terça-feira, 5 de fevereiro de 2008

SICKO 2: a destruição do Serviço Nacional de Saúde britânico


John Pilger*
Deitado numa cama de hospital, cumpridos, e bem, todos os procedimentos, com uma xícara de chá acompanhando agradavelmente a última dose de morfina, assistimos ao que há de melhor. Por melhor quero dizer um vislumbre da sociedade sem os dogmáticos histriões da mídia e da política determinados a mudar a forma como pensamos. Isso é o que há de pior. De melhor, recordo a inesquecível manifestação dos mineiros de Murton, condado de Durham [Inglaterra, 1990, resistência às medidas neoliberais do governo Thatcher] surgindo em meio ao nevoeiro em fria manhã de março, as mulheres à frente, voltando à mina. Não importa que tenham sido derrotados por forças superiores, eles eram os melhores.
Numa cama de hospital, provavelmente o melhor é mais corriqueiro, pessoas trabalhando rotineiramente, escutando, respondendo, tranqüilizando. Seu vocabulário não é o empresarial. Sua "produtividade" não é artifício para o lucro. Seu compromisso não tem meta, sua camaradagem é como uma presença; e você passa a fazer parte dela. O denominador comum são a humanidade e a preocupação. Que exótico isto soa. Ligamos a televisão do hospital e vemos outro mundo bizarro de "notícias", idiotas famosos tecendo a destruição final da sociedade.
Lá está o louco do Blair [Tony Blair, ex-primeiro-ministro] pedindo um ataque ao Irã e o secretário da Educação, Ed Balls, vendendo seus diplomas falsos, e o primeiro-ministro, Gordon Brown, que acabou de receber Rupert Murdoch [magnata conservador da mídia] e Alan Greenspan [ex-diretor do Banco Central dos EUA], anunciando seu "regresso à liberdade" com suas últimas "reformas", que são uma safadeza contra a instituição que personifica a liberdade na Grã-Bretanha: o Serviço Nacional de Saúde (em inglês, NHS). Nenhum deles tem a menor ligação com as pessoas que mantêm meu hospital funcionando. O divisor de águas na Grã-Bretanha de hoje está entre a sociedade representada pelos que mantêm o Serviço de Saúde funcionando e sua mutação sintetizada pelos governos trabalhistas de Blair e Brown.
Em Sicko (ver pág. 2), o socialista Tony Benn profetiza uma revolução na Grã-Bretanha se o SNS for abolido. Mas o Serviço de Saúde da Grã-Bretanha está sendo destruído por desgaste, e se as últimas "reformas" não forem impedidas, será tarde demais para erguer barricadas. A 5 de outubro, o secretário da Saúde, Alan Johnson, aprovou lista de 14 empresas que serão consultoras e assumirão a "delegação de poderes" dos serviços do SNS. Ser-lhes-á dada a possibilidade de escolha, senão o próprio controle, dos tratamentos que os doentes devem receber e quem os proporcionará. Com lucro de muitos milhões.
Essas empresas incluem as americanas UnitedHealth, Aetna e Humana. Estas organizações totalitárias têm sido multadas pelo seu conhecido papel nos serviços de saúde americano. No ano passado, o diretor-geral da United Health, William McGuire, que ganhava 125 milhões de dólares por ano, demitiu-se após escândalo sobre direito de opção. Em setembro, a companhia aceitou pagar 20 milhões de dólares de multa "por não atender reclamações e não responder às queixas dos doentes". A Aetna teve que pagar 120 milhões de dólares, condenada num júri da Califórnia por "má-fé, opressão e fraude". O filme Sicko mostra uma analista médica da Humana testemunhando no Congresso que provocou a morte de um homem, por lhe recusar assistência, para poupar o dinheiro da empresa. Todos os anos morrem 18 mil americanos porque não têm acesso aos serviços de saúde ou porque não podem pagá-los.
Estas empresas são as amigas do governo trabalhista. Simon Stevens, antigo conselheiro de políticas de saúde de Blair, é hoje diretor-executivo da UnitedHealth. Julian Le Grand, que escreve no Guardian como distinto professor, dá sua aprovação esclarecida às "reformas" — também foi conselheiro de Blair.
Em Manchester, há outras "reformas" em vias de destruírem os serviços do SNS para os doentes mentais. William Scott suicidou-se após perder o direito ao apoio de um trabalhador do SNS que tratou dele durante oito anos. O que tudo isto significa é que o SNS está passando sub-repticiamente à privatização. É esta a política não-confessada do governo de Brown, cujas ações predadoras no exterior estão sendo copiadas internamente. Foi Brown, quando secretário do Tesouro, que promoveu a desastrosa "iniciativa financeira privada" como artimanha para construir novos hospitais, enquanto entregava enormes lucros a companhias suas protegidas. Em conseqüência, o SNS está sendo sangrado em 700 milhões de libras por ano. Isto provocou uma desnecessária "crise financeira", o argumento do beco sem saída, para permitir que apareçam mais oportunistas para se apoderarem do que foi outrora a maior proeza do antigo governo trabalhista. Vamos permitir que eles se safem com isto?
* Jornalista e documentarista australiano (www.johnpilger.com); adaptação de texto (1º/11/07) do Resistir (http://resistir.info/)

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