terça-feira, 29 de janeiro de 2008

Álcool sem controle.....


Entrevista:

Psiquiatra e professor na Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), Ronaldo Laranjeira pesquisa os problemas relacionados ao abuso do álcool há três décadas. Um dos estudos mais recentes que coordenou foi um abrangente retrato do consumo da bebida no país. Financiado pela Secretaria Nacional Anti-Drogas (Senad), o I Levantamento Nacional sobre os Padrões de Consumo do Álcool na População Brasileira revelou, entre muitos outros dados, que a cerveja é mesmo líder. Portanto, está por trás de diversos problemas de saúde da população brasileira e de grande parte dos acidentes ocorridos nas ruas e estradas do país. Laranjeira conversou com a Revista do Idec em seu consultório, em São Paulo, após voltar de uma viagem a Fortaleza (CE), onde fora debater a experiência de Diadema (SP) na redução da criminalidade, diretamente relacionada aos limites impostos ao consumo de álcoolIdec: O álcool está diretamente ligado a problemas de saúde, além de prejuízos sociais e econômicos. Por que se bebe tanto?Ronaldo Laranjeira: Culturalmente, o álcool é a droga mais usada no mundo, e a tecnologia para a sua produção existe há 6 mil anos. Bebe-se muito no Brasil porque é muito barato. Você não encontra outros países em que 1 litro de pinga custa menos que 1 litro de leite. Quando eu falo na Organização Mundial de Saúde (OMS) que custa menos que 1 dólar, ninguém acredita. Quando você fala que a maioria das crianças pode comprar bebida alcoólica sem nenhum tipo de controle - isso não existe em nenhum outro lugar -, é difícil as pessoas de outros países acreditarem. No Brasil há 1 milhão de pontos-de-venda, sem nenhum tipo de controle, e você faz propaganda também sem nenhum controle. Tudo isso caracteriza um mercado desregulado quanto ao álcool, diferentemente de países como Estados Unidos, onde o comércio é regulado e fiscalizado. Lá você não pode vender para menores de 21 anos e não é fácil burlar a lei. Até a filha do presidente norte-americano, George Bush, tentou burlar a lei e foi presa. Os adolescentes tentam, mas não é fácil. Alguém terá de comprar por eles, pois se o estabelecimento vender para menores, será fechado. Do ponto de vista de saúde pública, o mercado desregulado é um absurdo. Você paga um preço muito alto, porque as pessoas vão beber mais e de forma mais danosa para a sociedade. Mais de 30% dos motoristas, no Brasil, estão alcoolizados nos fins de semana. Quem faz a política do álcool aqui é a indústria. Também é ela que educa, que estabelece o preço e que determina como se bebe.Idec: E quando o Estado tenta pôr algum limite, não consegue.RL: No Brasil, a situação é tão selvagem que a indústria luta contra qualquer limitação social do álcool. Como ela tem controle total, sente-se no direito de continuar fazendo isso, apesar dos malefícios para a saúde pública. Idec: Sobre a experiência de Diadema, que em 2001 implantou uma espécie de lei seca no município, o senhor acha que existe um custo/benefício interessante?RL: Enorme, porque quando houve o fechamento dos bares e a conseqüente queda das taxas de homicídio, muita gente questionou - principalmente o pessoal ligado à indústria do álcool - se a queda nos homicídios havia sido pelo fechamento dos bares ou por uma série de outros programas que foram implementados simultaneamente, como a criação da guarda municipal, o aumento da população, uma série de blitze que ocorriam por outros motivos, outros tantos programas sociais que apoiavam adolescentes. O que o nosso estudo na cidade mostrou é que foi o fechamento dos bares o fator que produziu uma queda de quase 80% dos homicídios em Diadema. Há cinco anos e meio, os bares começaram a ficar fechados das 23 horas às 6 horas, porque o prefeito [Filippi Júnior] percebeu que os homicídios lá - 105 por cada mil habitantes, a segunda taxa mais alta do mundo -, em sua maioria, aconteciam após as 23 horas, perto de bares ou dentro deles. Houve discussões na Câmara Municipal, e é claro que a indústria da cerveja não gostou. Hoje em dia, nessa cidade, pelo menos, o apoio da população é de 95% à restrição nos horários dos pontos-de-venda. As pessoas sentem que a segurança melhorou, atraiu negócios. Hoje em dia ninguém questiona a experiência. Idec: Nova Iorque teve uma experiência parecida sobre a limitação de horário. RL: Todos os países desenvolvidos têm restrições de horário. Na Inglaterra, os pubs fechavam cedo desde o século 18. Mas quando relaxaram um pouco a lei, houve aumento da violência. As pessoas passaram a ficar mais tempo nos bares, bebem mais ainda e acabam tendo mais problemas sociais, na rua, com violência, com acidentes. Possivelmente vão voltar atrás na decisão tomada. Idec: O Idec é crítico com relação à propaganda de bebidas alcoólicas. Já as fabricantes de cerveja dizem que ela não influencia o aumento do consumo e, sim, somente promove a migração do consumidor de uma marca para outra. Podemos concluir que os lucros gerados por um produto, para determinadas empresas, estão acima da saúde da população?RL: Eles são de um cinismo muito grande. Chegam a dizer que não vendem álcool, vendem pão líquido. A maior parte do consumo de álcool no Brasil é em forma de cerveja, e, portanto, os maiores problemas do consumo exagerado vão se relacionar com a cerveja. É ela que causa danos sociais à maioria dos motoristas alcoolizados nos fins de semana, que causa acidentes e mortes. Ocorrem 37 mil mortes diretas por acidentes de carro no Brasil, por ano. Isso dá cerca de 100 pessoas por dia. No mínimo, em metade dessas mortes há alguém alcoolizado. É necessário ampliar a educação e a fiscalização. O que funciona é tirar os motoristas alcoolizados da rua. Essas campanhas de fim de ano, de que "se beber não dirija", têm efeito zero, não atingem os motoristas. Idec: Já se havia falado em política de governo para o álcool antes de maio deste ano, quando o governo federal decretou a Política Nacional sobre Bebidas Alcoólicas? Como vocês, do Uniad (Unidade de Pesquisa em Álcool e Drogas), que há vários anos acompanham o tema, a receberam? RL: Até pode mudar alguma coisa. O passado não nos deixa otimistas. O ministro [da saúde, José Gomes] Temporão tem falado as coisas certas, é preparado, tem uma visão muito boa da política do álcool. Agora, se ele vai conseguir fazer alguma coisa, eu não sei. No início do governo Lula, diversas pessoas se reuniram para fazer uma política interministerial do álcool, mas, cinco anos e meio depois, não aconteceu nada. Só há essa carta de intenções, lançada em maio. O governo é ambíguo. Sem dúvida, é interesse do ministro da Saúde fazer algo, mas há uma boa parte do governo que se opõe a medidas regulatórias do álcool, como o Ministério da Agricultura. Idec: Você acredita que as bebidas deveriam ser mais caras, como forma de reduzir o consumo. O que mais você acha que poderia ser feito com essa finalidade? Como colocar em prática uma proposta tão impopular, especialmente do ponto de vista da indústria? A sociedade aprovaria? RL: O aumento de preço é uma das medidas mais vigorosas, mas deve vir junto à proibição da propaganda, a medidas efetivas para não se beber e dirigir depois, a não deixar adolescentes comprarem bebidas como acontece aqui. E teria que haver também controle dos pontos-de-venda de álcool, com horários restritos. São as cinco medidas que devem ser feitas no Brasil. O custo social da desregulação é muito alto, e só a indústria do álcool é quem ganha. Em algum momento, algum governo implantará algum tipo de controle social.Idec: A situação pode mudar de fato?RL: Os céticos têm mais chance de ter razão do que nós. Não vi nenhuma mudança nos últimos anos, apenas experiências locais, como em Diadema, que se transformou em um modelo. Agora pretendem até monitorar a venda para menores de idade na cidade. Esses exemplos poderiam contaminar outras cidades. Mas pode ser que o Congresso aprove leis para a proibição de propaganda, como aconteceu com o cigarro. A prevalência de fumantes hoje é de 20% na população adulta, e para um país como o nosso, o fim da propaganda teve resultado - antes, cerca de 28% das pessoas fumavam. Não é tudo, claro, mas pelo menos você pára de deseducar. Quem se beneficia com a propaganda do álcool é a mídia, a indústria e os distribuidores do álcool. Mas em algum momento a saúde pública terá de se levantar. Outras cidades já o fizeram, mas com um nível diferente de fiscalização - esse foi o diferencial de Diadema. Todas as noites sai uma viatura para fiscalizar se os bares estão fechados, até hoje.Idec: Em São Paulo existe uma limitação no horário dos bares, mas a impressão é de que é só por causa do barulho.RL: Aqui em São Paulo a motivação não foi a violência, mas o barulho. Isso também é fruto de uma desregulação. Como colocar cadeiras nas calçadas se você não consegue nem passar? Não deve haver uma lei seca, algo radical, mas deve-se regular o mercado para o benefício da sociedade como um todo, e não para o benefício dos donos de bares ou das pessoas que bebem em bares. Nos Estados Unidos, não vemos bares, eles são estabelecimentos mais fechados e protegidos, principalmente os que funcionam à noite. Idec: Uma passagem do levantamento nacional do consumo de álcool no Brasil diz: "a linha divisória entre um consumo de baixo risco e o uso nocivo com graves conseqüências não é fácil de ser estabelecida na prática". Você pode explicar um pouco sobre essa dificuldade? RL: Há muito debate sobre quanto se pode beber sem prejudicar a saúde. Se você não beber nada, é melhor. Se você puder beber com segurança, até um copo de vinho por dia, é um nível seguro. Se você não estiver doente, grávida etc., não vai prejudicar a saúde. Na medida em que você vai progredindo na dose, a coisa se complica. Mulher que bebe dois copos de vinho por dia aumenta em 20% a chance de ter câncer de mama. Um copo pode fazer bem, dois copos já fazem mal. Isso se for regularmente, claro. Se você tiver que beber sete copos em uma semana e beber os sete de uma vez, expõe seu organismo ao lado tóxico do álcool. Isso certamente trouxe algum malefício, como gastrite, dor de cabeça ou até um apagão alcoólico, dirigir intoxicado ou fazer sexo sem proteção. Mas se você bebe um copo por dia, o nível tóxico do álcool que atinge o seu corpo é mínimo e pode até ser benéfico.Idec: Existe uma política mundial sobre o consumo do álcool? RL: Está sendo buscada. A OMS tem buscado passar uma resolução para os países, como foi feito com o tabaco. Na área de álcool é mais difícil, pois há alguns países com políticas ambivalentes com relação ao assunto. No Brasil, também não há a liderança que tivemos na questão do tabaco. Por isso batemos periodicamente no governo, para ver se eles acordam e tomam algum tipo de iniciativa. Idec: No sistema de saúde existe algum tratamento direcionado a pessoas que abusam do álcool? RL: O Ministério da Saúde abandonou as famílias e os dependentes químicos. Não há internação para esse tipo de paciente na cidade de São Paulo, por exemplo. E o ministério fechou 80 mil leitos psiquiátricos no país nos últimos seis anos. A maioria, de fato, deveria ser fechada, mas o problema é não terem aberto leitos de qualidade no lugar. Deveria haver novas clínicas, modernas, não aqueles depósitos psiquiátricos que corretamente foram fechados. Essas pessoas ficam desassistidas. A mortalidade por alcoolismo no Brasil é muito alta, e essa falta de assistência leva à morte. A pessoa pode até receber um tratamento clínico no hospital que foque as conseqüências imediatas do alcoolismo, mas o problema em si não será tratado.Idec: Outro problema sério no Brasil é o abuso no consumo de medicamentos. Entre as suas causas estão a automedicação e o uso de fármacos com fins "recreativos". O que é preciso para que isso mude? RL: Até existe regulação, melhoramos muito, principalmente com relação aos calmantes. Para a maioria dos médicos, estamos bem regulados. Mas a regulação e a fiscalização das farmácias ainda é pobre. Se você quiser um calmante, chama o farmacêutico de lado e ele vai lhe vender. Vai cobrar a mais, mas vai vender. Vários pacientes meus conseguem, conhecem o farmacêutico. Não digo que sejam todas as farmácias, mas um bom número delas não vai deixar de vender remédio por falta de receita. A interação das farmácias com os laboratórios farmacêuticos ainda é muito frágil. Idec: Existe um excesso de prescrição por parte dos médicos? RL: Possivelmente. Mas melhorou muito. Os psiquiatras, por exemplo, são bastante comedidos. Acredito que a maioria das prescrições seja feita por clínicos gerais. O Brasil consome muita anfetamina, por exemplo. Consome 70% de toda a anfetamina comprada no mundo, principalmente as mulheres, que acabam tomando essas fórmulas malucas para emagrecer. Combinações de anfetamina, calmante, diurético, laxante e remédio para acelerar a tireóide, são uma bomba. A pessoa vai ficar muito perturbada mentalmente, com um misto de irritabilidade, depressão, ansiedade, não vai conseguir trabalhar, e às vezes levará um bom tempo para se recuperar.Idec: O que levou tantas pessoas a buscarem nos remédios a solução de todos os seus problemas? RL: É uma espécie de otimismo farmacológico. Se a pessoa quer se divertir, ela precisa beber. Se quer perder peso, precisa de alguma coisa que torne mais fácil perder peso. Se quer ficar alegre, precisa tomar alguma coisa. As pessoas querem tudo muito fácil e intensamente, acreditam que a química dará mais intensidade às coisas. É mais uma busca de facilidades irreais. As pessoas gostam de ter soluções fáceis, só que elas não existem.

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