
De acordo com registros do Ministério da Saúde, de1996 a 2007, foram registrados, no Brasil, 349 casos de Febre Amarela silvestre, com 161 mortes, todos em pessoas que entraram nas matas e não haviam sido previamente imunizadas. Logo no início de 2008, no entanto, seguidas notícias sobre o aumento do número de notificações e de óbitos por causa da doença começaram a instaurar um princípio de pânico entre a população. Nem o pronunciamento do ministro José Gomes Temporão, no dia 13 de janeiro, negando a possibilidade de uma epidemia de Febre Amarela no país, serviu para acalmar a sociedade. Progressivamente, a procura pela vacina foi aumentando, até mesmo por pessoas que não vivem nas áreas de risco ou pretendem se deslocar para lá. O fenômeno, que ameaça desestabilizar os estoques no país, está agora no centro das atenções das autoridades, também por conta da revacinação de pessoas imunizadas há menos de 10 anos e dos problemas que isso pode causar. Para entender o que levou a essa reação da população e saber o que pode ser feito para restaurar a tranqüilidade das pessoas e o que o episódio pode nos ensinar, o Informe ENSP conversou com Eduardo Maranhão, epidemiologista do Departamento de Métodos Quantitativos em Saúde, que é enfático: “É a falta de credibilidade que faz a população correr atrás da vacina desnecessariamente, ameaçando os estoques. É preciso aumentar a credibilidade das autoridades técnicas e políticas”.Informe ENSP: Cotidianamente, a imprensa vem utilizando os termos epidemia e surto para se referir ao aumento no número de casos de Febre Amarela no país. Isso está correto? Qual diferença entre esses dois termos e o que é endemia?Eduardo Maranhão: Primeiramente, é interessante explicar o que é endemia. Endemia é a presença contínua de doença instalada, há muito tempo, em uma área ou região (região endêmica), na qual o número de casos varia dentro de uma faixa já conhecida (nível endêmico). No Brasil, por exemplo, a Febre Amarela silvestre é endêmica na Amazônia. Por isso, as pessoas que vivem na área ou viajam para essa região devem ser vacinadas contra a doença. Quando, numa área, ocorrem vários casos de uma doença acima do número esperado, ou seja, acima do chamado nível endêmico, podemos dizer que há uma epidemia. Um surto, por sua vez, ocorre quando há um pequeno número de casos em um local (em geral mais de três casos), que apresentem vínculo epidemiológico entre si. Informe ENSP: Está certo, então, falar em surto de Febre Amarela ou os casos que estão ocorrendo não apresentam vínculo epidemiológico entre si? Eduardo: Está certo sim falar de surto de Febre Amarela, pois são casos que ainda estão ocorrendo em locais, áreas e municípios bem definidos. Isto é, com pessoas que visitaram esses locais e, durante sua estada, foram picadas por mosquitos. Nesse sentido, o vínculo epidemiológico entre esses casos é: todos os doentes foram picados por mosquitos em áreas que apresentaram mortes de macacos por Febre Amarela. Informe ENSP: De que forma a imprensa e o governo devem tratar o assunto sem contribuir para aumentar o medo na população?Eduardo: Antes de mais nada, é preciso comunicar, com linguajem simples e adequada, sem omitir ou negar informações, de forma a garantir a credibilidade das mesmas. No caso do governo, é importante explicar como se pode combater, restringir e controlar a doença, isto é, quais são as medidas técnicas e científicas existentes, como as decisões estão sendo tomadas e que ações estão sendo executadas. No caso da imprensa, é preciso aumentar a credibilidade das autoridades técnicas e políticas, evitando o embate partidário que só favorece àqueles que buscam tirar proveito político da situação.Informe ENSP: Todos os especialistas consultados pelos jornais parecem estar de acordo quanto à impossibilidade de uma real epidemia de Febre Amarela no Brasil (ver links ao final da entrevista). Qual a razão para tanta tranqüilidade?Eduardo: Mais uma vez, é importante frisar que não há uma epidemia de Febre Amarela urbana no país. O que pode estar havendo é um aumento do número de casos de Febre Amarela silvestre, com morte de macacos e contaminação de pessoas que, ao entrarem em áreas de floresta, são picadas pelo mosquito transmissor da doença: o Haemagogus. Com a vacinação nas cidades em risco, tudo estará sob controle. Daí a tranqüilidade!Informe ENSP: Por que razão essa postura dos especialistas não tem sido suficiente para acalmar as pessoas e evitar, entre outras coisas, o fenômeno da revacinação desnecessária que, além de ser prejudicial à saúde, já começa a ameaçar a distribuição e os estoques de vacinas no país?Eduardo: Acho que o Ministério da Saúde tem que construir uma nova comunicação com a população para ganhar credibilidade. Quando o Presidente da República afirma que a saúde no Brasil está quase perfeita; o Ministro da Saúde defende a CPMF, sabendo que deveria ser um imposto provisório, e que o montante desse imposto não ia para saúde; alguns sanitaristas do ‘partido sanitário’ têm dificuldade de ver a realidade concreta e vivem da reprodução idealista do que deveria ser a fantástica proposta do SUS; e, ao mesmo tempo, a população vive a situação real do SUS, com os que podem procurando a assistência privada; isso gera falta de credibilidade nas autoridades. É o acredite se quiser e puder! E é essa falta de credibilidade que faz a população correr atrás da vacina desnecessariamente, ameaçando os estoques. É preciso ressaltar sempre que só devem tomar a vacina aqueles que vivem nas áreas de risco ou vão viajar para elas. Informe ENSP: O ministro Temporão declarou ao Globo, na sexta-feira, que, enquanto houver mata, macaco e mosquito no país, não nos livraremos da Febre Amarela. Os especialistas, por sua vez, confirmam que a Febre Amarela silvestre está restrita a algumas áreas, sendo, portanto, de fácil controle. Será, no entanto, que esse mesmo sistema está preparado para enfrentar as grandes mudanças no quadro epidemiológico, que poderão ocorrer devido à construção das discutidas barragens no Rio Madeira, por exemplo? Eduardo: O ministro tem razão. Não é possível acabar com a Febre Amarela silvestre sem acabar com as matas, florestas e macacos, o que é algo inimaginável. Mas podemos evitar, com certa facilidade, a urbanização da doença por meio da vacinação da população em risco e do combate intensivo ao mosquito Aedes aegipty, reduzindo sua densidade a níveis seguros. No caso das rápidas mudanças do quadro epidemiológico brasileiro, resultantes dessa e de outras obras, eu penso que deverá se construir um sistema de vigilância epidemiológica ativo, no qual a rápida circulação de informações possa gerar ações que, também rapidamente, possam enfrentar e dar conta dos problemas que surgirem. Informe ENSP: Enquanto todas as atenções se voltam para a Febre Amarela, a Dengue continua matando no Brasil. Entre a Dengue e a Febre Amarela, qual é mais difícil de ser controlada, e o que precisa ser feito para isso?Eduardo: Na situação atual, a Dengue é muito mais difícil de controlar. Como eu expliquei anteriormente, o controle da Febre Amarela urbana também envolve o controle do Aedes aegipty, o que permite reduzir a ocorrência de Dengue que, no momento, é muito mais preocupante do que a Febre Amarela. Basta lembrar que, em 2007, ela causou 10 vezes mais mortes que a Febre Amarela no país. Embora haja aqueles que neguem, nós estamos enfrentando uma epidemia de Dengue e, para contê-la, as autoridades de saúde precisam mobilizar a população, além de garantir recursos financeiros e materiais, pessoal capacitado, vigilância epidemiológica ativa, boa gerência e real decisão para efetivar as ações necessárias nos períodos entre as epidemias, que vêm ocorrendo em intervalos de dois a cinco anos. Se isso não for feito, a Dengue continuará a ser, como dizia Sergio Arouca, parafraseando Gabriel Garcia Marques, a “Crônica de uma epidemia anunciada”. Dizer mais do que isso é ‘chover no molhado’. O importante é realizar.Informe ENSP: O que mais você destacaria de positivo e de negativo em todo este episódio que estamos vivendo?Eduardo: De negativo, eu vejo a má comunicação, por parte da imprensa leiga, junto à população, o que acabou gerando pânico e motivando uma correria desenfreada aos postos de saúde e, conseqüentemente, problemas de estoque, o que não ocorreria se a vacinação continuasse a ser feita de maneira mais racional e orientada. De positivo, eu vejo o que chamo de uma ‘boa e nova revolta da vacina’, com a população buscando se vacinar não só contra a Febre Amarela, mas também contra outras doenças, ou seja, atualizando o calendário de vacinação. Além disso, eu destacaria o novo fôlego para o enfrentamento da Dengue, uma vez que o mosquito transmissor da doença é o mesmo da Febre Amarela urbana, e, para finalizar, o site da Secretaria de Vigilância em Saúde (SVS/MS) sobre a Febre Amarela. Ele é bastante esclarecedor e possibilita que as informações cheguem, com linguagem acessível, à grande parte da população.
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