplo, a legislação brasileira exige que toda licitação pública envolvendo valores acima de R$ 150 milhões seja submetida a audiência pública, para discussão prévia das condições em que ocorrerá. Todo mês, acontecem muitas concorrências com montantes superiores a esse em todas as esferas de governo. Contudo, devido à pequena participação dos agentes (incluindo-se não apenas o setor privado, mas também as corporações profissionais, as organizações comunitárias, as ONGs etc.), é comum que o agente público simplesmente não convoque a audiência pública, ou, quando a convoca, a transforme num simulacro em que evita ou mesmo se recusa a discutir o que mais interessa, ou seja, as condições que governarão a licitação. Como é nas condições expressas no edital que eventuais barreiras à entrada são introduzidas, examina-las seria fundamental. Como isso geralmente não se faz, tais barreiras são na prática toleradas, às vezes se institucionalizando. Os motivos que respondem por essa falta de interesse ainda não foram objeto de estudo no Brasil, de forma que se é forçado a trabalhar com informações esparsas. Uma organização como a Transparência Brasil é freqüentemente consultada por empresas sobre o que fazer a respeito de processos de licitação suspeitos de direcionamento, com a expectativa de que a entidade intervenha de alguma maneira. Quando indagadas se elas, empresas, tomaram ou tomarão algum tipo de medida (administrativa ou judicial), a resposta quase invariável é que não. Quando indagadas por quê, há sempre menção ao receio de sofrer represálias, seja no tocante à participação da empresa em futuras licitações, seja por parte de empresas dominantes do setor. Nada poderia ser mais eloqüente do que esse tipo de resposta para indicar a ação de um cartel, que emprega cúmplices no Estado para manter posição dominante no mercado. Tais cartéis escravizam as empresas do setor. Como em todo sistema escravagista, a idéia não é matar o escravo de fome, mas mantê-lo num nível mínimo de subsistência, o que no caso se faz por subcontratações.15 Vem daí o receio de represálias: quem se desvia do rebanho deixa de ser contemplado com subcontratações. Para muitos setores cuja ocupação é primodialmente o fornecimento ao Estado, esse receio tem, na verdade, um fundamento no mínimo frágil. Se uma empresa cumpre as condições para fornecer um certo bem ou executar um certo serviço, deve procurar fazê-lo, uma vez que é para isso que existe.Não é muito compreensível, sob a lógica empresarial, que uma empresa desista de concorrer em seu próprio ramo de negócios porque outra empresa ou grupo de empresas assim determinou. Aceder a essas pressões significa desistir de crescer, ou, no mínimo, concordar em crescer num ritmo menor do que o seu potencial. É aí que reside o principal papel das empresas no combate à corrupção: simplesmente, defender seu interesse empresarial. Em licitações públicas, esse interesse é diretamente óbvio. Ele é indiretamente óbvio em quase todas as demais manifestações de corrupção. Assim, a tolerância à sonegação de impostos (em si uma fraude, mas sempre associada à corrupção, quando a fiscalização entra em cena) se reflete em prejuízos diretos à atividade empresarial: uma empresa que sonegue impostos ganha vantagem competitiva frente a empresas que não sonegam. Logo, é do interesse direto destas últimas combater a sonegação. O mesmo vale, mutatis mutandis, para todas as manifestações de corrupção. Numa sociedade cujas relações econômicas se baseiam nos princípios de mercado, o setor privado tem grande responsabilidade no fortalecimento da estrutura do Estado voltada para a regulação, para a aplicação das normas jurídicas e para o aperfeiçoamento das práticas administrativas. Tudo isso, além de trabalhar em favor da eficiência econômica das empresas, é parte de sua responsabilidade pública.
1 Texto-base para o módulo “Governo e sociedade”, curso de “Introdução à responsabilidade social de empresas” – Fundação Getúlio Vargas/SP, Instituto Ethos de Responsabilidade Social.
2 Bacharel em matemática e mestre em filosofia da ciência. Secretário geral da Transparência Brasil e membro do Conselho Diretor da Transparency International.
3 Há pessoas que procuram viver o máximo possível distantes das regras sociais. Estes são geralmente considerados doidos, ou no mínimo excêntricos.
4 Além das leis, há diversos outros conjuntos de códigos que agem simultaneamente em qualquer sociedade. Em muitos países, estes incluem normas de comportamento derivadas de religiões. Em alguns casos, isso é explícito. Por exemplo, as
cédulas monetárias brasileiras trazem a inscrição monoteísta “Deus seja louvado”. E isso independentemente de parte da população não ser monoteísta e nem mesmo teísta.
5 É importante frisar que corrupção, na acepção aqui empregada, é um ato ou conjunto de atos ilegais. Caso isso não fosse explicitado, a definição se tornaria demasiadamente ampla – o capitalismo é descrito por alguns como corrupto em sua essência, pois inclui a apropriação de recursos públicos para fins privados.
6 [Hors], p. 163.
7 Pesquisa nacional realizada pela Transparência Brasil em 2001 revelou que 6% dos respondentes foram confrontados por ofertas de compra de votos por dinheiro durante as eleições de 2000 (12% nas regiões Norte e Centro-Oeste). Além disso, 9% das pessoas testemunharam o uso da máquina administrativa para fins eleitorais (a prestação de um serviço pela administração municipal é feita sob condição de o cidadão votar em alguém). Ver a íntegra em www.transparencia.org.br,
seção “Pesquisas e Indicadores”.
8 Há ampla literatura sobre isto. Ver, por exemplo, [Rose-Ackerman] e [Klitgaard]. Para uma exposição resumida, ver [Cartier-Bresson].
• Definição a portas fechadas das condições impostas na formulação de licitações.
10 Nº 8.666, 1993.
11 Os resultados ainda não foram publicados.
12 Exclui-se a Costa Rica, em que o mapa de riscos limitou-se a um setor da economia.
13 A rigor não admitida pela lei 8.666/93, mas praticada por muitos administradores com base numa interpretação forçada da lei, estimulada pelos organismos multilaterais de financiamento (o Banco Mundial, especialmente).
14 Bancos de dados de preços, normas padrão para a encomenda de bens e serviços.
15 É bastante conhecido o caso de uma empresa hoje gigantesca, que nasceu durante o regime militar como escritório de intermediação de licitações corrompidas. A empresa vencia licitações milionárias, não executava qualquer serviço, subcontratava a totalidade do contrato e embolsava a margem de intermediação.
Referências
Audet, Denis: Government procurement: A synthesis report. OCDE Trade Directorate, Paris, 2001.
Cartier-Bresson, Jean: “The causes and consequences of corruption: Economic analyses and lessons
learnt”, [OCDE], pp. 11ss.
Hors, Irène: “Dealing with corruption in developing countries”, [OCDE], pp. 159ss.
Kiltgaard, Robert: Controlling corruption. University of California Press, 1988.
Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE): No longer business as usual – Fighting bribery and corruption. OCDE, Paris, 2000.
Rose-Ackerman, Susan: Corruption and good governance. UNDP, 1997.
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