segunda-feira, 31 de março de 2008

Defesa da vida


Por Cristovam Buarque (*)

Nunca a humanidade esteve diante de opções éticas tão difíceis relativas ao uso da ciência e da tecnologia. É recente o poder da ciência de destruir a civilização e o planeta, com a bomba atômica, o aquecimento global e a manipulação da vida com diversas formas de biotecnologia. Hoje é possível não só prolongar a vida, mesmo depois da morte cerebral; mas também impedir o nascimento com métodos pré e pós-concepção; fertilizar in vitro e manter congelada uma população ilimitada de embriões; beneficiar os ricos com tratamentos que lhes permitam viver mais e melhor. Em breve, também será possível induzir mutações genéticas, beneficiando a classe social que paga por esse serviço e quebrando a semelhança da espécie. Por isso, as opções devem basearse em valores éticos e crenças humanistas. Os debates devem ser livres, para que as decisões considerem as crenças individuais e o interesse comum. Toda opinião deve ser ouvida, e ninguém deve ficar omisso. Este é o caso da decisão sobre o uso de embriões congelados nas pesquisas com células-tronco. Há razões morais e religiosas contrárias, mas pelo menos cinco que justificam as pesquisas. A primeira razão é de ordem moral. Quem defende a vida deve defender o direito ao nascimento e à plena manutenção da vida e da saúde que ciência e tecnologia podem proporcionar. Contanto que a vida ou saúde de um não seja obtida sacrificando a de outro. A decisão de autorizar as pesquisas com embriões humanos passa pela escolha entre o nascimento de uma nova vida e a perda daquela que estaria em formação nos embriões. Saber em que momento surge a vida é questão científica e religiosa, mas saber quando a vida acaba é somente científico. E os cientistas afirmam que, depois que o embrião permanece congelado por três anos, é impossível que dali surja uma vida; se havia vida no momento da concepção, agora existe um ente morto. Não há, portanto, razão moral para considerar seu uso um atentado contra a vida. Não é um ato similar ao aborto ou à eutanásia. Se houve erro moral, ele teria ocorrido com a fertilização in vitro e o congelamento do embrião por tanto tempo. A segunda razão é humanista. O direito à vida não pode ser visto somente como o direito de nascer. Precisamos considerar o direito de nascer e de continuar vivo. E muitas pessoas poderão viver, se essas pesquisas forem adiante. Não defende plenamente a vida quem não defende o direito à sobrevivência e à qualidade de vida de todos. Não há como falar em direito à vida sem considerar o direito de ficar vivo, de não morrer antes do tempo, por falta do avanço nas pesquisas científicas. A terceira é política. O Brasil é um país laico. Os brasileiros têm diferentes religiões, e todas devem ser respeitadas. Em alguns países, a religião confunde-se com o Estado; neles, crime e pecado são a mesma coisa, mas esse não é o caso do Brasil. Aqui não podemos considerar crime o que é pecado para alguns. Os adeptos de cada religião têm, inclusive, o direito de não aceitar o desenvolvimento da medicina; podem recusar transplantes de órgãos ou transfusão de sangue. Mas por razões políticas, não podemos imaginar que uma fé se imponha a toda a população. A quarta razão é social. Independentemente das leis brasileiras, essas pesquisas serão feitas em outros países. Se não autorizarmos as pesquisas, os brasileiros ricos irão aos Estados Unidos e à Europa; depois, à Argentina e ao Paraguai, ou a outros países que desenvolverão suas pesquisas. Socialmente, não podemos tolerar que uns se beneficiem de pesquisas porque têm dinheiro e outros não. Do ponto de vista político, moral, social e humanista, há como justificar as pesquisas com células-tronco a partir de embriões. Mas além deles, há mais um a ser considerado: o ponto de vista patriótico. O Brasil não pode abrir mão do domínio científico em uma área tão fundamental da medicina. Se proibirmos o uso dos embriões nas pesquisas, daremos um passo atrás em relação às nações que poderão realizá-las.
Artigo publicado no jornal O Globo, na seção de Opinião, edição de 15/03/2008

As células tronco e a Constituição


Por Lygia V. Pereira (*)
Em meio à revolução médicocientífica das células tronco (CT), o Supremo Tribunal Federal deverá julgar a constitucionalidade de um tipo especial de CTs, as embrionárias. Apesar do potencial terapêutico dessas células, seu uso envolve a destruição de um embrião humano, criando a possibilidade de violar o artigo 5º de nossa Constituição, que garante "...aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no país a inviolabilidade do direito à vida...".
Essa discussão pode ser vista como a velha briga "ciência versus religião".
Porém, os dois lados devem se respeitar apesar de algumas divergências históricas sobre sua origem, cientistas e religiosos têm em comum o profundo respeito pela vida. Mesmo assim, às vezes nos desentendemos na forma de manifestar este respeito. Enquanto para religiosos a utilização do embrião para pesquisa equivale a matar alguém, cientistas vêem isso como uma oportunidade de salvar vidas.
As embrionárias são o tipo mais versátil de CTs até hoje identificadas. Elas pacientêm a formidável capacidade de dar origem a todos os tecidos do corpo, que quando transplantadas em animais doentes são capazes de tratar diabetes, doença de Parkinson e até paralisia por trauma da medula espinhal, entre outras. Daí o enorme entusiasmo dos cientistas em relação às pesquisas com essas células. Porém, como essas pesquisas envolvem a destruição de um embrião humano de 5 dias um conglomerado sem forma de quase 100 células uma nova polêmica surgiu no mundo todo: este embrião é uma vida ou não? Ora, é claro que ele é uma forma de vida humana, assim como um feto, um recém nascido e um idoso também são. A real questão é "que formas de vida humana nós permitiremos perturbar?". A "vida" mencionada na nossa Constituição já é legalmente violada em algumas situações, como numa pessoa com morte cerebral no Brasil é permitida a retirada de seus órgãos, vivos e funcionando, para transplantes que salvam outras vidas. No outro extremo da vida humana, ao proibirmos o aborto estabelecemos ser inaceitável a destruição de um feto. Por outro lado, se este feto for o resultado de um estupro ou representar risco de vida para a gestante, ele passa a ser uma forma de vida que pode ser eliminada. E aquele embrião de cinco dias, produzido por fertilização in vitro e armazenado em um congelador, em que condições ele é uma forma de vida passível de ser violada? A Lei de Biossegurança, de 2005, permite o uso para pesquisa de embriões inviáveis que não sejam capazes de se desenvolver em um recém nascido, ou que estejam congelados há mais de 3 anos. Notem que, ao aceitarmos as técnicas de fertilização in vitro (os "bebês de proveta"), aceitamos a criação desses embriões, que muitas vezes sobram, não são utilizados pelo casal e ficam esquecidos em congeladores. Foi muito conveniente ignorar esses embriões excedentes, pois afinal esta técnica permite que milhares de casais realizem o sonho de ter filhos. Já o uso desses embriões para tratar um enfarte ou ajudar um paralítico a recuperar os movimentos ainda está restrito a animais de laboratório. Talvez no dia que as CTs embrionárias estiverem efetivamente sendo usadas em pacientes seja mais difícil ser contra o uso terapêutico daqueles embriões congelados. Mas esse dia só chegará se pudermos fazer pesquisa. Em conclusão, não existe argumento científico para se proibir pesquisas com CTs embrionárias, e nem está em julgamento se aquele embrião é vida ou não: ele é uma forma de vida humana, mas provavelmente não um brasileiro ou estrangeiro residente no país ao qual a Constituição garante "inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade" e é isso que o STF deve julgar. Se por um lado aquele embrião de cinco dias não é uma pessoa ou um feto, também não o considero somente um conglomerado trivial de células. O nosso desafio é desenvolver, sim, pesquisas com embriões humanos, mas fundamentalmente de forma transparente e ética.
Lygia V. Pereira é professora do Instituto de Biociências da Universidade de São Paulo.
Artigo publicado no jornal O Globo, coluna de Opinião, na edição de 27/03/2008.

domingo, 30 de março de 2008

Cresce o número de políticos donos de meios de comunicação


Por Ana Rita Marini em 25/3/2008
Reproduzido do boletim e-Fórum nº 196, 21/3/2008, do
Fórum Nacional pela Democratização da Comunicação
No Brasil, 271 políticos são sócios ou diretores de emissoras de televisão e rádio – os meios com maior abrangência entre a população. Especialmente em ano de eleições, interesses políticos e econômicos dos proprietários de veículos de comunicação podem afetar diretamente a programação e mesmo a cobertura jornalística dessas empresas, chegando a influenciar no processo eleitoral. Apesar de estar em desacordo com a Constituição Federal, o número de políticos empresários da mídia só vem crescendo. São (ou foram) candidatos privilegiados, porque podem tirar vantagem dessa condição em campanha. O resultado fere a democracia.
Dados apurados recentemente pelo Instituto de Estudos e Pesquisas em Comunicação (Epcom) revelam que 271 políticos brasileiros – contrariando o texto constitucional (artigo nº 54, capítulo I) – são sócios ou diretores de 348 emissoras de radiodifusão (rádio e TV). Desses, 147 são prefeitos (54,24%), 48 (17,71%) são deputados federais; 20 (7,38%) são senadores; 55 (20,3%) são deputados estaduais e um é governador. Esses números, porém, correspondem apenas aos políticos que possuem vínculo direto e oficial com os meios – não estão contabilizadas as relações informais e indiretas (por meio de parentes e laranjas), que caracterizam boa parte das ligações entre os políticos e os meios de comunicação no País.
"Salta aos olhos a quantidade de prefeitos donos de veículos de comunicação. Demonstra a conveniência do Executivo em usar esses meios para manter uma relação direta com seu eleitorado", destaca James Görgen, pesquisador do Epcom.
Entre as mídias mais apreciadas pelos prefeitos, conforme a pesquisa, destacam-se o rádio OM (espaço onde acontecem os debates públicos) e as rádios comunitárias (que permitem a proximidade com a comunidade, a troca diária com o eleitorado, seja por meio da administração da rádio, seja pelo controle da programação). "Assim, eles garantem suas bases eleitorais", avalia Görgen. Já os senadores e deputados aparecem como proprietários de mídias com maior cobertura, como as TVs e FMs.
"Em ano de eleições, é difícil imaginar que esses políticos deixem de usar seus próprios meios de comunicação para tirar vantagem logo de saída na corrida eleitoral", analisa o pesquisador, dando como exemplo os prefeitos-proprietários, que este ano podem usufruir de temporada maior que a regulamentar da campanha para fazer sua exposição positiva. "Isso dá a eles uma vantagem enorme e representa um risco à democracia", conclui.
Em relação às regiões, relativizando as proporções de cada uma e a densidade de municípios, a pesquisa confirma a prática do chamado "coronelismo eletrônico" concentrado no nordeste brasileiro, onde prevalecem políticos controlando meios de comunicação.
Quanto aos partidos, esses políticos surgem assim: 58 pertencem ao DEM, 48 ao PMDB, 43 ao PSDB, 23 são do PP, 16 do PTB, 16 do PSB, 14 do PPS, 13 do PDT, 12 do PL e 10 do PT.
Os números apresentados são resultado do cruzamento de dados da Agência Nacional de Telecomunicações (Anatel) com a lista de prefeitos, governadores, deputados e senadores de todo o país.
Para evitar o coronelismo eletrônico
No ano passado, uma subcomissão especial da Comissão de Ciência, Tecnologia e Informática (CCTCI) da Câmara dos Deputados, analisou os processos de outorga no setor de radiodifusão e apresentou, em dezembro, relatório revendo as normas de concessão de rádio e televisão. Uma proposta de Emenda Constitucional foi encaminhada pelo grupo, acrescentando um parágrafo ao artigo nº 222 da Constituição, que estabelece:
"Não poderá ser proprietário, controlador, gerente ou diretor de empresa de radiodifusão sonora e de sons e imagens quem esteja investido em cargo público ou no gozo de imunidade parlamentar ou de foro especial".
A presidente da subcomissão, deputada Luíza Erundina (PSB-SP), explicou, na época, que, como esse artigo ainda não foi regulamentado, os detentores de cargos públicos conseguem burlar a Constituição. Segundo ela, os políticos utilizam essas brechas para adquirir emissoras.
O coordenador-geral do Fórum Nacional pela Democratização da Comunicação (FNDC), Celso Augusto Schröder, condena a utilização privada das concessões públicas e defende que a lei seja mais clara e que sejam construídos ritos públicos eficientes.
A deputada relatora da proposta, Maria do Carmo Lara (PT-MG) declarou, no relatório, que a propriedade e a direção de emissoras de rádio e televisão "são incompatíveis" com a natureza do cargo político.
O texto cita ainda um "notório conflito de interesses" dos parlamentares, já que os pedidos de renovação e de novas outorgas de rádio e TV passam pela aprovação dos próprios deputados e senadores. A proposição ainda não foi posta em votação.

sábado, 29 de março de 2008

Minha músicas preferidas

Last.fm

Maracutáia da grossa


28-Mar-2008

A notícia é minúscula, perdida num pé de página, nas folhas do ‘meio pra não se ler’. Ela informa que Lula editou Medida Provisória ampliando de 500 a 1.500 hectares a área dos imóveis que podem ser regularizados sem licitação na Amazônia.

A Constituição de 88 concedeu esse direito aos pequenos posseiros que ocupavam 50 hectares. Daí passou para 100, depois para 500 e agora a 1500, o que significa que já não se está mais falando de pequenos posseiros, mas de empresas agrícolas.

A nova MP vem confirmar os piores vaticínios a respeito da entrega da terra brasileira ao agronegócio. Ela legitima uma prática criminosa, mas que tem ocorrido em todas as fronteiras de expansão da agricultura: o "grilo" de terras.

O "grilo" é o "destacamento precursor" (para usar uma linguagem militar) do "honrado" agronegócio. O grileiro vem na frente e faz o serviço sujo: mediante ameaça e violência física contra pequenos posseiros, protegido pela corrupção das autoridades administrativas e do judiciário, torna legítimo o imóvel formado criminosamente. Em seguida, o "honrado" agronegócio adquire o imóvel legitimado e expulsa das terras qualquer remanescente da refrega inicial com o anteparo do juiz e do policial.

O Brasil foi construído assim e até hoje não se conseguiu força suficiente para civilizar a ocupação do seu território.

Além do aspecto social, a MP abre a porta para outra agressão à sociedade brasileira, pois não há a menor dúvida de que ela ensejará a aceleração do processo de destruição da floresta amazônica.

A terceira agressão dirige-se contra a lei.

Primeiramente, a Medida editada não cumpre o requisito da urgência justificadora da dispensa da tramitação normal dos projetos do Executivo. Que prejuízo poderiam sofrer os legítimos ocupantes de terras na Amazônia se, em vez dela, o governo enviasse um projeto de lei normal ao Congresso?

Além disso, como é possível usar o instrumento da Medida Provisória se, uma vez derrubada a floresta, não há como restabelecer a situação anterior? A revogação da Medida obviamente não reporá as árvores cortadas durante sua vigência, pois ela entra em execução imediatamente. Ora, entre a data da edição da MP agora editada e sua aprovação ou desaprovação pelo Congresso medeia um tempo mais do que suficiente para que as motos-serras anulem a condição imposta pela lei. Sem possibilidade de reversão de seus efeitos, o governante não pode usar esse instituto.

A maracutáia precisa ser denunciada e combatida com o maior vigor. Cabe aos partidos e organizações do povo contestá-la no Supremo Tribunal Federal.

sexta-feira, 28 de março de 2008

A dengue é filha da privativação da saúde.



Escrito por Léo Lince
28-Mar-2008

A cidade do Rio de Janeiro está vivendo uma época deprimente. O cidadão carioca, ao ler o jornal toda manhã, se defronta com o agravamento diário de uma situação na qual ele só consegue ser ver na condição de vítima potencial. Observa com angústia o crescimento das filas nos hospitais e os depoimentos dolorosos dos que padecem a dor indizível de perder os seus filhos vitimados por uma doença evitável. É de cortar o coração.

A epidemia de dengue é uma tragédia anunciada. Todo mundo avisou, até os blocos de rua no último carnaval (vide a tabuleta do "Simpatia é quase amor": "Tem porão cheio de mosquitos"). Os profissionais sérios da saúde pública, que trabalham em condições cada vez mais precárias, cansaram de alertar. Disseram que o surto, que acontece todo verão, neste seria pior (sem as providências adequadas, no próximo será pior ainda), alertaram para a presença entre nós de tipos novos e mais perigosos do vírus da doença. Também avisaram que o índice de mortalidade seria maior entre as crianças e os jovens. Tudo era sabido com larga antecedência, mas nenhuma providência foi tomada no tempo certo pelo poder público.

Em 1926, em plena epidemia de febre amarela no Rio de Janeiro, o célebre professor Clementino Fraga declarou em nome dos sanitaristas brasileiros que "no Brasil só a calamidade comove o poder público". O deputado Chico Alencar, em pronunciamento da tribuna da Câmara na semana passada, citou a frase para lamentar que, agora, nem a calamidade comove. O Instituto Estadual de Infectologia, conhecido como Hospital do Caju, que ainda conta com estrutura e pessoal especializado no tratamento de doenças infecciosas, está sendo progressivamente sucateado. Enquanto isso, os governos alugam leitos nos hospitais privados e promovem espetáculos televisivos em tendas vazias. Uma lástima.

Diante da comoção causada pelo aumento diário dos contaminados pela doença, os jornais têm estampado os números referentes à execução orçamentária das verbas destinadas ao setor saúde nos três níveis de governo. Todos, sem exceção, estão em falta. A União não manda o que deve, o governo estadual corta gastos no setor e a prefeitura também não aplica o que a lei determina. Os responsáveis pela calamidade, portanto, têm nome e sobrenome. O sindicato dos médicos do Rio de Janeiro, por conta de tal realidade, está acionando os governos federal, estadual e municipal por crime de responsabilidade. Atitude corajosa e merecedora de apoio de todo e qualquer cidadão consciente.

Embora alguns ainda batam boca entre si, o presidente, o governador e o prefeito estão unidos em torno de um tipo de política que está na raiz da calamidade. São governantes mais preocupados com a saúde da moeda e com a intermediação de grandes negócios financeiros do que com a saúde da população. O desmantelamento dos serviços públicos essenciais é um crime dos governantes que não cumprem sequer o que a lei lhes determina como obrigação. Diante da situação que se agrava a cada dia, ao cidadão cabe o doloroso dever de constatar que a dengue é filha da privatização da saúde.

Léo Lince é sociólogo.

Em luta, sempre.


Carolina Stanisci

Plínio de Arruda Sampaio, 77, é um idealista com os pés no chão. Ex-deputado federal pelo PT, hoje filiado ao PSOL, o paulista de Jaú tem a sua trajetória de vida misturada à política brasileira. Ele falou à MPD Dialógico sobre sua participação na Constituição brasileira de 1988. Na época, o então deputado ajudou a transformar o Ministério Público na instituição que é hoje “reconhecida pelas camadas populares”, como revela. Seu diagnóstico sobre os 20 anos da Constituição federal, porém, é pessimista: “Essa abertura que houve em 88 foi liquidada pelo que houve depois”. O que aconteceu depois, diz Plínio, foi uma reviravolta neoliberal que tirou o país dos trilhos do desenvolvimento. Para o eterno militante, o Brasil atual é um “mercado emergente, não mais uma nação”. Veja abaixo.

Qual foi o seu papel na Constituinte?
Fui relator do capítulo do Poder Judiciário. Tinha que discutir as questões da magistratura, do Ministério Público, da Defensoria Pública e da Procuradoria Geral da República. Conseqüentemente, tive que entrar na discussão do Ministério Público. E esse foi o capítulo em que obtive mais êxito. Consegui aprovar quase tudo o que propus.

Os membros do Ministério Público têm o sr. como responsável pela mudança de feição da instituição após a CF 88...
Foi um trabalho de equipe. Eles tinham um longo processo de maturação da idéia de uma nova instituição.

“Eles” seriam o MP paulista ou o MP de todo o Brasil?
O Ministério Público de todo o Brasil. Mas a coisa começou em São Paulo, há muitos anos. E uma das pessoas que foram centrais para isso foi o meu pai. Meu pai era promotor, fundador da Associação Paulista do Ministério Público e da revista Justitia.

Como é o nome de seu pai?
João Batista Arruda Sampaio. Ele, junto com o dr. [Antonio] Queiroz Filho, com o dr. [Gilberto] Kujavski, com o dr. Mario Moura, começou esse trabalho de transformar o Ministério Público em uma instituição autônoma, fiscal da lei e que promove sua execução. A primeira coisa que eles conseguiram foi colocar na Constituição de 46 a menção ao Ministério Público. E aí veio um longo processo de elaboração intelectual e de luta política para dar autonomia a esse órgão, que antes era apêndice do Poder Executivo. A associação paulista suscitou outras associações, e fizeram a Conamp, a associação nacional. E, através de congressos e congressos, foram decantando uma fisionomia institucional para o Ministério Público. Eles, da Conamp, me levaram esse texto, e meu trabalho foi convencer meus colegas de que aquele capítulo era fundamental para o país.

O sr. poderia rememorar sua história no Ministério Público?
Eu entrei para o MP em 1954. Logo em seguida, meu pai foi nomeado secretário da Segurança Pública aqui, no governo do Jânio [Quadros]. Eu vim com ele. Depois, voltei para o Ministério Público. Fiquei mais um tempo. O Carvalho Pinto se elegeu e me levou para ser chefe do Plano de Ação e subchefe da Casa Civil. Mas eu tinha essa vivência de Ministério Público. E, além disso, eu tinha a história do meu pai. Essas discussões foram na minha casa, com o Queiroz Filho... Todos eles discutindo para ver como montava a instituição, que garantias o promotor precisava para poder de fato exercer a função de promover a lei e de fiscalizar a execução da lei.

O sr. foi cassado em 1964, ficou dez anos no MP, portanto.
Não fiquei o tempo todo lá, fui deputado, fui secretário do Estado... Fiz carreira política. Se contar tudo de MP, devo ter uns dois anos e meio.

E por que o sr. tinha esse interesse em mudar a carreira?
Porque é fundamental para o país. Eu não fiz nenhum lobby para o Ministério Público. Atuei como um deputado do povo brasileiro, que precisa de uma instituição. Tanto que o sucesso foi absoluto. Hoje o MP é uma instituição reconhecida pelas camadas populares.

O MP está cumprindo suas funções constitucionais?
De todos os órgãos constitucionais, o MP é o que está mais cumprindo o que está na Constituição.

O que carece de regulamentação urgente hoje na CF?
Fiz uma força danada para que a magistratura tivesse autonomia orçamentária. Porque eu acho que o Judiciário brasileiro tem que expandir mais. A população é enorme. O que acontece? Acumula processo. A reforma dos códigos processuais é fundamental. Nós temos um processo que permite ao réu, ou à parte rica, prolongar indefinidamente o processo.

Houve uma reforma no Código de Processo Civil na década de 90.
Foi fraquíssima. Não resolveu nada.

Além dessa mudança processual, o que precisa de regulamentação urgente?
Essa Constituição foi, na verdade, violentada. Ela sofreu duas violências. A primeira durante o seu processo de elaboração. Ela se encaminhou inicialmente inteirinha para constituir no Brasil o regime político parlamentarista. Mas no meio...

A escolha pelo presidencialismo atrapalhou a Constituição?
Muito. Eu fiz o meu capítulo com o pressuposto de uma Constituição parlamentarista. Porque essas coisas são assim [faz gesto com as mãos entrelaçadas]. Eu estava vendo que o sistema do Legislativo e do Executivo ia para o parlamentarismo. Eu então bolei um tribunal constitucional para esse sistema. No meio da Constituinte, apareceu o centrão. Foi uma reação da direita, que ficou assustada, fez um bloco, mudou o regimento interno e introduziu algumas emendas que simplesmente quebraram o equilíbrio, a harmonia do que vinha sendo feito.

Por exemplo?
Por exemplo, o presidencialismo numa instituição que é parlamentarista. O tribunal constitucional, que deveria ser só constitucional, virou um tribunal constitucional e uma corte de cassação superior. Resultado, ele julga causa civil, causa penal.

Por isso até hoje o STF julga causas...
Absolutamente ridículas. E pára tudo. Aí vem essa história de súmula vinculante, que eu derrotei na Constituinte, e voltou, a avocatória, que eu derrotei lá, e voltou. Porque acumula de uma tal maneira, que o bom senso diz: “Aqui julgou de um jeito, tem que ser desse jeito”.

Sua proposta para desafogar o Judiciário seria que o STF voltasse a ser tribunal constitucional?
[E que tenha] Muito mais juízes e juizados especiais. Eles [juízes] tinham que levar o orçamento deles e discutir, no Congresso, com o Executivo e o Legislativo. O Legislativo faria [o orçamento] dele; o Executivo, o dele; e o Judiciário, o dele.

Qual foi a outra violência contra a CF?
A Constituição foi dirigida contra o parlamentarismo, foi dirigida contra o capítulo do poder econômico e contra a reforma agrária. Tanto que a reforma agrária tem dois dispositivos que, aparentemente, são contraditórios. A propriedade precisa cumprir sua função social. A que não cumprir pode ser desapropriada. Mas, se ela for produtiva, não. Esse artigo ficou inútil.

Como surgiu o termo “função social da propriedade” no texto da CF?
Isso vem de uma longa elaboração. Vem da doutrina social da Igreja, dizendo que sobre a propriedade pesa uma hipoteca social. E o pagamento dessa hipoteca era cumprir funções sociais. Por exemplo, dar emprego, pagar bem, respeitar a natureza, produzir coisas úteis. Tudo isso constituía a função social. Uma propriedade que produz, mas paga pessimamente, aloja funcionários de maneira que eles ficam doentes, polui todos os rios... Ela não cumpre todas as outras funções sociais, só uma: ela produz. E aí já não pode desapropriar. Então, a magistratura disse: “Para mim, é limite automático: produziu, não pode tirar”. E as outras funções ficaram inúteis. Ensejou-se essa interpretação reacionária.

Prefeito politiza mortes


O prefeito Cesar Maia (DEM), do Rio de Janeiro, enviou e-mail à Folha (25/3) eximindo a prefeitura de responsabilidade na maioria das mortes por dengue, ao contabilizar os óbitos em hospitais municipais, estaduais, federais e particulares: “Só uma ocorreu em hospital municipal — a de um menino de 6 anos”, afirmou. Para o governador Sérgio Cabral, "contabilizar óbitos em hospitais municipais ou estaduais é uma falta de respeito à população”, disse. “No Rio, um grande problema foi a falta de prevenção, e o trabalho preventivo é tipicamente municipal".
Cesar Maia ainda ironizou as tendas de hidratação criadas pelo governo do estado e ofendeu o ministro José Gomes Temporão. "Ele continua fazendo política. Ele foi meu sub-secretário de saúde em 2001 quando ocorreu o ressurgimento da dengue depois de anos. E foi demitido por incompetência e preguiça. Continua o mesmo falastrão de sempre".
Temporão não respondeu às agressões do prefeito. Mas o colunista Cláudio Humberto, insuspeito porque habitualmente critica o ministro, esclareceu em 26/3 que “não foi bem assim” que as coisas aconteceram em 2002: Cesar Maia demitiu, na verdade, o então secretário de Saúde, Sergio Arouca — que vinha protestando contra a falta de recursos para o controle da dengue. Temporão, seu subsecretário, braço direito e tocador dos projetos, saiu junto.

Controle Social - Canal Saúde na Web ( vídeo )

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A arte do artista ( vídeo )

A política em trapos.


Nosso meio político está em farrapos. É claro que isso não é novidade para ninguém. Todavia, em uma primeira e superficial análise, podemos nos questionar sobre os motivos que levam nosso povo a eleger políticos como os atuais. Como é possível tamanha massa deste País depositar sua confiança em homens tão suspeitos, tão auto-incriminados, tão desavergonhados? A resposta também é conhecida por muitos. Nosso povo não é politizado. E como poderia ser? A palavra politizado gera repulsa, mesmo na maioria da população com bons níveis cultural e intelectual.Assim, não se pode esperar que nossa realidade seja diferente. Na maioria dos países da Europa ocidental, a politização é intrínseca ao cidadão, é introduzida à sua forma de pensar desde a segunda infância. Aqui, este assunto remete ao enfadonho, ao “chatismo”, ao pseudo-intelectual metido que tenta se mostrar especial. Em decorrência de tal quadro, os ainda honestos e comprometidos políticos de nossa cidade, Estado e País sofrem um perverso dilema moral, não tendo opções razoáveis para continuar na luta por uma política mais digna e altruísta.Claro, pois, sem ilusões, se nossos políticos honestos pensarem apenas em fazer política para pessoas politizadas, apresentando propostas dentro das normas da ética, das pontuais restrições legais, sem usarem da política do pão e circo, da propaganda subliminar, dos crimes e contravenções eleitorais, frisa-se, cometidos pela maioria, dificilmente serão eleitos frente a um eleitorado como o nosso. Pensar o contrário pode ser confortante, mas não passa de auto-engano programado.Desta forma, o político honesto tem duas opções: entrar no jogo, ainda dentro dos seus limites morais, e vencer, para lá dentro tentar mudar essa triste realidade; ou manter sua conduta ética, sem vergar para os procedimentos consolidados por nosso povo e cultura. Se prestarmos bastante atenção, veremos que aqui mesmo em nossa cidade ainda existem políticos honestos que não vergam para as corrosivas regras desse jogo. Se, por um lado, tal fato é uma verdadeira dádiva, assim como um oásis no meio do Saara, por outro, se mostra uma preocupação, pois, dentro do contexto político atual, as chances de sobrevivência desses poucos são remotas.Lá dentro, para os políticos incorruptíveis, a convivência é infernal: boicotes generalizados fazem parte de um cotidiano em que as negociatas ocorrem às claras, as torneiras que ilicitamente enriquecem e engordam os caixas dois das campanhas restam abertas, aumentando ainda mais as dificuldades desses poucos heróis que, por fim, ainda têm de conviver com o preconceito generalizado de uma sociedade por vezes hipócrita.Apesar do quadro atemorizante, a legitimidade e a força desses poucos políticos, somada aos avanços que nossos tribunais têm galgado, demonstram que o fim deste negro túnel está muito mais próximo do que em passado recente. Uma saudável luz nos espera.

Escrito por Leonardo Augusto Beckhauser - Advogado

A heroína da imprensa


O fenômeno da imprensa irresponsável não é apenas brasileiro, e a chamada imprensa tablóide da Inglaterra se celebrizou por essa característica.O fato é que a mídia constrói celebridades instantâneas, criando para elas valores e atributos que muitas vezes não possuem.E depois que passa o efeito dos quinze segundos de fama, persistem aqueles atributos como sendo verdadeiros, mesmo que os fatos os desmintam.O leitor, a leitora, certamente ainda acha que a brasileira Andréia Schwartz, deportada dos Estados Unidos no final de semana, foi uma das responsáveis pela queda do ex-governador do Estado de Nova York Eliot Spitzer, certo?Pois uma publicação dessas especializadas em "gente", ou seja, em colunismo de celebridades, acaba de demonstrar que é tudo mentira.Segundo a revista Glamurama, criada pela jornalista Joyce Pascovitch, que se tornou conhecida com uma coluna na Folha de S.Paulo e um programa de conversas na televisão, a história de Andréia é uma fraude completa.O jornalista Osmar Freitas Júnior produziu para a revista o que o resto da imprensa deveria ter feito.Ele simplesmente conferiu as datas da prisão de Andréia e os fatos envolvendo o ex-governador, e observou que a moça já estava presa bem antes de começar a investigação sobre os maus hábitos de Spitzer.O escândalo estourou no começo deste ano, e Andréia já havia feito o acordo para ter a pena reduzida e ser deportada para o Brasil em 28 de janeiro de 2006, ou seja, antes de Spitzer ser eleito.Além de checar as datas, Osmar Freitas foi ouvir as autoridades. Entrevistou um detetive de Manhattan que participou das investigações e o promotor público que conduziu o caso do governador.Ficou sabendo que não apenas Andréia nunca havia trocado emails com o governador, como ouviu que, se ela tivesse alguma relação com o escândalo, não teria sido deportada, pois o processo contra Spitzer prossegue e seu testemunho seria importante. A história de que teria sido a informante da Promotoria de Nova York foi plantada por um amigo dela no tablóide The New York Post, conhecido por publicar qualquer coisa que faça vender jornal.A imprensa brasileira, em peso, comprou a mentira e criou a celebridade.Ela teve desembarque de heroína e, segundo a imprensa, já assinou contrato com aquela edificante revista da Editora Abril para posar nua.Certamente, será apresentada como "a brasileira que derrubou o governador de Nova York".O leitor e ouvinte pode estar questionando: por que estamos perdendo nosso tempo com essa bobagem?Será que não existem outros assuntos importantes na imprensa?De fato, o caso em questão não tem muita relevância.Afinal, trata-se apenas de uma aventureira usando a mídia para aquecer seus negócios.O problema é observar que, assim como compra uma ficção tão mal ajambrada, a imprensa pode agasalhar histórias capazes de destruir a reputação de pessoas honestas, produzir pânico sem motivos reais, como aconteceu no caso da febre amarela, no ano passado, ou afetar a eficácia de políticas públicas. Assim como os recursos da manipulação de fotografias permitem às revistas eróticas transformar qualquer coisa em diva, o jornalismo preguiçoso é capaz de criar mitos e perpetuar mentiras.

quinta-feira, 27 de março de 2008

A legalização do imposto sindical reforçará "o neopeleguismo" e o " neoestatismo".


Escrito por Valéria Nader
27-Mar-2008

A aprovação do projeto de lei 1.990/07 pelo Câmara Federal no dia 11 de março, reconhecendo legalmente as centrais sindicais como entidades gerais de representação dos trabalhadores, foi tomada por setores progressistas e mais à esquerda como um avanço para os trabalhadores.

Constituindo-se a legalização, obviamente, em um fator positivo, não pode ter aí encerrada, no entanto, a sua análise. Junto a ela, aprovou-se o recolhimento do imposto sindical, cujos efeitos nefastos para a estrutura sindical foram analisados pelo sociólogo Ricardo Antunes, professor da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), nessa primeira parte de sua entrevista concedida ao Correio.

A legalização das centrais, como mais uma medida de cooptação social sorrateiramente tomada pelo governo, é também abordada por Antunes logo abaixo. Na segunda parte de sua entrevista, a ser brevemente veiculada por este Correio, retoma-se a análise desse tipo de cooptação a partir de uma avaliação mais estrutural do governo Lula.

Confira.

Correio da Cidadania: A Câmara Federal aprovou no dia 11 de março o projeto de lei 1.990/07, que reconhece legalmente as centrais sindicais como entidades gerais de representação dos trabalhadores, o que foi considerado por alguns setores à esquerda como um avanço, na medida em que as centrais passariam a ter personalidade jurídica, assegurando a autonomia no direito de representar legalmente os trabalhadores. O que você pensa sobre isso?

Ricardo Antunes: Eu diria que o mais nefasto nem é isso, porque a legalização das centrais sindicais em si mesma é um fato positivo. As centrais não necessitam de legalização pra existir. A CUT existe desde 83, a Força Sindical desde 91, as demais centrais também há uns bons anos. De modo que a legalidade das centrais sindicais não é negativa. Em certo sentido é positiva, pois vamos imaginar uma situação política distinta desta, num governo ditatorial. A ilegalidade da central é sempre um pretexto para sua eliminação.

Mas o problema maior não reside aí, mas sim no fato de que, com a legalização das centrais sindicais, foi aprovado também o recolhimento do imposto sindical. Aí a tragédia é completa. Porque, se não bastasse o caráter nefasto do imposto sindical - criado pelo getulismo no final da década de 30, para garantir que os sindicatos tivessem uma vitalidade econômica, independentemente do número de associados, de modo que sindicato, federação e confederação recebiam uma polpuda parcela dos trabalhadores -, agora, as centrais sindicais, especialmente a CUT, que desde o nascimento se dizia claramente contra o imposto sindical, passam a promover um avanço ainda maior no processo de atrelamento dos sindicatos ao Estado.

Esse atrelamento já é evidente pela existência do FAT (Fundo de Amparo ao trabalhador), pela cooptação governamental, e agora pelo imposto sindical. As centrais ficam prisioneiras do Estado, numa espécie de fortalecimento do neopeleguismo da era lulista. Se durante o getulismo havia um neopeleguismo sindical, agora as centrais sindicais entraram em cheio, não foram contra. A única tendência ou central sindical que se manifestou claramente contra foi a Conlutas. Não vi se a Intersindical fez alguma coisa, mas, de qualquer forma, ela não atua como central sindical.

O processo de cooptação dos sindicatos pelo Estado e, portanto, de estatização deu um passo muito maior e esse é, no meu entender, o aspecto mais nefasto. Se houvesse somente a legalização das centrais sindicais, digamos que não alteraria muita coisa, porque, como disse, as centrais têm vida legal no Brasil há muito tempo. Mesmo na ditadura militar, a CUT tinha vida legal, porque tinha uma força social importante que lhe dava legitimidade.

É curioso que, na medida em que há uma relativa legitimidade junto às bases sociais do trabalho, intensifica-se o processo, pelas cúpulas, de uma espécie de neoestatatização do sindicato.

CC: Essa legalização não vai reforçar também, em certa medida, o caráter cupulista do sindicalismo?

RA: A legalização em si não. O projeto do governo de reforma sindical do final do primeiro governo, que, felizmente, não foi aprovado, tinha um claro sentido cupulista, na medida em que determinava que as centrais sindicais seriam quem, em última instância, definiriam os sindicatos e a possibilidade de sua participação. Quando houvesse mais de um sindicato numa dada base, seria a central quem faria, por delegação, a indicação do sindicato responsável, ou seja, a reforma esvaziava a dimensão de base dos sindicatos e fortalecia as cúpulas.

Mas há um segundo elemento importante e verdadeiro. É claro que, no processo de legalização das centrais sindicais, o governo Lula as cooptou. Aliás, é muito curioso. Ele tem hoje na mão a CUT e a Força Sindical. A Força Sindical, que era oposição de centro-direita, com um perfil mais neoliberal no início do governo, hoje participa ativamente do Ministério do Trabalho.

CC: Ou seja, estamos diante de mais uma medida de cooptação social sorrateiramente tomada por esse governo?

RA: Claro. No entanto, não é a legalização que traz isso. O que traz isso, entre outras coisas, é o fortalecimento das entidades de cúpulas que o imposto sindical favorece, porque, agora, a CUT, a Força Sindical, a Nova Central Sindical de Trabalhadores (NCST), todas essas, não dependem mais de cotização em função de seus associados. Além das verbas do FAT e desses fundos todos com que o governo Lula tem presenteado as centrais sindicais, elas vão abocanhar por lei 10% do valor das contribuições sindicais. É muito dinheiro. Pelo imposto sindical, todos os assalariados, homens e mulheres que trabalham em empresas privadas, terão um dia por ano do seu salário descontado, sejam sindicalizados ou não. E 10% disso, que é muito dinheiro, vai para as centrais sindicais.

CC: Ampliou-se, portanto, a porção a ser abocanhada pelas centrais?

RA: Sim, e isso fortalece a disjuntiva, a separação, entre a base e a cúpula, porque a cúpula terá dinheiro, e dinheiro estatal. Isso a empurra para ser mais dependente do Estado e a distancia daquilo que foi o mais legítimo e pujante da CUT em toda sua história, que foi, especialmente nos anos 80, ter sido uma central sindical com fortíssima representatividade na base trabalhadora brasileira, quer no operariado industrial, quer nos assalariados médios, quer nos trabalhadores públicos ou do campo. Havia um arraigamento muito forte da CUT junto à classe trabalhadora brasileira. Na medida em que se retrai esse arraigamento, ela avança no seu processo de verticalização, burocratização, institucionalização e estatização, ao passar a depender dos recursos do Estado.

É claro também que, no governo Lula, há uma clara estratégia: fortalecer as centrais pela cúpula para tê-las sempre como massa de manobra, para poder ter as centrais lhe dando ancoragem. O trágico é que as duas centrais que no passado recente, nos anos 90, não atravessavam juntas a mesma rua, agora andam de mãos dadas.

CC: Você acredita que a Conlutas e a Intersindical – centrais surgidas mais recentemente para supostamente retomarem a combatividade perdida da CUT - podem desempenhar algum papel efetivo no atual contexto histórico, semelhante ao que foi a CUT?

RA: Certamente podem desempenhar um papel muito positivo, mas semelhante ao que foi a CUT é difícil. Porque a CUT nasceu num processo muito expressivo de lutas sociais no Brasil. Costumo dizer que a década de 80 foi a mais importante para as lutas sociais no Brasil desde a de 60. E, em certo sentido, com um patamar de lutas superior aos anos 60. Basta ver que nasceram o PT em 80, a CUT em 83, o MST em 84, além de uma explosão grevista no país inteiro, com 4 greves gerais... Nós tivemos um patamar de greves que está entre os maiores do mundo nos anos 80, ou seja, foi uma década de ganho para as lutas sociais do trabalhador, urbano e rural, operário e assalariado médios.

É claro que o nascimento das duas centrais, Conlutas e Intersindical, vinte e tantos anos depois, se dá num contexto de refluxo, de desorganização da esquerda brasileira, com o PT estraçalhado, convertendo-se cabalmente num partido da ordem. O partido acabou de decidir, no dia 24 de março, que, no limite, não estão fechadas as alianças, pasmem, com o PSDB e os democratas. Quer dizer, até nesse nível chegou o PT, indicativo do quanto a esquerda se esfacelou. E a CUT, como herdeira de uma parcela importante da esquerda sindicalizada, também se arrebentou - recentemente, o PC do B, que era uma tendência importante de esquerda que dava suporte à CUT, também saiu da central.

Então, temos hoje o Conlutas, mais próximo ao PSTU e de setores do Psol, e de forças independentes de outros partidos ou grupamentos menores. Temos a Intersindical, também com setores ligados ao Psol, outros que saíram do PT e não têm vínculos partidários, e outros que deixaram a CUT e a própria Corrente Sindical Classista, que era ligada ao PC do B.

No entanto, a situação é dúplice. Por um lado, é uma situação mais adversa, pois estamos começando a juntar os cacos da esquerda sindical para termos uma certa organicidade, para termos um patamar de organização capaz de avançar. Mas foi esse pólo representado pela Conlutas e pela Intersindical que fundamentalmente fez oposição ao governo Lula em todas as tentativas de reforma, ou melhor, contra-reforma: da previdência, da taxação dos aposentados, até a tentativa no final do primeiro mandato da reforma sindical.

Oposição também reforçada pelo MST, que tem outra forma de embate. Faz suas ocupações, luta pela reforma agrária, luta contra a produção de transgênicos, contra as transnacionais, só que em uma posição política difícil, que é a tensa relação que possui hoje com o governo, já que não faz uma oposição frontal e nem uma adesão cabal. Eles reconhecem que o governo Lula é diferente do de Fernando Henrique, no que concerne à criminalização das lutas sociais. Mas tirando isso, no mais é tudo parecido. O volume de assentamentos não se alterou. A diferença é que o governo Lula não quer o MST como oposição, então faz uma política da torneira pingando.

CC: Essa situação, quase esquizofrênica, acaba sendo muito desmobilizadora, não?

RA: Claro, se o MST não faz tantas ocupações, pela ótica do governo, sai um pouco mais de água da torneira; se o MST avança, a tendência é de retração. Mas, evidentemente, como o governo Lula não quer o MST como franca oposição a ele, pois perderia uma importante base social, acaba fazendo algumas concessões que só deseja fazer ao agronegócio.

A Conlutas e a Intersindical são, portanto, em um quadro desses, um pólo de resistência do sindicalismo de esquerda, e daí nascerá o embrião de uma tendência. Como a conjuntura é muito diferente, não terá o peso que a CUT teve, que nasceu quase como uma central única. Lembre que o próprio nome dela é Central Única dos Trabalhadores. Não nasceu como central única porque uma parte do peleguismo não entrou e os partidos comunistas tradicionais também não. Na época, o PCB e o PC do B criaram a Conclat (Congresso das Classes Trabalhadoras) e depois seguiram outros caminhos.

Mas podemos dizer que a CUT nasceu como a central única de parte importante dos movimentos sociais, das lutas sociais e de vários setores da esquerda brasileira.

A Conlutas e a Intersindical, nesse sentido, têm uma amplitude muito menor, mas são um importante pólo de resistência, e certamente com a capacidade de arregimentar sindicatos importantes. Basta dizer que a Conlutas tem um sindicato do porte do dos metalúrgicos de São José dos Campos, que é muito expressivo, combativo, e a Intersindical tem um do porte do dos metalúrgicos de Campinas. Digo com muita freqüência que são os dois sindicatos mais importantes que fazem a luta social e política no país, e o mais difícil: em oposição ao governo Lula. Porque esse governo é muito articulado, é um governo que fala para os pobres muito bem, mas garante mesmo é a boa vida dos ricos. E isso cria uma situação muito difícil, porque, em geral, os governos burgueses falam para os ricos, governam para os ricos e não dialogam com os pobres.

CC: Você mencionou que a reforma sindical prevista não passou no primeiro mandato. Mas a coisa não está vindo agora aos poucos e de mansinho, para se chegar onde eles queriam?

RA: Ah, sim. Por sorte, no arranjo do Lula com o PDT, o Ministério do Trabalho ficou com o Lupi, que é menos nefasto que o Marinho. Porque o Lupi é herdeiro de um partido, o PDT, que tem um laço com o velho getulismo. Para eles, detonar a CLT é detonar o que ficou do getulismo. O Marinho, por sua vez, já dizia, antes de ser substituído e trocar de ministério, que a reforma sindical e trabalhista viria através de pequenos pacotes. Como eles não conseguiram fazer uma reforma ampla num pacotão, o pacotinho está vindo aos poucos.

CC: E com relação à reforma trabalhista, você acha que ainda sai alguma proposta estruturada nesse governo ou também vai ser tocada de mansinho? Essas medidas na área sindical estariam pavimentando o terreno para mais pacotes na área trabalhista?

RA: Como o governo Lula ainda tem bom tempo pela frente, tenho a impressão de que eles não conseguem avançar um pacote pesado da reforma sindical e trabalhista. Inclusive porque medidas dessa ordem tenderiam a rachar as centrais sindicais, além de abrir um debate no bloco de apoio do governo Lula que poderia rachar todos os setores. Por exemplo, nas classes dominantes, nas várias frações da burguesia, há quem seja a favor e contra a CLT, há quem seja a favor e contra a reforma sindical. Nas centrais sindicais também, lembre da unicidade sindical.

CC: Está havendo ainda hoje alguma discussão sobre a unicidade? Como você a encara no atual contexto?

RA: Naquela primeira tentativa de reforma sindical – que chamei na época de projeto Frankenstein, um ‘mix’ de bandeiras recauchutadas do novo sindicalismo, acrescido do velho peleguismo rejuvenescido, com um toque do sindicalismo social democrático europeu, na era neoliberal -, o governo Lula mantinha uma situação muito ambígua para a unicidade sindical.

Não se eliminava a unicidade sindical, mas se abria brechas para sua quebra na base do sindicato, na medida em que se exigia percentual de filiação do sindicato para sua representatividade. Existia uma unicidade limitada dada pelos sindicatos que tivessem determinada representatividade em relação ao número de associados. O projeto não teve coragem nem de manter a unicidade plena, nem de efetivar a liberdade e a autonomia.

Isso dividiu as centrais, porque, por exemplo, setores da Força Sindical foram contra, o PC do B dentro da CUT foi contra e setores da articulação e de outras centrais sindicais oscilavam entre posições favoráveis e contrárias.

CC: Ou seja, nesse momento, e à luz de situações anteriores, o que mais interessa é ‘acalentar’ as bases, evitando-se qualquer racha.

RA: Exatamente, não há acordo entre as centrais e este é o calcanhar de Aquiles da estrutura sindical brasileira. Abraçar a convenção 87 da OIT, que permite a legalidade, a liberdade sindical, traria uma oposição muito grande em vários setores dentro da base de apoio do governo Lula. Acho, portanto, que ele vai fazer o que vem fazendo, fatiando a reforma trabalhista e sindical, como agora com a legalização das centrais, o seu direito ao imposto sindical, a regulamentação e restrição de greves do setor público, além de medidas para criar um terreno favorável a um terceiro mandato para o bloco formado pelo PT e seus aliados.

Uma vez vitorioso, numa nova eleição, o novo governo terá condição de avançar uma reforma de maior amplitude. Nesse sentido, o governo Lula percebeu que lhe faltava base de apoio. E mexer nesse vespeiro foi muito difícil. Não passar a reforma sindical abriria um processo de fratura muito grande dentro dos setores e blocos que compõem a base de apoio do governo. Eu imagino, portanto, que a tendência é muito mais caminhar para medidas parciais que vão mudando a CLT, o que, aliás, foi feito pelo governo Fernando Henrique. Como o governo FH não conseguiu quebrar a CLT na medula, o que fez? Tomou uma série de medidas parciais que foram permitindo a terceirização, as cooperativas fraudulentas, mini-reformas que foram aos poucos adulterando pela margem alguns fundamentos da CLT.

Eu imagino que o governo Lula caminhe mais nessa direção. Não tem força, nem tempo hábil e nem consenso entre os setores que lhe dão sustentação para entrar numa reforma sindical e trabalhista com a amplitude da que foi pensada no início.

CC: Como você pensaria, ainda que idealmente, o futuro da classe trabalhadora e do sindicalismo?

RA: O desenho da classe trabalhadora brasileira mudou muito. Temos que compreender essa nova morfologia do trabalho. E como mudou muito até 5 anos atrás, 50% da classe trabalhadora brasileira já estava na informalidade. Quer dizer, quase 50 milhões de pessoas (com uma população economicamente ativa de pouco mais de 80 milhões na época) já viviam laços de informalidade. Aquela classe trabalhadora mais taylorizada e fordista, dos anos 60, 70, 80, especialmente do pós-ditadura, mudou muito. E nessa morfologia do trabalho, os sindicatos vivem alguns desafios.

Por exemplo, a classe trabalhadora hoje é tanto composta por homens e mulheres estáveis quanto terceirizados, sem falar no imenso exército de desempregados. A classe trabalhadora hoje tem também um perfil geracional. Jovens no mundo industrial, com 35 anos, já são considerados velhos para o trabalho; contingências de gênero são também muito grandes, pois a feminização do mundo do trabalho foi muito ampliada, enquanto os sindicatos, por exemplo, permanecem muito machistas, muito prisioneiros do trabalho estável e muito verticalizados. O capital é muito mais horizontal nesse sentido, porque as empresas se esparramaram. Em vez de uma empresa com 20 mil trabalhadores, eles fazem várias unidades, com redes, terceiros, empresas que fornecem a outras, nessa competitividade transnacional intensa.

Isso faz com que os sindicatos sejam desafiados a: primeiro, compreender essa nova morfologia do trabalho; segundo, representar o conjunto de toda a classe trabalhadora, não um setor ou outro. Os sindicatos sofreram muito com o neoliberalismo no Brasil. Desde Collor, passando por FH e depois por Lula, foram muito penalizados. E, paralelamente, por uma relativa liberdade sindical existente depois da Constituição de 88, tornou-se um empreendimento lucrativo abrir sindicato. Assim, a cada dia, abrem-se dezenas, centenas de sindicatos. Por quê? Você monta o sindicato, registra, obtém o reconhecimento, pois agora há uma relativa liberalização para se criarem sindicatos, e eles passam a formar uma máquina que tira dinheiro dos associados, do imposto sindical, do governo.

Eu diria que os sindicatos de esquerda, os mais combativos, estão desafiados a entender essa nova morfologia do trabalho, a não cair na disjuntiva ‘sindicato faz luta sindical e partido faz luta partidária’. O mais importante hoje do MST é ser um movimento social que faz luta social e política fortemente imbricadas. Acertando ou não, esta é a ação correta, luta social e política. Os sindicatos têm de fazer isso. Não tem mais aquela disjuntiva, isso se mostrou fracassado. O sindicato tem que recuperar a luta central pelas questões vitais, assim como estão lutando os movimentos sociais, e assim como devem lutar os partidos. Tristemente, os partidos têm entrado cada vez mais numa luta parlamentar absolutamente fadada à derrota e têm perdido a possibilidade de ser organismos e ferramentas de auxílio no processo de organização popular. Ou seja, é este o embaralhar.

Para concluir, nunca disse que a crise dos sindicatos, no Brasil e no mundo, era terminal. Há uma crise, mas as perspectivas da retomada de um sindicalismo de esquerda mais ousado existem. Nesse sentido, a Conlutas tem uma proposta interessante. Não é uma organização somente de sindicatos; ela pretende ser um pólo de auxílio de organização de lutas populares extra-sindicais e isso me parece muito importante. Acho que a Intersindical também caminha nessa direção, dentro da CUT sempre foi muito voltada à organização das lutas sociais de base. E nós haveremos de avançar junto com outros movimentos sociais, como temos visto em toda a América Latina, na Venezuela, Equador, Bolívia, na luta das fábricas recuperadas na Argentina e nos seus movimentos piqueteros. Há uma nova morfologia das lutas sociais que devemos acompanhar e que os sindicatos devem procurar compreender.

Valéria Nader, economista, é editora do Correio da Cidadania.
Colaborou Gabriel Brito.

Prefeito tem papel fundamental na contenção do crime


por Luiz Carlos Magalhães
O tema da segurança pública no país tem seu foco cada vez mais dirigido para o poder municipal. Nesse contexto, o maior exemplo da quebra de paradigmas é o lançamento do Programa Nacional de Segurança com Cidadania (Pronasci). A grande maioria das noventa e quatro medidas do Pronasci, que estão divididas em ações estruturais e programas locais, permeiam, de uma forma ou de outra, atividades diretamente ligadas às ações públicas que possuem como esfera responsável pela execução o poder público municipal. A razão dessa nova orientação acompanha uma lógica que demonstra que o desenvolvimento da comunidade se dá no município, assim, os problemas acontecem nos municípios, as pessoas nascem, vivem e morrem em bairros dos municípios.
Finalmente, ao que parece, as autoridades públicas chegaram à conclusão de que não é possível realizar política pública de qualquer natureza sem o envolvimento direto do município, ente federativo mais próximo do cidadão. Essa premissa não é diferente nas questões de segurança pública. O atual governo federal vem demonstrando que entendeu a necessidade de uma gestão comunitária da segurança pública. E para a maior eficácia dessas ações de gestão, em um ano eleitoral como 2008, urge que os candidatos às prefeituras municipais tenham em suas consciências que as responsabilidades pela segurança e pelo bom convívio nos municípios que vierem a governar devem ser baseadas na premissa do efetivo envolvimento da comunidade na resolução dos problemas. É preciso saber ainda que o prefeito, por estar mais próximo da comunidade, é a autoridade pública que mais necessita adotar uma postura pró-ativa para garantir o convívio social pacífico.
A sociedade precisa evitar o “fetichismo policial”, a premissa que considera a polícia como pré-requisito necessário para manutenção da ordem social, muitas vezes ocasiona um resultado desastroso. A influência do “fetichismo policial” nas comunidades faz com que elas passem a ignorar ou até desprezar outros meios de controle social que podem ser formais ou informais. Os aspectos estruturais da sociedade e de sua cultura são desvalorizados enquanto instrumento para manutenção e reprodução da lei e da ordem. De maneira geral, espera-se tudo da polícia e das instituições policiais, como se a responsabilidade pela resolução do problema do crime e da criminalidade não fosse de todos.
Essa visão deturpada opera baseada numa lógica segundo a qual esses problemas são exclusivamente do Estado e de seus representantes, tendo a comunidade afetada pouco ou nada a fazer. Entidades instrumentais para o controle social eficaz, como a família, a escola e as instituições religiosas, possuem uma tendência a diminuir suas ações vitais para o processo de paz social no aguardo de uma solução milagrosa da polícia que nunca chega e nem irá chegar. A comunidade precisa se convencer que o problema do crime e da criminalidade é solucionável mediante um trabalho integrado e conjunto das forças do Estado e sociedade organizada. Brito, Magalhães, Dantas e Persijn ao tratar do tema gestão comunitária revelam:
Atualmente, a “formação de parcerias” está no centro, não somente da gestão comunitária da segurança pública, como também de várias estratégias governamentais para solução de problemas sociais. Tais estratégias têm em conta a proliferação de conselhos comunitários de várias naturezas, tais como: orçamento participativo, conselhos comunitários de educação e de saúde, conselhos tutelares, dentre outros. Chaiken e Karchmer1 acrescentam: “(...) nos últimos anos, as parcerias têm sido um aspecto crítico dos esforços multijurisdicionais do policiamento de drogas”.
Os teóricos dessa noção afirmam que, na essência das parcerias está a crença de que a prevenção e a redução do crime e da desordem requerem um esforço coordenado e concentrado de indivíduos, comunidades e instituições afetadas. Uma vez que o crime pode ter múltiplas causas, infere-se que as soluções devam ser igualmente multifacetadas e, assim sendo, não possam ser encontradas somente pela polícia. (Brito, Magalhães, Dantas e Persijn, 2007)
Os gestores municipais possuem um papel preponderante no esforço conjunto de contenção da escalada do crime e da criminalidade. Não tratamos aqui da municipalização total da segurança pública, tampouco da transferência da responsabilidade pelo trato do tema (que no sistema brasileiro, é do Estado primordialmente e da União em casos específicos) para os municípios. Na verdade a idéia é expandir a participação do poder municipal no desenvolvimento e execução de programas e ações de prevenção da violência.
Ações públicas municipais de repressão à desordem pública podem e devem ser realizadas e/ou acompanhadas pelas guardas municipais e secretarias de segurança municipais, onde existirem. Até porque não podemos esquecer que vários autores nacionais e internacionais do tema segurança pública consideram os focos de desordem pública como um importante passo para a instalação de um ambiente criminógeno que poderá se transformar em uma localidade afetada pela criminalidade. A presença efetiva do poder municipal nessa fase inicial é indispensável para ajudar a conter a escalada da criminalidade urbana.
Quando tratamos de políticas públicas de prevenção ao crime e à criminalidade, via de regra, dividimos as esferas da prevenção em três categorias (i) Prevenção Primária — ações focadas em fatores sociais, econômicos, psicológicos2 e ambientais fomentadores do aumento da criminalidade. Exemplos: políticas públicas de geração de empregos, políticas públicas de inclusão social, políticas públicas de renda mínima, políticas de saúde pública, políticas públicas de inclusão escolar e combate ao abandono escolar, políticas de revitalização de espaços públicos particularmente nas áreas de risco ou de exclusão; (ii) Prevenção Secundária — ações focadas nas pessoas, locais e condições sociais propícias a estarem em situação de alto risco de se tornarem agentes agressores ou vítimas do crime e da criminalidade. Exemplos: Programa Educacional de Resistência às Drogas e à Violência (Proerd), Mulheres da Paz (Pronasci), Proteção de Jovens em Território Vulnerável — PROTEJO (Pronasci), Projeto Comunicação Cidadã Preventiva (Pronasci); (iii) Prevenção Terciária — ações focadas em problemas do crime e criminalidade específicos e já existentes. Alguns autores consideram essa esfera o momento de tratar a prevenção da reincidência, retaliação ou reprodução da violência. Exemplos: projetos de ressocialização dos egressos do sistema prisional, projetos de ressocialização, educativos e profissionalizantes para jovens e adolescentes moradores de rua, vítimas ou agentes, da violência urbana.
Não é difícil concluir que o poder municipal possui um forte talento para atuar de forma transversal nas três esferas de prevenção. Os futuros gestores municipais do país devem considerar a importância desses temas na formação dos seus programas de governo que serão apresentados à sociedade para avaliação. Em contrapartida a sociedade precisa estar atenta a esta particularidade nos planos de trabalho que serão apresentados pelos candidatos a prefeitos. Os brasileiros não podem perder a oportunidade de cobrar de seus futuros administradores públicos o comprometimento com o tema do enfrentamento do crime e da criminalidade.
Concluindo nosso artigo, a título de sugestão, elaboramos uma sucinta lista de possíveis linhas de políticas públicas municipais que tangenciam o tema da prevenção do crime e da criminalidade e que poderiam servir de norte para a elaboração de futuros programas de governos municipais:
* Reurbanização de locais com focos de criminalidade (praças e logradouros públicos);
* Utilização de monitoramento das vias públicas com câmaras da prefeitura interligadas ao sistema de Segurança pública do estado;
* Incorporação da metodologia de prevenção criada pelo pediatra norte-americano David Olds, que prevê a orientação das mães em situação de risco no período de gestação e pós-parto a procederem de forma correta no trato e educação dos seus filhos menores. As orientações são passadas pelos agentes de programas de saúde da família ou saúde em casa das prefeituras;3
* Realização de programas comunitários de educação desportiva nas quadras públicas de escolas municipais para os jovens das comunidades no horário compreendido entre as vinte e a meia noite. Normalmente horários endêmicos da criminalidade juvenil;
* Realização de programas para formação de centros comunitários capacitados para resolução pacífica de conflitos;
* Criação de perímetros escolares fiscalizados para coibir a possível venda de bebida alcoólica nos bares e restaurantes instalados nas regiões das escolas municipais de ensino fundamental e médio, objetivando a diminuição da motivação da evasão escolar durante os horários de aula.
* Intensificação das linhas de ônibus nos horários de saídas das escolas para facilitar o retorno seguro e rápido dos jovens estudantes às suas residências.
Notas de rodapé
1. CHAIKEN, KARCHMER. Multijurisdictional Drug Law Enforcement Strategies,.Washington, D.C.: USDJ/NIJ, 1990.
2. MAGALHÃES, Luiz Carlos, Artigo: A influencia da vergonha no fenômeno da violência, disponível em:
www.abdir.com.br, Acesso 19/03/2008.
3. MAGALHÃES, Luiz Carlos e DANTAS, George Felipe de Lima, Artigo: Um Programa “Saúde da Família” com “Efeito Colateral” sobre o “Fenômeno da Violência”, disponível em
www.policiaeseguranca.com.br, Acesso 19/03/2008.
Revista Consultor Jurídico, 27 de março de 2008

terça-feira, 25 de março de 2008

O mosquito que ninguém viu.


Os jornais descobriram hoje que a dengue que ataca no Estado do Rio mata 20 vezes mais que a média tolerada pela Organização Mundial da Saúde.A letalidade aceita pelo organismo da ONU é de um morto a cada cem contaminados e, segundo a OMS, o caso do Rio é mais grave do que o surto ocorrido na Índia em 2006, quando 4 mil pessoas ficaram doentes e cem delas morreram por causa do vírus da dengue.Na verdade, as autoridades não sabem exatamente, ou não querem divulgar, quantas pessoas já morreram no Rio neste verão por causa do vírus transmitido pelo mosquito Aedes Egypti.Admite-se que mais de 32 mil pessoas tenham sido contaminadas.Se o índice de mortes é de pelo menos 20 a cada cem, basta fazer uma conta simples, mas as autoridades confirmam cerca de cinquenta óbitos e a imprensa não descobriu uma fonte confiável que faça esse cálculo.Ou que faça um balanço dos atestados de óbito nos hospitais.Para o leitor distraído, que não presta atenção nas pequenas notas dos jornais, parece que a imprensa e as autoridades foram surpreendidas pela agressividade da doença.Na verdade, os jornais vinham publicando registros da evolução da dengue desde 2005, mas os dados ainda eram tímidos até a semana passada.Em 2002, houve no Rio o mesmo número de contaminados – cerca de 32 mil no auge da crise –, mas o número de mortos foi bem menor.Jornalistas que cobrem a área da saúde sabem que, no caso da dengue, o risco aumenta com as reincidências.Sabem também que, normalmente, o total de óbitos resulta de uma equação que considera a demora no atendimento, mas os sinais dados pelos jornais desde janeiro deste ano foram fracos até mesmo para serem percebidos nas próprias redações.O leitor atento questiona: onde estavam os jornalistas enquanto a doença se espalhava pelos bairros pobres do Rio? Ninguém viu que o número de casos de dengue e de mortes pela doença estava subindo? Os jornalistas vivem em que planeta, já que parece que todo mundo conhece alguém que ficou doente?A revista Época desta semana tem até o depoimento de um repórter cujo pai morreu de dengue. Não tocou nenhum alarme nas redações? E por que isso?Será que as redações perderam o contato com a sociedade e ficam dependendo de declarações das autoridades?Compare-se, então, a atual situação de calamidade social no Rio aos casos de febre amarela ocorridos nas zonas rurais do Centro-Oeste no ano passado.Os jornais nunca divulgaram o número exato de casos nem quantas mortes foram confirmadas.O surto que a imprensa noticiou na época nunca chegou a ser confirmado, mas sabe-se que o número de casos era tão baixo que foram necessários dez dias para que alguém publicasse um levantamento das ocorrências nos dez anos anteriores.Mas o escândalo que a imprensa fez na ocasião foi tão grande que levou muita gente a tomar a vacina desnecessariamente.Até hoje há suspeitas de que morreu mais gente da vacina do que da doença.Será que, para a imprensa, existem diferenças entre os mortos municipais, estaduais e federais?

Ricos mais ricos, pobres mais pobres.


Escrito por Léo Lince
19-Mar-2008

A edição de O Globo de domingo, 16 de março, abriu espaços para a divulgação de alguns dados de uma surpreendente pesquisa realizada pela Associação Brasileira de Infra-Estrutura e Indústria de Base (ABDIB). Depois do foguetório comemorativo do crescimento da economia no ano passado, a manchete em página nobre, "Na contramão do PIBão", funciona como uma espécie de balde de água fria no coral dos contentes.

Foi analisado, no período que vai de 1999 até 2006, a evolução do atendimento nos serviços públicos básicos em quatro áreas essenciais: rede de esgoto, abastecimento de água, rede elétrica e telefonia. Além de acompanhar a evolução dos números absolutos, o estudo cuida de cruzar tais informações com os dados do IBGE sobre a estratificação de renda da população. O resultado é um espanto.

É claro que, na média geral, o índice de atendimento em relação ao total da população melhorou nas áreas analisadas. Umas mais (eletricidade e telefonia), outras menos ou quase nada (saneamento básico e rede de abastecimento de água). É o tijolo por tijolo da construção cumulativa. O diabo, no entanto, mora nos números relativos. Um desastre. Para a parcela mais pobre da população, aquela com renda domiciliar de até três salários mínimos, a situação relativa piorou em todas as áreas analisadas. E, em algumas delas, de maneira dramática.

A fila dos que não têm acesso adequado ao serviço de coleta de esgoto, no sexto ano do século vinte e um, alcança a espantosa soma de 95,6 milhões de brasileiros. Pior, esta fila cresce, em termos relativos e absolutos, principalmente entre os de renda familiar de até três mínimos: 61,9% da fileira. Com relação ao abastecimento de água, é a mesma coisa: são 34 milhões na fila, 70% dos quais entre os pobres de até três mínimos. No setor de energia elétrica e na telefonia, o tamanho da fila é menor, mas o percentual dos pobres nela é ainda maior: 88,4% e 84%, respectivamente.

O Ministério das Cidades, ao ser interpelado sobre as revelações da pesquisa, replicou como fazem sempre os do governo: "a realidade apontada está em processo de transformação" e "providências estão sendo tomadas". Por outro lado, a matéria em pauta ouviu a opinião de Flavio Villaça, que é professor da Universidade de São Paulo, urbanista e pós-doutor em geografia urbana. Segundo ele, "a pesquisa é chocante, porque coloca o dedo na ferida, o aumento da desigualdade. A pesquisa é mostra cabal disso. Mostra que o Estado, de modo geral, está dominado pelos mais ricos e exclui os mais pobres". Alem de ressaltar que os efeitos de tal situação são nefastos para todos.

O Brasil, como todos sabem, ostenta faz muito tempo o lamentável galardão de campeão mundial de desigualdade social. Como se trata de um dado estrutural antigo, a situação absurda se apresenta com ares de naturalidade. Como se revela no estudo do sindicato da indústria pesada, a desigualdade de renda continua crescendo e os mais ricos ampliaram seu domínio sobre o aparato político do Estado. Mantido o atual modelo, tanto faz se a situação é de estagnação ou crescimento, o resultado será sempre a reprodução ampliada da desigualdade: os pobres mais pobres, os ricos mais ricos.

Léo Lince é sociólogo.

Conselho Municipal de Saúde de Joinville - Reunião

Data : 31.03.2008
Início : 18:30 horas
Término : 20:30 horas
Local : IPREVILLE – Praça Nereu Ramos, nº 372
Centro

PAUTA

1- EXPEDIENTES:

1.1- Aprovação da Atas das Assembléias Gerais Extraordinárias de 08.10.07 e 18.02.08;
1.2- Apresentação e aprovação da pauta da reunião;

2- ORDEM DO DIA (Presidente)

2.1 Apresentação e aprovação da Revisão Anual do Plano Plurianual 2009 da Secretaria Municipal de Saúde – representante da Secretaria Municipal de Saúde – 60';

2.2 Apresentação e aprovação do parecer da Comissão de Assuntos Internos nº 07/2008 referente à revisão anual do Plano Plurianual – Sr. Narcizo – 5';

2.3 Apresentação dos Relatórios das Comissões: Saúde do Trabalhador e Assuntos Externos da Secretaria Municipal de Saúde – Conselheiros Sônia e Nelson – 5' cada;

2.4 Esclarecimentos por parte da mesa diretora do Conselho Municipal de Saúde quanto aos questionamentos feitos pela conselheira Cléia Aparecida C. Giosole - Douglas - 10';

2.5 Apresentação e aprovação do parecer da Comissão de Assuntos Internos nº 02/2008 referente ao pagamento diferenciado de alguns procedimentos e consultas especializadas – Sr. Narcizo – 5';

2.6 Apresentação e aprovação do parecer da Comissão de Assuntos Internos nº 004/2008 referente à Prestação de Contas do 4º trimestre da Secretaria Municipal de Saúde/Fundo Municipal de Saúde – Sr. Narcizo – 5';

2.7 Apresentação e aprovação do parecer da Comissão de Assuntos Internos nº 005/2008 referente à Prestação de Contas do Hospital Municipal São José do ano de 2007 – Sr. Narcizo – 5';

3. INFORMES:

3.1 Comunicados diversos

4. ASSUNTOS DIVERSOS

segunda-feira, 24 de março de 2008


Caros amigos e amigas,

Conforme combinado estamos convidando todos para a próxima reunião do Comitê Temático de Saúde do PMDB de Joinville:

Dia: 27/03/2008 (quinta-feira)
Horário: 19h30m
Local: Diretório do PMDB de Joinville - Rua: Alexandre Schlemm, nº 900 - Anita Garibaldi.
Pauta: Diagnóstico da Saúde de Joinville.
Venha contribuir com nossa discussão !!!!!!!!!!!!

Travessia


Escrito por Frei Betto
24-Mar-2008

Quem ainda brinca de criança no domingo de Páscoa e esconde ovos de chocolate no jardim? Resta em nós uma perene idade da inocência. A ternura denuncia a veracidade do amor, sublinha Milan Kundera. Recôndito no qual evocamos, nostálgicos, as missas de domingo, as procissões sob andores cercados de velas, o toque salvífico da água benta, o silêncio acolhedor de igrejas que o gótico não teve vergonha de desenhar como vulvas estilizadas.

Jesus ressuscitou! - celebra esta festa de aleluias. Ainda que a razão não alcance a dimensão do fato pascal, a intuição capta a crise da modernidade a nos induzir a um mundo sem mistérios e enigmas. Mundo sombrio, onde os mortos se sobrepõem aos vivos.

Até o advento do Iluminismo, a inteligência recendia a incenso. Copérnico e Galileu decifraram a harmonia da natureza como reflexo do Criador e Newton acertou seus cálculos pelos ponteiros dos relógios das catedrais. Depois, o dilúvio inundou os claustros. A razão irrompeu soberana, relegando à superstição tudo que não fosse mensurável. Então, o mistério aflorou.

De que valem perguntas quando se julga possuir todas as respostas? Voltaire e os enciclopedistas ousaram secularizar a inteligência e, mais tarde, Baudelaire e Rimbaud tatearam ávidos em busca de um Deus capaz de aplacar-lhes a sede de Absoluto. Dostoiévski revestiu-se da figura emblemática de Jesus, despiu seus monges das vestes eclesiásticas, escancarou-lhes a alma atormentada pelos demônios da dúvida.

Nietzsche roubou o fogo dos deuses e incendiou de liberdade o espírito humano. Sartre proclamou que o inferno são os outros e erigiu o absurdo da morte em ato final que destitui a vida de qualquer sentido. v
Entre angústias e utopias, o último século foi também marcado pelo enigma Jesus. Corações e mentes o acolheram como paradigma: Claudel, Simone Weil, François Mauriac, Chesterton, Péguy, Graham Greene, Alberto Schweitzer etc. No Brasil, Murilo Mendes, Sobral Pinto, Gustavo Corção, Tristão de Athayde, Hélio Pellegrino etc.

Hoje, pavores transcendentais já não atribulariam a alma poética de um William Blake. Entre tanta miséria, esvai-se o encanto. Jesus é Deus que se fez homem e, de homem, virou pão. Pai Nosso/pão nosso. Esta concretude assusta. A fé cristã não proclama a ressurreição da alma, mas "da carne". Jesus não é a figura do Olimpo grego enaltecida pela força irrepresável da literatura. É o judeu crucificado, por razões político-religiosas, na Palestina do século I e cujas aparições, como ressuscitado, contradizem as regras da ficção literária. Que autor criaria um personagem imortal com chagas nas mãos e ansioso por comida? As narrativas evangélicas são, tecnicamente, descrições de um fato objetivo. À luz da fé, proclamação de que Jesus é o Cristo.

Antes de cair em mãos da repressão que o assassinou, Jesus fez-se comida e bebida. Poeta e profeta, dominava a linguagem realista dos símbolos. Eis aqui o desafio atual à inquietude da inteligência. O pão repartido passa a ser corpo divino; o vinho partilhado, aliança feita com sangue e prenúncio da festa sem fim. O Deus de Jesus não é um velho Narciso à cata de adoradores nem um algoz irado com os pecadores. É Abba, o pai amoroso ("mais mãe do que pai", diria João Paulo I), cujo dom maior é a vida.

Já não temos as longas guerras que inquietaram espíritos como Tolstoi e Camus; o que vemos, de Bagdá a Guantánamo, é escabroso comparado à engenharia marcial dos exércitos em conflito: a estrada rumo ao futuro palmilhada de corpos degradados e famintos. Hoje, tropeça-se na rua em seres esquartejados em sua dignidade. Todos os discursos oficiais e todos os ajustes fiscais ofendem a condição humana por exaltarem a concentração do lucro e ignorarem a partilha da vida. Em sua hipocrisia, o sistema salva sua aura cristã e exclui o pão. A metafísica monetarista estabiliza moedas e desestabiliza famílias; reduz a inflação e aumenta a miséria; socorre bancos e multiplica o desemprego; abraça o mercado e despreza o direito à vida - e vida em abundância, para todos.

Agora, a globalização despolitiza, o esoterismo desculpabiliza e o consumismo individualiza. Livres de ideologias messiânicas, de culpas aterrorizadoras e de altruísmo coletivo, estamos à deriva neste início de século, cujas pitonisas proclamam que "a história acabou."

Páscoa é travessia - também para uma ética política, que torne o pão acessível a cada boca e o vinho alegria em cada alma. Somos nós que, em vida, precisamos ressuscitar as potencialidades do espírito, premissas e promessas de uma verdadeira dignidade humana. Num misto de Marcel Proust e Caçador da Arca Perdida, necessitamos urgentemente empreender a busca da consciência perdida, onde a solidária indignação contra as injustiças tenha cheiro de Madeleines apetitosas. Caso contrário, seremos engolidos por esses simulacros de pirâmides - os shopping centers - que sequer têm estrutura para contar à posteridade quão grande foi a pobreza de espírito de uma geração que tinha, como suprema ambição, meia dúzia de engenhocas eletrônicas.

Frei Betto é escritor, autor de "Treze contos diabólicos e um angélico" (Planeta), entre outros livros.

Como garantir equidade de acesso ao SUS nos hospitais filantrópicos que comercializam planos de saúde próprios?


20/03/2008 13h31
Uma nova modalidade de planos de saúde está crescendo no país e já conta com mais de dois milhões de clientes. Trata-se dos planos de saúde oferecidos pelos hospitais filantrópicos que, dessa maneira, encontraram uma saída para complementar sua fonte de receita, sendo inferior apenas à fonte do SUS, que ainda é o principal responsável pelos recursos desses hospitais. O Blog do Cebes entrevistou especialistas no assunto para ampliar o debate sobre essa situação.
Em geral, os hospitais filantrópicos com planos próprios oferecem preços menores do que aqueles das demais operadoras de planos de saúde do mercado, constituindo-se em alternativa para os segmentos médios da população. Isso é possível devido à prestação direta de serviços de saúde para seus clientes, geralmente feita pelos próprios hospitais, além dos incentivos fiscais disponíveis para o setor filantrópico e da amortização de parte de seus investimentos por meio de financiamentos públicos, proporcionados pela oferta concomitante de serviços ao SUS. A pesquisadora Maria Alicia Ugá, da Escola Nacional de Saúde Pública da Fundação Oswaldo Cruz (ENSP-Fiocruz), coordenou um estudo que analisou o perfil e funcionamento dos planos de saúde que são oferecidos por hospitais filantrópicos. A equipe central do estudo foi composta pelos pesquisadores Sheyla Lemos, Pedro Barbosa, Margareth Portela, Silvia Gerschman e Miguel Murat Vasconcellos. De acordo com a Alicia Ugá, esses planos de saúde constituem-se numa alternativa suplementar à do SUS, já que, por um lado, trata-se de um sistema herdado dos planos de saúde que estavam vinculados às casas de beneficência, por meio dos chamados planos de associados. Além disso, a busca dos hospitais por fontes adicionais de recursos impulsionou a criação dessa modalidade de planos de saúde. Para a diretora do Cebes, Ligia Bahia, especialista em Saúde Suplementar, os hospitais filantrópicos possuem um caráter híbrido, por apresentarem uma estrutura jurídica e legal que é privada, mas por terem financiamento de recursos públicos. “Os hospitais filantrópicos atuam como estabelecimentos privados quando decidem investir em seus leitos e equipamentos, dispondo parte deles para empresas privadas de plano de saúde ou secretarias de saúde. Assim, o perfil assistencial em favor dos procedimentos mais rentáveis e não das necessidades de saúde. Esse status privado compromete a inserção adequada dos hospitais filantrópicos na rede do SUS”, completa. O que muito se questiona sobre esses planos de saúde está relacionado à eqüidade no acesso da população aos serviços do SUS, já que o sistema público de saúde financia aproximadamente 64% dos recursos das instituições filantrópicas, o que corrobora para o direito de todos ao acesso gratuito. Há que se notar, contudo, que ao mesmo tempo, estes hospitais são prestadores de serviço para o SUS e para os seus próprios planos, estabelecendo uma evidente concorrência dentro do serviço público. A pesquisadora Alicia Ugá complementa: “Em alguns casos, o fato da pessoa possuir o plano de saúde encurta as filas de espera – inclusive do próprio SUS – e, portanto, introduz desigualdades no acesso aos serviços de saúde. Isto ficou evidenciado na pesquisa qualitativa que desenvolvemos através de grupos focais realizados com clientes desses planos”. Financiamento Geralmente, a oferta de planos de saúde pelos hospitais filantrópicos é defendida como uma alternativa para complementar os recursos necessários para a manutenção dos serviços, a fim de ampliar a estrutura e, até mesmo, melhorar o atendimento. Embora o SUS seja o principal mantenedor, para os hospitais esses planos representam uma importante forma de complementação da renda, constituindo-se em uma dupla porta de entrada. Quanto a essa situação, Ligia Bahia mostra-se categórica. “A comercialização de serviços de hospitais filantrópicos na modalidade pré-pagamento não deveria, a rigor, sequer ser caracterizada como um plano de saúde. Além disso, é inadmissível que o estatuto de filantropia seja conservado para organizações que integrem seu patrimônio a partir de transações, nitidamente, financeiras. A existência de uma outra razão social para a comercialização de planos privados de saúde só agrava o problema”. Ao mesmo tempo, os planos de saúde filantrópicos podem estabelecer uma relação de concorrência aos serviços das grandes operadoras, forçando a queda dos preços, já que os costumam ser de 20 a 30% mais baratos, oferecendo serviços de média e alta complexidade para as classes B, C e D. Para a diretora do Cebes, essa concorrência não é válida, pois não atinge as grandes seguradoras. “Hoje há uma nítida tendência de comercializar planos com uma rede assistencial extremamente restrita. Os planos dos filantrópicos concorrem com os “planinhos” de poucos estabelecimentos acessíveis. Isso caracteriza quase uma compra de senha para passar à frente na fila do SUS”, argumenta Ligia. O estudo de Alicia Ugá comprova a quase inexistente concorrência, uma vez que o perfil dos planos de saúde filantrópicos mostrou que esse segmento atua, principalmente, no interior, em pequenos municípios, onde existem operadoras com planos de abrangência municipal e um baixo número médio de beneficiários. “Este característico mercado peculiar evidencia as limitações quanto à expansão e os riscos referentes à estabilidade e solvência do negócio em médio e longo prazo. A necessária oferta do rol de procedimentos estabelecido pela ANS para os planos novos e as obrigações para migração dos planos antigos aos novos são claros constrangimentos para as operadoras de hospitais filantrópicos, que padecem de escala quanto ao número médio de beneficiários e, portanto, têm limitações quanto ao compartilhamento do risco entre os segurados”, observa Alicia.

Cartões: dinheiro de "ninguém".




Escrito por Frei Betto
10-Mar-2008
Se essa síndrome do consumismo é estimulada pelas operadoras de cartões, o que dizer do funcionário público que lida com dinheiro que não é seu?

"Este dinheiro não é de ninguém. É dinheiro público, da prefeitura", afirmou o empresário André Wertonge Teixeira a Bruno Marzano, assessor da prefeita de Magé (RJ), em gravação registrada pela investigação de fraudes em compras que teriam gerado, em um ano, prejuízo de R$ 100 milhões em seis prefeituras fluminenses.

Essa é a lógica de todos que abusam de recursos públicos. Fingem ignorar que se trata de dinheiro do povo. Bem diz Aristóteles: "O poder desperta a ambição e faz multiplicar a cobiça".

A poderosa máquina do Estado não gera um centavo; capta bilhões através do insaciável apetite do Leão: a multiplicidade de impostos, que agora a reforma tributária promete reduzir, unificar e até isentar... Os ricos, evidentemente.

São vocês, leitor e leitora, que com seu trabalho sustentam os governos e pagam todos os salários, do presidente da República ao faxineiro da cadeia pública, dos juízes ao porteiro da escola municipal. Ora, a idéia de que dinheiro público "não é de ninguém" suscita, em pessoas desprovidas de valores éticos, aquele comichão de quem acha na rua uma nota de cinqüenta reais: o que não é de ninguém, é meu. Assim, o público é apropriado pelo privado e o coletivo pelo indivíduo.

Por que existem cartões de crédito e débito? Porque incentivam o consumo e evitam que se leve dinheiro no bolso nesses tempos em que amigos do alheio andam à espreita. De posse do cartão, perde-se um pouco a dimensão dos gastos. Basta passar a moeda de plástico numa maquininha e... Pronto! O produto está adquirido e a conta paga.

Se essa síndrome do consumismo é estimulada pelas operadoras de cartões, que por isso cobram juros exorbitantes, o que dizer do funcionário público que lida com dinheiro que não é seu? Se não discerne entre o suficiente e o bastante, cai facilmente em tentação. Poupa o seu dinheiro e vai à farra e à forra com o "dinheiro de ninguém".

É claro que, entre os 11 mil portadores de cartões corporativos do governo federal, nem todos são tão glutões no consumo quanto o reitor da Universidade de Brasília. A maioria é gente honesta e criteriosa. E muitos servidores nem sequer aceitaram portar cartões. Pressentiram que a ocasião faz o ladrão. Porém, tudo indica que uns tantos não tiveram o menor escrúpulo de torrar o nosso dinheiro em consumo desnecessário, supérfluo. E, descobertos, ainda insistem em nos chamar de bocós ao apresentar malabarísticas justificativas de como oneraram os cofres públicos.

Agora, a CPI promete investigar o uso e abuso dos cartões, para saber quais passaram de corporativos a cooperativos... Com o próprio bem-estar do usuário. O Planalto deu a mão à palmatória e se adiantou ao baixar instruções que limitam os saques em dinheiro. Reconhece, pois, que havia, sim, algo de podre no reino que não é o da Dinamarca.

Quem tem medo da CPI? Se portadores de cartões agiram com integridade, que se investigue e demonstre à nação que são caluniosas as denúncias de malversação. Se há corrupção, deve o governo se antecipar e punir exemplarmente os culpados. O que não se explica é temer transparência no uso do dinheiro público. Afinal, ele é, sim, de alguém. É de todos nós que trabalhamos, geramos riquezas e pagamos impostos. E esperamos retorno à altura de nossos direitos e necessidades. Temos, pois, o dever de fiscalizar e exigir prestação de contas da fortuna depositada em mãos das autoridades graças ao nosso sangue, suor e lágrimas. Apenas em janeiro deste ano, e sem a CPMF, o governo federal arrecadou R$ 62,5 bilhões.

Há 119 anos D. Pedro II escreveu em carta de 1º de janeiro de 1889: "A política de nossa terra cada vez me repugna mais compreendê-la. Ambições e mais ambições do que tão pouco ambicionável é".
Lidar com dinheiro alheio exige humildade, vocábulo que vem de húmus, terra, ter os pés na terra e não a cabeça nas nuvens. E requer auto-estima, saber viver segundo as limitações de seus próprios recursos, sem invejar os ricos ou pretender ingressar no seleto clube da opulência pelo beco da falcatrua.

Se corrupção existe é devido a uma única causa: a impunidade.

Frei Betto é escritor, autor de "Calendário do Poder" (Rocco), entre outros livros.