
Jornal O Globo- 05 de janeiro de 2008
Não há verdade silenciosa. Coberta pelo silêncio, a verdade é uma mentira. O Brasil é um país de verdades silenciosas: um país de costas para sua história.
Até hoje, não sabemos tudo o que aconteceu durante a guerra contra o Paraguai, 150 anos atrás. Os documentos oficiais estão escondidos sob o manto do sigilo. Como brasileiro do século XXI, não tenho qualquer culpa por crimes cometidos por brasileiros do século XIX. Mas o silêncio das gerações atuais nos faz cúmplices de crimes do passado. Enquanto tudo da guerra da Paraguai não for exposto à luz, nós brasileiros estamos contaminados. Porque a história escondida contamina através do tempo.
Da mesma forma, nossos militares de hoje não têm qualquer responsabilidade com crimes de há 30, 40 anos. Mas, se não aceitam a apuração e divulgação dos fatos históricos, as Forças Armadas continuam contaminadas com a culpa da geração anterior. A esquerda do século XXI também continua contaminada por possíveis crimes cometidos pela guerrilha, ainda não expostos à luz da verdade.
A opção pela “verdade silenciosa” contamina todo o tecido social. O silêncio sobre a verdade termina sendo um das causas da falta de princípios na política e um vetor para a corrupção. Inclusive a corrupção do silêncio. A política fica com aversão à história. Olha-se mais o poder pelo poder hoje, do que o nome em uma placa de rua no futuro. Justificando o Congresso a julgar secretamente senadores e deputados acusados de falta de ética.
Os intelectuais optam pelo silencio gerencial diante dos erros dos políticos correligionários. Como desprezam o que a história dirá, ou não dirá, ficam quietos e calados diante dos erros dos governantes que eles apóiam. Os próprios guardiões da história seqüestram a história. Alguns não criticam o decreto assinado por Fernando Henrique prorrogando os prazos de sigilo dos fatos históricos, outros não criticam que o governo Lula nada fez para mudar esta parte do “conluio do silêncio”, como chamou a jornalista Miriam Leitão neste jornal, em sua coluna da última terça-feira.
É este conluio que nos fez conviver 400 anos com a escravidão. E tentar apagar o crime que ela representou: os documentos da escravidão foram queimados para impedir que os donos-de-escravos pedissem indenizações e com isso eles foram anistiados de suas maldades. O “conluio do silêncio” é antigo. E nos faz também tolerar sem constrangimento a concentração de renda, a miséria, a deseducação, todos calados ou apenas cochichando, mas tolerando, sem julgar os culpados históricos. Neste conluio, aceitou-se não punir torturadores e indenizar torturados. Aqueles que se recusaram a fazer esta troca, provavelmente ficarão sem dinheiro, sem justiça contra seus opressores, nem nome de rua, em um país onde a história é escondida no sigilo ou no esquecimento.
Sem história aberta -- feita por políticos com compromissos com a história, estudada por historiadores com acesso a toda verdade -- não surge o sentimento de nação e sua perspectiva histórica. O país-não-nação fica apenas uma rede de pessoas e suas corporações prisioneiras do presente.
A verdade é a base da história, a história é a base da política séria. Por isso, não é para julgar os que foram anistiados pela lei da Anistia, é para salvar a honra das Forças Armadas e do Brasil, dos partidos que fizeram a luta armada, é para trazer o ar puro da verdade dentro da vida nacional, para ilustrar e conscientizar os jovens e as futuras gerações, é para comprometer a política com a história que tudo deve vir a público. Os crimes da Operação Condor e todos os demais cometidos durante os anos de chumbo devem ser conhecidos.
Aproveitemos que um juiz italiano quer apurar o que aconteceu com dois de seus compatriotas, para rompermos o “conluio do silêncio” apurando tudo que aconteceu com todos os nossos compatriotas e com os estrangeiros que aqui sofreram violências.
Libertemos a verdade histórica, sem a qual a verdade democrática é uma farsa.
Cristovam Buarque é Professor da Universidade de Brasília e Senador pelo PDT/DF
Não há verdade silenciosa. Coberta pelo silêncio, a verdade é uma mentira. O Brasil é um país de verdades silenciosas: um país de costas para sua história.
Até hoje, não sabemos tudo o que aconteceu durante a guerra contra o Paraguai, 150 anos atrás. Os documentos oficiais estão escondidos sob o manto do sigilo. Como brasileiro do século XXI, não tenho qualquer culpa por crimes cometidos por brasileiros do século XIX. Mas o silêncio das gerações atuais nos faz cúmplices de crimes do passado. Enquanto tudo da guerra da Paraguai não for exposto à luz, nós brasileiros estamos contaminados. Porque a história escondida contamina através do tempo.
Da mesma forma, nossos militares de hoje não têm qualquer responsabilidade com crimes de há 30, 40 anos. Mas, se não aceitam a apuração e divulgação dos fatos históricos, as Forças Armadas continuam contaminadas com a culpa da geração anterior. A esquerda do século XXI também continua contaminada por possíveis crimes cometidos pela guerrilha, ainda não expostos à luz da verdade.
A opção pela “verdade silenciosa” contamina todo o tecido social. O silêncio sobre a verdade termina sendo um das causas da falta de princípios na política e um vetor para a corrupção. Inclusive a corrupção do silêncio. A política fica com aversão à história. Olha-se mais o poder pelo poder hoje, do que o nome em uma placa de rua no futuro. Justificando o Congresso a julgar secretamente senadores e deputados acusados de falta de ética.
Os intelectuais optam pelo silencio gerencial diante dos erros dos políticos correligionários. Como desprezam o que a história dirá, ou não dirá, ficam quietos e calados diante dos erros dos governantes que eles apóiam. Os próprios guardiões da história seqüestram a história. Alguns não criticam o decreto assinado por Fernando Henrique prorrogando os prazos de sigilo dos fatos históricos, outros não criticam que o governo Lula nada fez para mudar esta parte do “conluio do silêncio”, como chamou a jornalista Miriam Leitão neste jornal, em sua coluna da última terça-feira.
É este conluio que nos fez conviver 400 anos com a escravidão. E tentar apagar o crime que ela representou: os documentos da escravidão foram queimados para impedir que os donos-de-escravos pedissem indenizações e com isso eles foram anistiados de suas maldades. O “conluio do silêncio” é antigo. E nos faz também tolerar sem constrangimento a concentração de renda, a miséria, a deseducação, todos calados ou apenas cochichando, mas tolerando, sem julgar os culpados históricos. Neste conluio, aceitou-se não punir torturadores e indenizar torturados. Aqueles que se recusaram a fazer esta troca, provavelmente ficarão sem dinheiro, sem justiça contra seus opressores, nem nome de rua, em um país onde a história é escondida no sigilo ou no esquecimento.
Sem história aberta -- feita por políticos com compromissos com a história, estudada por historiadores com acesso a toda verdade -- não surge o sentimento de nação e sua perspectiva histórica. O país-não-nação fica apenas uma rede de pessoas e suas corporações prisioneiras do presente.
A verdade é a base da história, a história é a base da política séria. Por isso, não é para julgar os que foram anistiados pela lei da Anistia, é para salvar a honra das Forças Armadas e do Brasil, dos partidos que fizeram a luta armada, é para trazer o ar puro da verdade dentro da vida nacional, para ilustrar e conscientizar os jovens e as futuras gerações, é para comprometer a política com a história que tudo deve vir a público. Os crimes da Operação Condor e todos os demais cometidos durante os anos de chumbo devem ser conhecidos.
Aproveitemos que um juiz italiano quer apurar o que aconteceu com dois de seus compatriotas, para rompermos o “conluio do silêncio” apurando tudo que aconteceu com todos os nossos compatriotas e com os estrangeiros que aqui sofreram violências.
Libertemos a verdade histórica, sem a qual a verdade democrática é uma farsa.
Cristovam Buarque é Professor da Universidade de Brasília e Senador pelo PDT/DF
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