
Marcos Fernandes Gonçalves da Silva†
1. Introdução 1
1. Introdução 1
Recentemente foram publicados no Brasil alguns trabalhos sobre um fenômeno social que deve ser classificado como objeto prioritário do estudo das ciências sociais: a corrupção. Esses trabalhos vão desde compilações de relatórios até a análise antropológica do fenômeno. No entanto, dada a importância e urgência do tema, há uma considerável escassez de estudos sobre corrupção nas ciências sociais propriamente ditas e na economia. Algumas dúvidas poderiam emergir a respeito do interesse do economista e da aplicabilidade da economia ao estudo da corrupção. Todavia, esse fenômeno não somente deveria fazer parte do menu de investigação dos economistas, devido aos triviais custos da corrupção em termos do desenvolvimento econômico e social, mas também porque o método econômico é extensível ao estudo de tal fenômeno. A ciência econômica (economia positiva e política) pode ser entendida como o estudo dos processos de decisão condicionada a restrições: quando há qualquer fenômeno que envolva escolha com restrição surge a escassez e o custo de oportunidade, dois conceitos econômicos fundamentais dentro da teoria da escolha racional, núcleo da teoria econômica. Isto é, a economia pode ser definida, seguindo Robbins (1932), como um método de estudo aplicável a qualquer fenômeno social, seja ele político, psicológico ou antropológico, desde que o mesmo envolva estratégia e escolha com restrição, portanto, escassez e custo de oportunidade. O objetivo deste ensaio é mostrar como o método econômico (ou simplesmente a economia) pode ser aplicado no estudo da corrupção, generalizando argumentos colocados pela sociologia. Becker (1976), por exemplo, nota que as possibilidades cognitivas das ciências sociais ampliam-se dramaticamente com a abordagem econômica do comportamento humano. Como a economia pode ser encarada como um método –ou ainda, como uma forma de “pensar” os fenômenos sociais e biológicos– calcado na idéia de escolha com restrições e custo de oportunidade, a heurística positiva desta ciência e seu domínio cognitivo podem ser ampliados para além de suas fronteiras mais triviais, como o estudo do comportamento dos mercados de bens, serviços e fatores. O imperialismo da economia reflete-se contemporaneamente na sociologia e na ciência política, como no caso das teorias econômicas da política, das teorias do voto, da escolha pública e da ação política em geral. Diante do que será exposto, este artigo sugere a necessidade de aplicação da economia e, mais precisamente, da economia política ao estudo da corrupção. Economia política, no sentido aqui usado, é o estudo de como diferentes regras do jogo social e econômico (as instituições) afetam os sistemas de incentivo (payoffs) com os quais os agentes se defrontam, sejam eles privados ou públicos. Nesse sentido, a economia política presta-se à avaliação das conseqüências de determinados conjuntos de instituições sobre a ação humana. Indicar-se-á neste artigo que a corrupção, do ponto de vista do método econômico, mostra-se intimamente relacionada com a qualidade das regras que norteiam as decisões dos agentes. Em virtude desse fato, abordarei aqui, em primeiro lugar, algumas definições de corrupção, procurando localizá-las teoricamente. Partirei basicamente de um referencial weberiano, analisando as características principais da dominação patrimonialista e do clientelismo vis-à-vis a idéia de modernização administrativa do Estado, por meio da profissionalização da burocracia e da separação formal entre a coisa (res) pública e a coisa (res) privada. Em segundo lugar, ligarei a definição de corrupção à evolução institucional. O argumento básico está calcado no ponto de vista segundo o qual a corrupção, embora seja um fenômeno antediluviano, pode ser definida historicamente, posto que algumas sociedades a circunscreveram institucionalmente no âmbito da ilegalidade e do crime. Essa delimitação do fenômeno, que é acompanhada de sua criminalização, é resultado da evolução das regras que regulamentam a ação dos agentes públicos (políticos e burocratas estatais) e privados com relação à res pública. Examinarei, portanto, quais são os fatores que caracterizam essa evolução na direção do desenvolvimento institucional.
Por fim, apenas mostrarei como a economia política moderna pode oferecer, principalmente com a concepção de rent-seeking, uma teoria geral da corrupção, partindo-se da generalização do pressuposto de “homo oeconomicus” racional e do estabelecimento de relações entre instituições e sistemas de incentivo. Por exemplo, o “patrimonialismo”, com suas derivações “clientelísticas” (em inglês, pork barrel politics), poderia ser descrito como um tipo de organização institucional que induz os agentes à busca estratégica e competitiva de transferências ilegais de renda, resultantes de corrupção, dentro da sociedade. Note-se, igualmente, que as modernas abordagens de economia política, de teoria do rent-seeking e da corrupção6 mostram como o método econômico de análise de fenômenos sociais pode ser aplicado ao estudo de um fato que possui, inclusive, dimensões econômicas stricto sensu – já que muito dessa literatura destaca os custos da corrupção em termos de eficiência, justiça e crescimento econômicos.
2. A definição e a localização histórica do conceito de corrupção
A palavra corrupção (ou corrução) possui a mesma acepção de suas correlativas em francês, italiano e espanhol, bem como em inglês, e têm uma mesma origem na palavra latina corruptione. Essa palavra denota decomposição, putrefação, depravação, desmoralização, sedução e suborno. Normalmente, associamos corrupção a um ato ilegal, no qual dois agentes, um corrupto e um corruptor, travam uma relação “fora-da-lei”, envolvendo a obtenção de propinas. O senso comum identifica a corrupção como um fenômeno associado ao poder, aos políticos e às elites econômicas. Mas, igualmente, considera a corrupção algo freqüente entre servidores públicos (como policiais e fiscais, por exemplo), que usam o “pequeno poder” que possuem para extorquir renda daqueles que teoricamente corromperam a lei – ultrapassando o sinal vermelho ou não pagando impostos. Na verdade, existem muitos sentidos que podem ser atribuídos à palavra corrupção, mas há um denominador comum a todos: ela envolve a interação entre pelo menos dois indivíduos ou grupos de indivíduos que corrompem ou são corrompidos, e essa relação implica uma transferência de renda que se dá fora das regras do jogo econômico ou político-legal stricto sensu. Considere-se, por exemplo, algumas definições do fenômeno: “[Corrupção é] a prática do uso do poder do cargo público para a obtenção de ganho privado, à margem das leis e regulamentações em vigor.” “Corrupção é o comportamento de agentes públicos, que foge das normas aceitáveis, para atingir fins privados.”"Corrupção é o mal uso do poder político para benefícios privados” “[Corrupção governamental é] a venda, por parte de funcionários públicos, de propriedade do governo tendo em vista ganhos pessoais.” Estas definições envolvem: i) os conceitos de burocracia e de agente político; ii) uma noção de separação entre a res pública e a res privada; e têm implicitamente iii) a idéia de transferências de renda fora das regras do jogo econômico. Analisarei ponto a ponto esses aspectos11.Em primeiro lugar, a noção de burocracia que permeia boa parte da literatura em ciênciassociais, e especificamente em sociologia aplicada à administração, é essencialmente weberiana. Weber (1982) define a burocracia dentro de um modelo racional-legalista, criando um “tipo-ideal” burocrático. Nesse modelo, a burocracia (pública e privada) é organizada dentro de uma hierarquia cuja função é a obtenção, da forma mais eficiente e eficaz possível, dos fins programados. No caso da burocracia pública, os agentes que dela participam possuem, nessa concepção do tipo-ideal weberiano, uma formação profissional adequada às funções desempenhadas, são profissionalizados e agem de acordo com as chamadas normas burocráticas. As características principais dessa burocracia são a imparcialidade e a separação entre os fins privados e públicos. Um problema implícito a tal visão de burocracia é o fato de ela partir de uma distinção entre a racionalidade pública e privada, desconsiderando o papel da estrutura de incentivos gerada dentro de um conjunto de regras e valores. Em verdade, os agentes públicos podem se comportar como “caçadores-de-renda”, como qualquer agente dentro do mercado. Segundo essa concepção, todos os agentes públicos tendem a agir de acordo com princípios privados e, se houver a possibilidade, buscam transferir renda de outros setores da sociedade. No entanto, suas ações são condicionadas por regras e um sistema de incentivos que criam determinados resultados e, se a profissionalização e a eficiência são um valor, eles também agirão de acordo com essa restrição. O burocrata é um agente guiado por incentivos privados-individuais, com racionalidade limitada e com comportamento de auto-preservação. No entanto, cabe salientar que suas ações se dão dentro de um conjunto de regras que podem ser superiores ou inferiores, no sentido de gerarem incentivos que condicionam ou não o comportamento para atividades como a corrupção. Entrementes, a definição de burocracia dentro do marco weberiano estrito (burocracia como um tipo-ideal) possui um sentido normativo importante, qual seja: a gestão da coisa pública deve ser feita por profissionais organizados hierarquicamente e selecionados de acordo com critérios meritocráticos.
A outra suposição que reside detrás das definições de corrupção está na idéia de separação entre res pública e res privada. Em primeiro lugar, sustento que essa separação é algo questionável a priori dentro dos marcos da teoria econômica positiva, já que não existe riqueza pública ou bem público. O governo (excetuando-se o setor produtivo estatal), nas democracias constitucionais, apenas se apropria legalmente de parte da renda nacional para produzir bens públicos e essa renda é administrada pelos burocratas e políticos. Ademais, os políticos, que são teoricamente os public choosers, tomam as decisões alocativas de acordo também com suas respectivas funções-objetivo. Sendo o mercado político imperfeito, essas decisões tendem a não refletir o que seria, a rigor, uma escolha pública. Logo, os políticos, assim como os burocratas, devem ser “modelados” como agentes com ações auto-interessadas (self-seeking). A definição de res pública somente pode ser feita do ponto de vista estritamente normativo, o qual parte do princípio segundo o qual os agentes públicos devem zelar por um estoque de recursos que é retirado da sociedade para a realização de atividades públicas. Por fim, as definições de corrupção supõem implicitamente transferências de renda dentro da sociedade. Essas transferências ocorrem devido ao uso da máquina governamental. Isto se aplica tanto ao caso do político que recebe propinas de um grupo de pressão para aprovar um determinado projeto, como no caso do policial que se apropria de uma renda, retirada do Estado, quando aceita um suborno em vez de aplicar uma multa. A idéia de corrupção e as várias definições possíveis do fenômeno em questão envolvem igualmente uma noção de legalidade e ilegalidade. A definição do que é legal ou ilegal é condicionada pela história e pelo conjunto de valores de uma sociedade. Nas sociedades patriarcais, por exemplo, a sucessão de poder legítima era ditada pelo sangue, e não havia separação normativa clara entre a coisa pública e a privada. Nas monarquias pré-constitucionais o soberano não separava de sua própria riqueza pessoal os impostos cobrados. Mesmo no Império Romano, no qual existia uma certa separação entre os impostos e a riqueza do imperador, a predominância de uma sociedade patriarcal e patrimonialista determinava uma promiscuidade entre a res pública e a res privada. No entanto, pode-se considerar exemplos contemporâneos onde diversas culturas têm concepções distintas sobre o que é legal ou ilegal16. A despeito deste fato, pode-se cunhar uma definição legalista de corrupção no setor público, da qual me aproximo: “[...]a corrupção é o uso da função pública, por parte do burocrata ou do político, para a obtenção de ganhos privados”.
Essa definição é normativa, dado que o uso da coisa pública tem um caráter ilegal definido subjetivamente. Mas, assumirei explicitamente esse elemento normativo e ampliarei ainda mais essa definição, de tal forma a torná-la operacional. Essa definição deve levar em consideração que o Estado, calcado numa democracia constitucional, deve ter seus poderes de extorsão de renda e propriedade limitados, e que sua gestão deve ser feita por burocratas profissionais organizados hierarquicamente e escolhidos de acordo com o mérito. Esse ponto de vista pode ser acusado justamente de “ocidental”. De fato, assumirei aqui esse caráter normativo da definição de corrupção, dado que esse tipo de organização do Estado é encarado por mim como tipo-ideal. Então, apesar das objeções que fiz ao modelo weberiano, considero-o como referência de comportamento público, com o seguinte adendo: determinadas regras devem existir para disciplinar o comportamento dos agentes. Quanto ao comportamento dos políticos, ele deve ser encarado como restrito a um conjunto de regras que devem buscar o controle da ação predatória sobre a res pública. Logo, a despeito da ação auto-interessada e caçadora-de-renda dos agentes públicos, suponho que suas ações devem estar delimitadas por um marco institucional que defina normativamente o que é privado e o que é público e o que é o mal uso da coisa pública. O Estado moderno, constitucional e democrático, é constituído por agentes públicos que arrecadam legalmente fundos privados da sociedade. A partir do momento que isso ocorre, há incentivos para que os diversos setores organizados da sociedade tentem desviar rendas em benefício próprio. A instituição do Estado carrega implicitamente, portanto, um conflito distributivo potencial entre os agentes privados que tentam se fazer representar politicamente através de grupos de pressão. Essas práticas podem ser acompanhadas pela defesa dos interesses privados dos próprios agentes públicos. Com um sistema legal estabelecido, pode-se minimizar a possibilidade de privatização dos recursos públicos decorrente do conflito distributivo entre todos os agentes da sociedade. Numa democracia estabelecem-se, a princípio, regras que limitam o poder dos agentes públicos e que procuram aproximar o resultado de suas ações do “bem público”. Se as regras são eficientes nesse sentido, não há muita possibilidade de desvios e garante-se, do ponto de vista da justiça econômica, uma distribuição de recursos públicos que segue critérios normativos previamente acordados como corretos e legais. Pode-se definir esse mundo como um tipo-ideal de democracia e economia. Sua importância normativa reside no fato de justamente indicar um “estado de mundo” desejável a priori. Desejável pois minimiza transferências injustas e ilegais de renda e busca o controle sobre as ações dos agentes públicos. Mas, evidentemente, esse conceito de democracia é datado e localizado, moderno e ocidental em essência. A despeito dessas observações, é preciso uma definição ampla de corrupção dentro da esfera pública que aceite os elementos acima mencionados como ponto de partida. Minha definição é a seguinte: A corrupção pública é uma relação social (de caráter pessoal, extramercado e ilegal) que se estabelece entre dois agentes ou dois grupos de agentes (corruptos e corruptores), cujo objetivo é a transferência ilegal de renda, dentro da sociedade ou do fundo público, para a realização de fins estritamente privados. Tal relação envolve a troca de favores entre os grupos de agentes e geralmente a remuneração dos corruptos com o uso da propina e de quaisquer tipos de incentivos, condicionados estes pelas regras do jogo e, portanto, pelo sistema de incentivos que delas emergem. Cabe salientar que minha definição de corrupção, como qualquer outra, possui limitações e características que lhe são próprias. Seu caráter normativo explícito pressupõe que a corrupção seja um ato ilegal, criminoso e ilegítimo. Igualmente não quero dizer que a corrupção seja um fenômeno datado e regional (ocidental); pelo contrário, é universal, “transistêmica” e perpassa a história da humanidade. Apenas desejo salientar que considero a formação de instituições de controle, direito e garantia do bem público um fato moderno e associado às democracias (com imprensa livre) e às economias de mercado. Além desses fatos, assumo explicitamente que a corrupção é um ato imoral e de traição da confiança do público em suas instituições, como salienta Alatas (1990), p.1.
3. Evolução institucional e os limites da corrupção
Minha definição de corrupção está presa a uma noção de Estado moderno e democrático, profissionalizado, com um mercado político desenvolvido e com um poder judiciário constituído. Contudo, faz-se mister abordar a evolução de algumas regras e valores que geraram esse conjunto de instituições modernas e que definem o espaço legal e legítimo dentro do qual se pode estabelecer o que é corrupção, quando ela aparece, quais são seus custos e como é possível controlá-la. É em função dessa análise que definirei o que é desenvolvimento e subdesenvolvimento institucionais. Mas antes disso, preciso reconstruir alguns conceitos e avançar um pouco sobre a história ocidental. Defino o Estado pré-moderno como aquele em que as relações normativas entre o público e o privado não estão estabelecidas nos moldes das modernas democracias capitalistas. O Estado pré-moderno possui quatro características básicas: i) ele é uma extensão da família real (da monarquia) e não existe uma clara separação entre o orçamento do rei e o orçamento público; os “dinheiros” do soberano se confundem com os do Estado; ii) é encarado como propriedade privada do soberano e de sua família; iii) é confundido com a sociedade, não existindo uma clara definição de sociedade civil; e iv) constitui-se naquilo – e essa é a sua principal característica – que Weber definia como patrimonialismo. Weber construiu uma tipologia abrangente para analisar o processo de racionalização e modernização da sociedade. Essa tipologia está calcada, entre outras coisas, nos conceitos de patriarcalismo e patrimonialismo ou dominação patrimonial. Segundo Weber (1984), pp. 184-84: “Denomina-se patriarcalismo a situação em que dentro de uma associação, na maior parte das vezes econômica e familiar, exerce a dominação (normalmente) uma pessoa de acordo com determinadas regras hereditárias fixas. Denomina-se dominação patrimonial toda dominação orientada primordialmente pela tradição.” O patrimonialismo é uma ampliação, para a sociedade como um todo, da estrutura de dominação patriarcal, e esse conceito é fundamental na formação de um tipo-ideal que representa o Estado pré-moderno. A dominação patrimonialista implica a incorporação de indivíduos da família do soberano e da corte na administração do domínio, da economia (tributos) e da guerra. Mas a principal diferença entre o patriarcalismo e o patrimonialismo é que o último incorpora uma estrutura administrativa. O sistema de remuneração dentro do patrimonialismo pode ser feito pela delegação de direito de apropriação de tributos pelo funcionário-súdito ou simplesmente pela concessão de terras ou de direitos de produção. Obviamente essa visão de sociedade se aproxima daquilo que conhecemos como feudalismo. Uma característica importante do patrimonialismo é que ele se estrutura sobre uma burocracia formada pelo nepotismo e por critérios pessoais, não implicando nenhum critério meritocrático, a princípio. O processo decisório também não é formalizado, e é dado principalmente pela tradição, e, embora haja uma hierarquia, os funcionários do domínio não são profissionalizados e tampouco assalariados, no sentido capitalista do termo. A corrupção assume uma feição peculiar nas sociedades patrimonialistas, já que não há uma clara distinção legal e normativa (constitucional) entre a res privada e a res pública. É natural a mistura entre o privado e o público, entre as posses do soberano e o orçamento do Estado. Mas isto não quer dizer quenão houvesse, em determinados casos históricos, uma consciência acerca do fenômeno. No entanto, o estudo de alguns exemplos retirados da história européia mostram que a consciência clara da corrupção e a emergência de regras e leis que tinham por objetivo minimizá-la surgem com o Estado moderno, com a separação legal e moral entre o soberano e o poder constitucional, com o fortalecimento das democracias e com a, transição da dominação patrimonialista para a administração burocrática racional e profissional. No caso da Inglaterra, desde a Idade Média, formou-se um Estado calcado na dominação patrimonialista, na qual os administradores do Reino eram recrutados de acordo com critérios pessoais e remunerados através do direito de participar da arrecadação de impostos e da divisão das terras. Esse sistema de relações pessoais se estende até a era moderna, constituindo uma rede clientelística que envolve toda a hierarquia social. Os administradores dependem da confiança do soberano, que deles espera somente a fidelidade; a avaliação dos administradores não depende de qualquer critério meritocrático, mas simplesmente de avaliações pessoais. O mais importante é que as relações pessoais eram determinantes para a escolha dos administradores e para a própria formação do bloco de poder político. Essa estrutura patrão-cliente resiste inclusive à separação entre Igreja e Estado e ao início da Era Tudor. Durante a Restauração, a dominação patrimonialista foi fundamental para garantir o controle do rei sobre o parlamento. A compra de votos e a concessão de títulos bizarros eram táticas comuns usadas para se obter o apoio dos parlamentares. O século XVII é particularmente importante do ponto de vista da reforma de algumas estruturas do Estado patrimonialista inglês, mas também é um período traumático, com crises políticas e sociais sucessivas e com o florescimento violento de novas relações calcadas no trabalho assalariado e na manufatura. Dentro de um quadro social cada vez mais grave, tende a crescer a revolta popular –normalmente reprimida com extrema violência– contra as elites e seu comportamento perdulário e corrupto. A chamada “velha corrupção” inglesa do século XVIII proliferou ferozmente dentro de um Estado parasita, fraco e privatizado por sinecuras e propinas, no qual tanto Whigs como Torries assumiam uma postura predatória. Todavia, é nesse século que se inicia a separação formal entre o orçamento do governo e o patrimônio real da Inglaterra, dentre outras reformas que viriam a aperfeiçoar o funcionamento o Estado. Em 1782, é implementado um sistema de controle dos gastos reais e definido formalmente o orçamento público. Essa separação irá se intensificar até a distinção formal entre os bens da família real e do Estado. Por exemplo, a necessidade do aval do parlamento sobre o orçamento da família real surge na Era Vitoriana. Ademais, diversas medidas de controle sobre o orçamento, e que determinavam disciplina fiscal, foram criadas nesse período. O sistema de controle orçamentário desenvolveu-se com a utilização de métodos contábeis e com a constituição da figura do Auditor Geral (Auditor General). Tanto as apropriações orçamentárias como o controle de caixa e a transparência orçamentária foram garantidos por essa instituição e pelo Comptroller. Em 1834, foram eliminadas as sinecuras e coibidas as vendas de cargos e o uso dos mesmos para fins de compra e venda de votos. Já em 1816 foi introduzido o assalariamento dos funcionários e, em 1859, um sistema de previdência pública. Em 1870, surge a obrigatoriedade do concurso público para a ascensão a cargos do Estado. No entanto, a rigor pode-se dizer que, principalmente na Era Vitoriana, os resquícios formais do patrimonialismo e do clientelismo dentro da máquina do Estado foram paulatinamente eliminados e passou a existir, de fato, uma burocracia profissional que se aproxima do tipo-ideal weberiano. Mas cabe salientar que as regras do jogo e as instituições criadas desde a segunda metade do século XVIII formaram o arcabouço a partir do qual se restringiu o comportamento dos agentes públicos. Portanto, a aproximação de um tipo-ideal de administração do Estado existe, não porque as pessoas mudam, mas principalmente porque as regras que emergiram criaram um sistema de incentivos específico. Dentre essas regras, é claro que existe um sistema punitivo e legal. O exemplo mais claro acerca do papel do sistema punitivo está no caso do Corrupt Practices Act de 1854, que tentava inibir a compra de votos e a propina. Em 1883, outra lei complementar limitava os gastos em campanha e tornava as penas mais severas. Paulatinamente, o mercado político também passava a ser mais disciplinado e a ampliação da democracia e do controle sobre o comportamento público dos políticos contribuia para a eliminação, pelo menos parcial, das práticas clientelísticas comuns ao patrimonialismo. No meu entender, a inibição dessas formas de relação pessoal definiram, no caso da Inglaterra e de outros países que evoluíram institucionalmente, o espaço legal e moral que distingue entre o que é e o que não é um ato corrupto no do contexto do Estado moderno e das sociedades democráticas. Faz-se útil um breve exame paralelo da evolução institucional da Inglaterra e da França para mostrar como a corrupção foi se criminalizando. O exemplo mais cabal do que hoje é considerado corrupção, e no passado não o era, é a compra e venda de postos públicos. Essa prática, considerada comum em alguns grandes impérios do oriente, foi amplamente utilizada na França medieval e durante o Absolutismo. O detentor de um cargo público renunciava e passava o posto a um parente (nepotismo) ou simplesmente vendia-o em troca de dinheiro ou bens. Essa prática tornou-se tão comum durante o século XVII que, em 1604, foi instituído um imposto sobre vendas de cargos (paulette). Dada a habitual necessidade do Estado absolutistamercantilista de obter receita fiscal, a prática de venda de cargos públicos foi até incentivada pelo governo. Um outro tipo de apropriação da res pública, hoje considerada corrupção, é a venda do direito de arrecadar impostos. Na França, essa prática foi extremamente comum até a Revolução Francesa. Como observa Braudel (1983, pp.538ss), a ausência de uma estrutura administrativa que permitisse uma arrecadação mais eficiente, realizada por um corpo de funcionários governamentais, propiciou a proliferação desse sistema privado de coleta de impostos. No caso francês, foi até criado um monopólio, denominado Ferme Générale, constituído por alguns indivíduos com direito comprado de arrecadação, geralmente burgueses em ascensão. Como era de se esperar, grande parte da arrecadação foi roubada – privatizada. No caso da Inglaterra, a venda de cargos representou uma etapa intermediária, de transição, entre a dominação patrimonialista medieval stricto sensu e a formação de uma burocracia profissional. A venda de cargos foi importante inclusive para a penetração dentro do Estado de elementos da burguesia mercantil e, posteriormente, manufatureira. Entretanto, essas práticas foram sendo paulatinamente substituídas e a corrupção pública, de políticos e funcionários, passou a ser definida como crime, tanto na Europa como nos Estados Unidos. Principalmente durante os séculos XIX e XX, a profissionalização da administração pública e o aperfeiçoamento dos controles sobre a atividade dos políticos, por meio da imprensa e do exercício do voto nas modernas democracias, geraram uma diminuição –não a eliminação– das funções patrimonialistas. As relações com a coisa pública e entre os indivíduos que a administram tornaram-se mais impessoais: o mérito e a competência profissional substituíram gradualmente a patronagem, o clientelismo e o nepotismo. Por que isso aconteceu? A inovação institucional mais importante para a mudança da estrutura do Estado e para a separação formal mais clara entre a coisa pública e a privada foi, sem dúvida, a democracia constitucional. A democracia e o seu fortalecimento colaboram para controlar, do ponto de vista da lei, o uso da máquina estatal e o comportamento de políticos e agentes públicos em geral. A institucionalização de um mercado político, no qual, a despeito de suas imperfeições, os indivíduos podem escolher seus mandatários, constitui uma forma de poder jamais imaginada em sociedades centralistas e autoritárias. E, somando-se a isso, nas democracias existe uma definição constitucional dos direitos de propriedade e dos limites do Estado com relação aos mesmos. Esses direitos de propriedade açambarcam também a coisa pública e o estabelecimento dos limites sob os quais aqueles que a administram podem agir. Numa sociedade patrimonialista, essas delimitações são algo fluidas e, por sua própria natureza, ambíguas. Na democracia, os cidadãos exigem, ou pelo menos podem exigir, em geral, maior eficiência e disciplina por parte daqueles que executam as escolhas públicas. Ademais, é da essência do próprio sistema de poder inerente à democracia a fiscalização do comportamento público por parte da oposição e da imprensa livre. Historicamente, pelo menos no Estados Unidos e no Reino Unido, a imprensa tem desempenhado uma função importante na fiscalização dos agentes públicos. No primeiro caso, ela teve um papel determinante pelo menos na revelação para o público das práticas políticas clientelísticas que dominavam a política norteamericana no início deste século. Uma objeção pode ser levantada à minha definição de corrupção e à forma como eu a associo com a minimização das relações de dominação patrimonial e clientelísticas: não se pode falar, então, em corrupção em sociedades pré-modernas, pré-industriais e prédemocráticas? Esta questão é extremamente complicada e envolve o próprio cerne do meu conceito legalista e ocidental de corrupção. Poder-se-ia admitir dois pontos de vista aparentemente antitéticos: i) a corrupção é um fenômeno “natural” em sociedades pré-modernas, no sentido weberiano do termo, ou ii) a corrupção é somente um fenômeno moderno, intrínseco às democracias constitucionais que definem formalmente a sua ilegalidade. Essas duas afirmações são complementares e não excludentes. Deve-se encarar esse fenômeno social dentro de um constructo teórico que se aproxima de um tipo-ideal de organização social e do Estado que, enquanto tal, envolve tanto uma dimensão histórica, como uma teórica – abstrata. Eu encaro a formação do Estado regulado por regras democráticas e o estabelecimento de uma burocracia profissional como fatores fundamentais para a definição formal do público e do privado. Essa separação entre as duas res funda a própria república moderna, na qual o poder do Leviathan e daqueles que exercem seu poder é limitado e controlado ao máximo. Posto isso, a corrupção é um fenômeno histórico que, portanto, retrocede aos períodos mais remotos da história. No entanto, a tolerância e a legitimidade associadas à corrupção diminuem sensivelmente com a evolução institucional sofrida por determinadas sociedades ocidentais, evolução esta que é congruente com a formação das modernas burocracias, com a generalização das relações econômicas de mercado e das democracias constitucionais. Pode-se então definir, precisamente, o que são desenvolvimento e subdesenvolvimento institucionais com relação ao fenômeno da corrupção. Uma sociedade é desenvolvida institucionalmente quando possui regras formais (leis) e informais (normas, códigos éticos) que delimitem: i) o que é público e o que é privado; ii) os poderes do Estado no que se refere aos direitos de propriedade; iii) a liberdade de ação dos agentes públicos; e que coíbam iv) as transferências de renda que surgem por uso ilegal e ilegítimo do aparato estatal. Esses predicados estão associados à existência de uma burocracia profissional e à democracia constitucional. Obviamente, a definição de subdesenvolvimento institucional é a antítese desta. Cabe notar que as sociedades onde a dominação patrimonialista predominava, como as prémodernas, são encaradas, portanto, como subdesenvolvidas institucionalmente. Mas isso não quer dizer que inexistam sociedades contemporâneas nas quais não prevaleçam essas relações e que, portanto, não são subdesenvolvidas nesse sentido. Pelo contrário, está aí o busílis da questão. Várias sociedades passaram por evoluções institucionais que conduziram à limitação, ao controle e à criminalização da corrupção. Mormente, esse processo foi engendrado pela minimização das relações de dominação patrimonialista e das relações clientelísticas. A análise do processo de modernização institucional e de seu impacto sobre o controle da corrupção conduz imediatamente ao estudo das possíveis conexões entre evolução institucional, comportamento econômico racional e corrupção. Uma economia política da corrupção pode incluir tanto a influência das instituições, regras e valores sobre a ação, como a própria hipótese de ação racional condicionada por incentivos, propiciando, dessa forma, uma estrutura analítica mais completa e geral do que aquelas oferecidas pela sociologia ou pelos estudos de caso antropológicos.
4. A necessidade de um programa de pesquisa em economia política da corrupção
Mostrarei aqui as três principais visões de corrupção dentro da moderna economia política (positiva). Elas são complementares e formam, como procurarei indicar, um arcabouço teórico útil para a análise da relação entre regras, instituições, motivações dos agentes, comportamento corrupto e conseqüências econômicas e sociais da corrupção. A primeira está ligada à teoria dos caçadores-de-renda stricto sensu; a segunda, à teoria econômica da propina; e a terceira, à relação entre desempenho econômico (eficiência e crescimento) e corrupção. A teoria dos caçadores-de-renda foi desenvolvida basicamente por Krueger (1974) e Tullock (1967). Segundo essa visão, os agentes econômicos possuem uma motivação básica, qual seja, buscar o ganho privado a qualquer preço. Entretanto, essa busca se dá dentro de um conjunto determinado de regras, de acordo com as preferências individuais e restrita, num determinado instante de tempo, a uma renda nacional: aí está o ponto central do argumento. Os agentes procurarão obter o máximo de renda possível, dentro ou fora das regras da conduta econômica e social. Entretanto, essa obtenção de renda pode implicar somente transferências dentro da sociedade, via monopólios e diversas formas de privilégios. A atividade ligada à busca dessa renda é chamada de caçadora-de-renda e não é produtiva, no sentido de agregar valor ao produto nacional. Analisemos o caso no qual os agentes caçam renda dentro das regras do jogo. Imagine a seguinte situação: num determinado país, há um monopólio constitucional que garante a uma firma o direito de explorar e refinar petróleo. A teoria tradicional de estruturas imperfeitas de mercado argumenta que o monopolista terá o seu excedente (excedente do produtor) aumentado às custas de uma redução do bem-estar dos consumidores. A sociedade como um todo (inclusive os gerentes, operários e acionistas da empresa monopolista) perde uma parte do bem-estar, dado que em monopólio uma determinada quantidade do bem produzido não será negociada. A rigor, fora essa perda (dead weight loss), a transferência entre consumidores e o produtor implicaria uma perda líquida zero. Todavia, há de fato uma perda líquida para a sociedade. O monopolista aloca recursos produtivos para a obtenção e manutenção do seu direito de monopólio, que envolve a atividade de lobbing, propaganda e investimento de talentos em outras atividades improdutivas associadas à pressão política e à formação da imagem da empresa estritamente ligada ao interesse de manter o monopólio. Outro exemplo de atividade caçadora-de-renda encontra-se na imposição de barreiras ao comércio e ao protecionismo33. Nesse caso, a teoria microeconômica tradicional considera os custos sociais em termos de perda de bem-estar devido ao peso-morto gerado pela proteção e constata que existem transferências de consumidores para produtores domésticos. Fora o peso-morto, não há perda líquida para a sociedade. Mas, como no caso do monopólio, as em- presas que desfrutam de reservas de mercado empregam recursos financeiros e humanos em atividades improdutivas, principalmente lobbing. A atividade caçadora-de-renda constitui um mercado competitivo, isto é, diversos agentes tentam, na medida do possível, conquistar privilégios e transferir renda de outros grupos. Entretanto, somente alguns agentes ou grupos de agentes conquistarão seus privilégios; o resultado final implica um desperdício de recursos econômicos. Esse custo associado à atividade caçadora-de-renda tem uma dimensão qualitativa importante. Muitos recursos humanos de elevado talento são alocados nessas atividades improdutivas, que são altamente rentáveis e, por essa razão, as transferências de renda dentro da sociedade tendem a penalizar os talentos alocados em atividades produtivas. Essa transferência de renda é acompanhada, portanto, de um considerável desperdício de recursos e de talento: há um elevado custo de oportunidade associado à atividade caçadora-de-renda. Mas a essência da atividade caçadora-de-renda está na própria existência de um sistema tributário. Essas atividades aparecem principalmente porque existe o Estado e a arrecadação tributária. Há um incentivo para que cada facção dentro da sociedade exerça pressão sobre o governo para transferir renda na sua direção, por via de subsídios, isenções e outros mecanismos. Nesse caso, também são alocados recursos econômicos improdutivamente. O outro custo adicional associado a atividade caçadora-de-renda refere-se às transferências de renda. Numa sociedade competitiva, os indivíduos tendem a ser remunerados de acordo com suas respectivas produtividades – salvo na presença de imperfeições de mercado. Descontado o tributo sobre a renda de um indivíduo, o mesmo pode não ser alocado necessariamente de acordo com critérios técnicos de políticas públicas, mas em função do poder relativo de determinados grupos dentro da sociedade. Do ponto de vista de justiça econômica, a distribuição da renda após a “alocação rent-seeking” poderá premiar mais o poder de influência do que o mérito e a capacidade. Portanto, numa sociedade dividida em facções competitivas que buscam transferir renda, o resultado final do jogo social tende a ser de soma negativa: os custos da atividade caçadora-de-renda são maiores que os benefícios privados obtidos por alguns agentes ou grupos. O incentivo para que os agentes busquem mais atividades caçadoras-de-renda do que atividades produtivas está no fato de que determinadas regras do jogo econômico, político e social – instituições, leis, regulamentações governamentais, valores morais e regras autoimpostas – geram um sistema de incentivos (payoffs) que determina a alocação dos recursos econômicos (financeiros e humanos). Caso seja mais rentável para um economista trabalhar como lobista do que como analista de projetos, ele decidirá, enquanto homo oeconomicus, pela primeira ocupação. As regras do jogo formam, tecnicamente, a matriz de payoffs dentro da qual os indivíduos e grupos tomam suas decisões. Inclusive, essas regras podem diretamente obrigar os agentes a exercer as atividades caçadoras-de-renda. O excesso de regulamentação é um exemplo disso: em muitos países em desenvolvimento, os entraves burocráticos para a abertura de negócios são tantos que os agentes vêem-se forçados a investir recursos (tempo, talento) em atividades improdutivas. A relação entre a teoria do caçador-de-renda e a corrupção dá-se na própria definição da função objetivo dos agentes públicos e privados e na estrutura de incentivos que predomina dentro da sociedade. A rigor, todos os agentes, se puderem, caçam renda dentro e fora da lei, caso não haja nenhuma consideração de restrição moral ou legal que imponha algum custo à ação. O clientelismo pode ser intepretado como um arranjo dos grupos de interesse que permeiam uma determinada sociedade, grupos esses compostos por caçadores-de-renda. Do ponto de vista estratégico, se os agentes públicos e privados têm que se organizar na forma de “panelinhas”, por exemplo, para garantir a sobrevivência econômica e política, fá-lo-ão. De outra forma, entrementes, poderão ser perdedores líquidos de renda antes mesmo de entrarem no jogo competitivo entre as diversas facções da sociedade. É evidente que, como numa loteria, muitos recursos e talentos vão ser alocados em atividades improdutivas pelas diversas panelinhas e clientelas. Alguns ganharão, muitos perderão e a sociedade como um todo estará desperdiçando recursos econômicos. Do ponto de vista econômico, portanto, a competição corruptiva entre panelinhas cria custo e ineficiência. Os agentes corruptos e corruptores podem ser modelados como agentes caçadores-derenda. O que diferencia o agente caçador-de-renda stricto sensu é fato de que os corruptos agem fora da lei. Segundo Jagannathan (1987, pp.108-25), existe muita aderência desta visão de economia política da corrupção em países em desenvolvimento. Os programas sociais e de desenvolvimento são geridos por agentes públicos que se deparam com um excesso de demanda sobre os recursos disponíveis. É elevado o incentivo para o recebimento de propinas e para a participação, como agente caçador-de-renda, em grupos de patrões-clientes. As conseqüências disso são nefastas, principalmente em se tratando de países pobres. Essa visão de corrupção como resultado do comportamento caçador-de-renda fora da lei pode ser complementada pela economia política da propina36. O estudo econômico das instituições burocráticas e legais deve levar em consideração os fenômenos do suborno e da propina, sobretudo devido ao fato deles estarem ligados ao conflito inerente entre o bem público e o mercado. Iniciemos o argumento imaginando um mundo econômico perfeito. Numa situação de competição perfeita, as relações de troca entre os agentes privados é impessoal e visa a maximizar a função utilidade de cada um. Um prestador de serviço vende seus préstimos a qualquer outro agente desde que a venda lhe seja satisfatória do ponto de vista privado; mutatis mutandis, o comprador de um serviço demanda-o de qualquer agente, desde que a troca o conduza ao máximo de bem-estar esperado. Num Estado perfeito, composto por burocratas profissionais e políticos cujo comportamento é estritamente público, as decisões também não envolvem qualquer critério pessoal. Os agentes públicos simplesmente maximizariam uma função de bem-estar social e proveriam, da forma mais eficiente possível, a sociedade de bens públicos. O mundo em que existe corrupção e propina se afasta desse modelo puro exatamente daquilo que o direcionamento da análise é relevante: no estabelecimento, de uma forma ou de outra, de relações pessoais entre agentes públicos e privados. O mesmo pode ser aplicado à empresa privada, nas quais as relações pessoais podem substituir as impessoais e gerar a chamada corrupção privada. A propina pode ser definida, a despeito da generalidade, como o meio financeiro de se transformar relações impessoais em pessoais, geralmente visando a transferência de renda ilegal dentro da sociedade ou a simples apropriação indevida de recursos de terceiros ou a garantia de tratamento diferenciado – como na maior parte dos casos de corrupção em baixos níveis de administração. A corrupção política, dentro dessa visão, pode ser encarada da seguinte forma: os agentes públicos em geral e os políticos em particular agem como homus oeconomicus. Os políticos têm como objetivo principal a eleição, a reeleição e a obtenção de um fluxo de renda. O mercado político não é perfeito e os eleitores não possuem controle total sobre as ações de seus escolhidos. Ademais, existem muitas assimetrias de informação e o próprio processo de negociação política (logrolling) gera espaço para o pagamento de serviços de representação de interesse de lobbies. Supondo a existência de algum controle sobre o comportamento dos políticos, há um trade-off entre a obtenção de propinas e a possibilidade de reeleição. Por exemplo, caso fique claro à base eleitoral de um deputado que ele defende mais o interesse de alguns grupos de pressão do que interesses mais genéricos das bases que o elegeram, aumentará a possibilidade de o mesmo não se releger, porém a propina implícita à representação dos lobbies pode compensar, na margem, a perda da eleição seguinte. O controle sobre a propina dependerá, em grande parte, da restrição moral de cada político à mesma e do interesse público com relação ao comportamento político37. Em geral, a corrupção através de propina está ligada, em última instância, às imperfeições do mercado de bens e serviços e do mercado político. Geralmente os governos são grandes compradores de bens de capital e de obras de infra-estrutura cujos preços são dificilmente estabelecidos dentro de uma lógica de mercado. As obras públicas envolvem grandes quantidades de dinheiro que são manipuladas por diversos agentes públicos e privados, os quais podem estabelecer muitos argumentos que justificam preços que podem implicar superfaturamento e divisão de propinas entre as partes envolvidas. Como há um problema de controle e supervisão do comportamento dos agentes públicos que tomam essas decisões econômicas e financeiras, abre-se margem para a corrupção. A terceira e mais moderna intervenção da economia sobre o tema da corrupção vem do trabalho de Shleifer & Vishny (1993). A preocupação central aqui é a relação entre instituições e corrupção e a relação da mesma com o crescimento econômico. O argumento básico sustenta que a corrupção aparece com maior vigor quando: i) as instituições geram excesso deregulamentação e de centralização estatal; e ii) as instituições políticas não estão sob controle da maior parte da sociedade. O maior impacto da corrupção, em termos econômicos, está no seu custo para o crescimento. A propina, ao contrário dos impostos, envolve alguma distorção no emprego da máquina pública e, além disso, deve ser mantida em segredo, o que gera um custo adicional na sua obtenção – formação e manutenção de uma rede de funcionários para o esquema de corrupção, manipulação de informações orçamentárias etc. O resultado da corrupção, em termos de custos, pode ser a redução do crescimento econômico –alocação de recursos em atividades improdutivas – e a deformação das políticas sociais de desenvolvimento. Existe um outro exemplo dos custos da corrupção associados ao crescimento. Os investimentos externos em um determinado país podem ser prejudicados quando diversas agências estatais, envolvendo políticos e burocratas, exigem propinas dos agentes privados para a implementação de projetos39. As empresas e investidores podem preferir investir em países onde o nível de corrupção é menor, dado que esses “custos informais” entram como fator de desconto no cálculo da rentabilidade de projetos. Esses exemplos de imperialismo saudável da economia no estudo da corrupção representam uma atividade de pesquisa relativamente recente. As vantagens de se trabalhar “economicamente” o tema são indiscutíveis. A corrupção envolve a busca de fins fiduciários, a existência de assimetrias de informação e o problema da racionalidade e da cooperação humanas. A economia política pode oferecer um conjunto de instrumentos para analisar a evolução institucional e complementar as abordagens sociológicas sobre o tema. O enquadramento, na análise econômica, de conceitos como patrimonialismo e clientelismo, pode ser feito com facilidade, já que, do ponto de vista alocativo, o importante é a eficiência, e do ponto de vista normativo, a justiça distributiva. Contudo, tal análise econômica da corrupção deve ser ampliada à economia política, já que o estudo das regras e instituições sociais é importante para a definição do sistema de incentivos que influencia o processo de tomada de decisão. O principal insight advindo das abordagens econômicas da corrupção é a necessidade de se estudar os sistemas de incentivos dos agentes e tentar explicar por que eles podem, sob determinadas situações institucionais, formar grupos de interesse com estrutura clientelística para exercer a função de catalisadores de comportamentos caçadores-de-renda “fora-da-lei”, ou, portanto, corruptos. O comportamento ligado à corrupção pode ser interpretado como um caso especial de ação caçadora-de-renda; a corrupção surgiria porque existiriam uma série de regras e instituições que criam incentivos para caçar renda ilegalmente. O que se pode afirmar a partir dessas visões econômicas da corrupção? O objetivo central deste ensaio foi construir uma definição de corrupção, levando em consideração os conceitos de evolução, desenvolvimento e subdesenvolvimento institucionais. Dentro dessa perspectiva estritamente conceitual do trabalho, procurei salientar que a economia política pode ser uma alternativa teórica às visões tradicionalmente associadas às teorias sociológicasde modernização, as quais, de uma forma ou de outra, partem de um referencial weberiano, o qual associa a superação das relações tradicionais à idéia de profissionalização da burocracia, racionalização dos processos sociais e hegemonia de critérios meritocráticos. Esta é a conclusão básica, do ponto de vista metodológico: o estudo das regras, instituições e incentivos, dentro de um arcabouço da teoria da ação racional, pode complementar e superar as análises tradicionais de corrupção (sociológicas e antropológicas) devido ao fato de tornar-se factível a explicação da formação e da rigidez ou não de algumas instituições. Essas instituições podem gerar incentivos para o comportamento caçador-derenda ilegal, dentro de estruturas clientelísticas. A economia fornece instrumentos de análise importantes para o estudo do comportamento corrupto generalizado. Logo, dado o fato de que o mesmo pode estar sendo externamente caro para a sociedade brasileira, coloca-se aqui a oportunidade de uma proposta de uma agenda de pesquisa em economia política da corrupção.
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