sexta-feira, 15 de fevereiro de 2008

Por quê educar para a Paz


Martha Jalali Rabbani
Pedagoga pela UNICAMP e Doutora em Humanidades pela Universidade Jaime I na Espanha. Assessora Técnica do INPAZ.


Partindo de uma definição positiva da paz como justiça, educar os seres humanos para uma sociedade pacífica é tarefa especialmente desafiadora. Jamais houve na história humana uma sociedade pacífica e ao mesmo tempo justa, ou seja, vivendo em justa paz. Tampouco os problemas humanos foram tão complexos e de tal magnitude no que se refere às exigências de sua solução.
A realidade de nossa sociedade moderna se assemelha ao conto do beduíno que vivia no deserto com seu camelo, vendendo água aos viajantes. Uma manhã, ao despertar, o beduíno observa incrédulo como seu camelo continuava dormindo. Pensa consigo que o animal talvez esteja ferido e começa um detalhado exame. Verifica cautelosamente suas patas, suas orelhas, seus olhos, sua boca e nariz. Todas as partes estavam, no entanto, intactas e bem compostas, o camelo parecia normal, como sempre. O beduíno não conseguia identificar o real problema porque não havia visto um camelo morto até então...
Em nossas sociedades modernizadas, altamente evoluídas, com um acúmulo de conhecimento e técnica sem precedentes, e com recursos materiais suficientes para garantir a satisfação das necessidades básicas de todos os seres humanos, nos perguntamos: onde está o problema, por que não conseguimos criar um mundo que em nossas intuições morais mais profundas sabemos desejar? Por que, apesar de sua aparente normal prosperidade, nossa “sociedade-camelo” está repleta de violência direta, estrutural e cultural – que é justamente a inversão dos valores humanos, a perda do referencial, do horizonte moral a partir do qual podemos discernir o bem do mal, o justo do injusto?
Intuir, imaginar, compreender a razão da violência, da pobreza, das injustiças, é tarefa difícil, mas não impossível. Exige, sem dúvida, um esforço coletivo por buscar soluções comuns e consensuais, através de um diálogo que reconheça a todos os seres humanos como interlocutores válidos. Requer também uma educação para a paz, ou seja, para o diálogo e para o respeito e exercício dos princípios que se acordem a partir desse diálogo.
Entretanto, como pedra angular de nosso esforço por criar um mundo mais pacífico está a compreensão do elemento vital que falta à nossa sociedade. Sem essa compreensão, o argumento pelo diálogo da sociedade civil e por uma educação que o promova se reduz a uma simples decisão estratégica, a um acordo tácito para garantir unicamente a sobrevivência da espécie ou uma paz sem justiça, um corpo sem alma.
Quero sugerir que a alma que nos falta, que nos diz porque é valiosa a paz e justifica o valor de uma educação para a paz e o diálogo, é a consciência da Unidade Humana. A verdade da Unidade está além do consenso que possamos alcançar os seres humanos, é um princípio universal cuja existência permite e dá sentido à busca do diálogo. O argumento de que devemos educar e atuar para a paz se mantém a partir da consciência de que compartilhamos igualmente uma mesma condição, a condição da liberdade e de que interdependemos uns dos outros na necessidade do reconhecimento, para exercer essa liberdade.
Quando reconhecemos a Unidade dos seres humanos, e educar nessa verdade deveria ser a primeira preocupação dos educadores para a paz, já não podemos dividir o mundo em vencedores e perdedores, superiores e inferiores. Passamos a compreender que nossa própria humanidade é função das relações de reconhecimento que estabelecemos com os demais e que nessa relação dependemos igualmente uns dos outros. Compreendemos que a divisão e dependência só são possíveis quando reduzimos nosso valor ao que temos e que, no entanto, não são nossas posses mas nossa capacidade de criar e valorizar esses objetos o que determina nosso valor como seres humanos.
A capacidade de criação, a liberdade, todos os seres humanos a temos por igual, como seres humanos que somos. Não obstante, a expressão da liberdade se dá com a compreensão e o respeito à nossa Unidade, a nossa igual necessidade de reconhecer e ser reconhecidos como livres para potencializar nossa liberdade. Se argumentamos por uma educação para a paz, a justiça, a cooperação e a solidariedade, não é simplesmente porque queremos continuar vivos ou também consumir mais e ter melhor qualidade de vida material, como um corpo sem alma.
Defendemos a Educação para a Paz como forma de conscientizar os seres humanos de que são unidos, ou iguais e interdependentes, e que, portanto, só a ação que siga o princípio universal da Unidade pode fazer justiça à nossa humanidade ou tornar todos e cada um plenamente humanos, livres.

A justiça como diálogo
Quando nos referimos à justiça ou à uma sociedade justa, sua condição de possibilidade, seu requisito fundamental, não são leis que tratem a todos como iguais, que não discriminem as distintas realizações de seus participantes. Tampouco é uma sociedade que assegure a liberdade de cada indivíduo, sempre que não interfira na liberdade alheia. Esses requisitos são válidos somente quando fundamentados na condição primordial de toda relação de justiça: a consciência da interdependência humana em sua necessidade de reconhecimento para a auto-realização.
Essa consciência primordial da interdependência humana é o que permite a reapropriação de uma norma ou convenção social e sua transformação em uma realização, ou em uma realidade com sentido e valor singular para cada pessoa. O sentido e o valor de qualquer realidade é função do questionamento, do dar e demandar razões para a construção do seu porquê. Poderíamos dizer em outras palavras, então, que uma sociedade justa é aquela que permite a oposição, a crítica, não pelo valor da oposição em si mas para a permanente construção coletiva do porquê dessa sociedade e, portanto, para a auto-realização de seus membros.
Como a justiça das leis e de uma determinada sociedade é função do reconhecimento, pelos seus membros, da sua interdependência, antes de tudo há que promover esse reconhecimento. E este basicamente é o objetivo de uma educação para paz: contribuir para uma ordem justa, global ou local, promovendo o reconhecimento de nossa interdependência ou unidade na realização de nossa humanidade.
Podemos dizer, em outras palavras, que a auto-realização, ou a valorização e o sentido de qualquer realidade, depende da relação de reconhecimento entre os seres humanos. O reconhecimento que nos une por uma razão particular como membros de uma comunidade ou grupo social, termina levando a uma compreensão limitada de nossas ações. Como não permite transcender a inevitabilidade e especificidade totalizadora das normas e costumes da comunidade ou alterar os fundamentos de suas relações – o modelo de reconhecimento social – tampouco permite que as ações de seus membros se transformem em realizações.
O reconhecimento da unidade humana, por sua vez, só é possível através de um procedimento dialógico ou de uma educação em paz. O diálogo tanto reflete o reconhecimento da unidade humana como a promove. Só aceitamos dialogar com um outro igual e ao mesmo tempo distinto. É o reconhecimento da condição de igualdade do outro, ou sua capacidade de compreensão, e ao mesmo tempo acreditar que esse outro tem algo a dizer que desconhecemos, que nos leva a dar e demandar razões mutuamente. É por isso que dizemos que o diálogo parte da suposição da unidade humana, ou da igualdade e diversidade, determinando sua interdependência.
Além disso, o diálogo promove a unidade ou a auto-realização coletiva. Quando além das razões específicas que damos para reconhecer a humanidade do outro, nos reconhecemos também por nossa interdependência na necessidade de reconhecimento para realização, deixamos de saber apenas o significado – o que se deve fazer ou deixar de fazer para garantir o reconhecimento – para compreender também o sentido e o valor das experiências comunitárias. O sentido de nossa prática está em sua universalidade, ou seja, em elevar o específico ao nível de princípio e identificar esses princípios em distintas situações. O valor está na ampliação das possibilidades de ação em vez de sua redução[1].
A relação dialógica permite essa compreensão de nossos valores posto que, por definição, não restringe o questionamento às realizações comunitárias. Não exclui ninguém ou nenhuma crítica em nome do reconhecimento de realizações ou razões particulares, ou melhor, de dogmas e doutrinações, já que não podem ser questionados. O questionamento tem o objetivo de esclarecer as vontades e interesses que essas realizações representam e recriá-las em consonância com as vontades singulares de cada um.
Se o reconhecimento é destinado somente a aqueles que atuam de acordo com determinadas normas, como ao aluno que mais agrada ao professor, ou seja, está condicionado a uma realização pré-determinada, não há então como questionar e compreender o valor dessa norma.
Se, por outro lado, as pessoas são reconhecidas antes de tudo pela forma insubstituível como definem nossa existência, então participar em uma relação de diálogo se torna vital para a produção de realizações e a justiça social. Não há diferença se essas são realizações científicas, religiosas ou culturais. Quando o processo de aprendizagem e aquisição desses valores e realizações culturais não permite a compreensão de seu sentido e a valorização individual, então sua existência se mantém através da reprodução. E qualquer reprodução submete o ser humano às suas exigências em vez de estar submetido a este.
É importante esclarecer que os seres humanos não são livres para decidir sobre as normas e convenções que querem seguir. Ainda que isso possa ocorrer, a liberdade, no sentido de auto-realização que estamos utilizando aqui, se refere à compreensão da realidade ou apropriação dos valores sociais, tornando-lhes próprios. Somos livres assim porque todos e cada um podemos compreender a mesma realidade de forma única e irrepetível.
Toda crítica à opressão e injustiça social parte da aceitação da singularidade humana. Do contrário não haveria como sustentar a interdependência (partes idênticas não se necessitam) e estaria justificada a dependência de alguns em relação a outros. Como dependentes não temos outra opção a não ser submeter-nos à vontade daquele de quem dependemos. Nossa reflexão é justamente no sentido de argumentar que qualquer dependência entre os seres humanos é aparente, que se mantém por uma relação de reconhecimento e que, sobrepondo-se a realização ao reconhecimento, impossibilita-se o fim natural do reconhecimento: a realização.
Romper com a dependência e apropriar-se do sentido e valor da própria experiência se vem dando historicamente de distintas formas. Na medida em que essas novas relações permitem a seus participantes uma contínua compreensão de seus fundamentos e sua conseqüente recriação, a ordem que essas relações criam é justa. Quando os símbolos e valores de uma sociedade – como, por exemplo, o conhecimento formal que transmitem as escolas – se consolidam ao ponto de determinar as relações de reconhecimento, inevitavelmente essa sociedade começa a autodestruir-se. Leis e regulamentos são criados que, sem valor e sentido, são violados e reforçados por novas leis e assim sucessivamente em uma cadeia de opressão coletiva. Como essa ordem não consegue mais transformar o querer de seus membros em poder (não permite a auto-realização), será então substituída por uma nova que, no caso de que não esteja fundamentada na consciência da interdependência, será tão opressora como a anterior.
É a formação coletiva das vontades individuais através do diálogo, a participação de todos os afetados na construção do sentido e valor dos fundamentos de sua relação, o que permite a realização e determina a justiça de determinada ordem social.

A Educação Dialógica
Educar para a paz é uma forma de romper com a dependência, ajudando na compreensão das realizações coletivas e promovendo a realização individual através de uma educação dialógica. Mais que uma determinada informação, educar para a paz é favorecer uma determinada relação, independente do conteúdo ensinado – ainda que evidentemente alguns conteúdos estejam diretamente mais relacionados com a paz que outros. Seu objetivo é educar para a consciência da razão fundamental pela qual os seres humanos se unem, identificar quando essa razão está sendo desvirtuada e atuar para a justiça das relações. Essa consciência se forma e se expressa através de relações que não excluam a ninguém, que permitam a todos os participantes confrontar suas vontades, decidir sobre os fundamentos de suas relações, construir coletivamente os símbolos e valores de sua comunidade.
Educar para paz requer assim um determinado procedimento, uma metodologia de ensino: a metodologia da educação dialógica. Tradicionalmente a educação tem sido unilateral ou monológica, do professor para o aluno e sobre um conhecimento e uma verdade prontas para serem apreendidas. A relação entre professor e aluno tem sido entre observadores. Entre objetos que, privados de seu poder ser singular ou de sua liberdade, se têm submetido à força do “conhecimento científico”. A dependência do saber, presente nesse modelo educacional, tem impossibilitado a auto-realização tanto de alunos como professores.
A única forma de se permitir uma autorealização coletiva é através do diálogo. Em termos da relação de ensino e aprendizagem isso significa ser reconhecido como um igual na construção do conhecimento e não como um inferior ou superior em posse de um saber que garante o reconhecimento. Quem pode interpelar ao outro ou participar no dar e demandar razões para o que está ensinando, ou seja, dialogar, está em realidade expressando sua singularidade e permitindo ao outro que expresse a sua. Compreendendo o sentido e o valor do próprio ato de participar e da informação que se recebe sobre a paz, sobre os problemas e injustiças sociais, aluno e professor passam a relacionar-se dessa mesma forma também em outros contextos. Reconhecem a sua igualdade e interdependência e expõem suas afirmações ao questionamento dos demais, solucionando qualquer problema ou tomando decisões sempre coletivas e nunca individuais.
Por isso justamente não é suficiente educar sobre a paz, sobre alguns determinados valores e símbolos de reconhecimento, sobre uma determinada verdade. Tal educação prepara para uma situação existente, para a manutenção das relações como estão, não prepara, todavia, para sua transformação. Quando, além de saber que devemos relacionar-nos com todos os seres humanos como iguais, também dialogamos, estamos tendo a iniciativa de mudar as estruturas sociais e não só nos adaptando a elas.
O indivíduo que tenha aprendido monologicamente, ainda que seja sobre a paz, entende tal ação como um dever, uma obrigação imposta como condição para o reconhecimento de seus semelhantes, seu professor, seus colegas, família, etc. Parece-lhe mais vantajoso atuar de determinada forma, posto que lhe garante a satisfação do reconhecimento. Não percebe, além disso, em que medida suas ações e decisões se contradizem mutuamente, impossibilitando a auto-realização.
A educação através do diálogo, ou em paz, por sua vez, implica que o professor expõe suas verdades à crítica e critica a verdade dos demais, facilitando a sua auto-realização e a dos alunos. A oportunidade de participar em um questionamento coletivo do saber legitimado permite a reapropriação desse saber, com um sentido e valor único para cada um. A educação dialógica forma cidadãos que criticam os símbolos de reconhecimento porque não temem ser excluídos ou perder a referência do que leva à realização. De fato, esse aluno continua tão dependente do reconhecimento de seus semelhantes como os demais. Essa dependência enquanto interdependência, entretanto, lhe dá a liberdade de reapropriar-se dos objetos de reconhecimento e modelá-los de acordo com a própria singularidade.
Sem a possibilidade de participar no processo de ensino e aprendizagem e compreender o sentido das informações que recebemos, é impossível educar para a paz ou para exercício da liberdade criadora, para a realização humana.

Notas
[1] Por exemplo, se compreendo o sentido do amor ao próximo, sou capaz de amar a todos os seres humanos e não apenas aqueles que me ensinaram a amar ou quando esteja com aqueles cujo reconhecimento valorizo particularmente. O amor se torna uma questão de princípio, amo inclusive os que não conheço ou os que não me amam. O valor desse princípio deixa de estar restrito ao seu poder de regulação e controle de minha atitude para permitir infinitas expressões de minha capacidade de amar, isto é, deixa de limitar para liberar o meu ser.

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