
Cebes ouve os dois lados da discussão sobre aborto
A recente polêmica em torno da adoção da contracepção de emergência pela Secretaria de Saúde do Recife durante o Carnaval e o lançamento da Campanha da Fraternidade 2008 da Igreja Católica, com o tema “Fraternidade e Defesa da Vida”, foram suficientes para fomentar a divergência entre as já conhecidas posições em relação à legalização do aborto. O assunto também foi destaque durante a 13ª Conferência Nacional de Saúde, há poucos meses, quando a proposta de a descriminalização do aborto ser debatida no âmbito do Legislativo foi desconsiderada, sobretudo devido à pressão de grupos religiosos. Segundo dados do relatório da Organização Mundial da Saúde (OMS), realizado em 2006, a cada ano cerca de 30%das gestações terminam em aborto no Brasil, considerando os casos de aborto espontâneo e provocado, que não se enquadram nos casos permitidos pela legislação brasileira. Além disso, o aborto é a quarta causa de óbito materno no país e a curetagem pós-aborto é o segundo procedimento obstétrico mais praticado no SUS, superado apenas pelo número de partos. A despeito dos dados, há que se considerar ainda os casos que estão sob a clandestinidade da prática que, na maioria das vezes, não conseguem ser contabilizados pelos órgãos governamentais, evidenciando o desconhecimento sobre os danos causados à saúde das mulheres em sua totalidade. Nesse contexto, estão inseridas as tentativas inadequadas de aborto realizadas em clínicas ilegais, seja por violência sexual, gravidez indesejada, falta de acesso a serviços de saúde, dentre outros motivos. O resultado da 13ª Conferência reflete, sobretudo, o posicionamento de grupos da sociedade civil que associam a legalização do aborto à violação do direito à vida. Porém, os problemas recorrentes ao aborto estão muito além de opiniões e posicionamentos sobre direitos reprodutivos ou da dicotomia entre defesa ou condenação, como, geralmente, o tema tem sido abordado, permanecendo na superficialidade. Para Dulce Xavier, representante da organização não-governamental Católicas pelo Direito de Decidir, essas contradições se devem à carência de informações mais abrangentes para a sociedade civil. “De fato, influenciadas pela cultura religiosa, as pessoas discutem muito pouco sobre sexualidade e a reprodução, devido a um conservadorismo que não contribui para a saúde pública como um direito de todos. Para que a população tome uma posição esclarecida é imprescindível que ela tenha amplo acesso aos argumentos defendidos por ambos os lados que discutem o aborto”, afirma. Já Clóvis Boufleur, gestor de relações institucionais da Pastoral da Criança, acredita que a população estará consciente sobre o aborto depois que for esclarecida de que “a vida humana é inegociável”, bem como da importância de defendê-la. Ele defende seu argumento,apoiado em uma pesquisa divulgada em abril de 2007 pelo o jornal Folha de S. Paulo onde 65% dos entrevistados declararam que a legislação referente ao aborto deve se manter como está. Esclarecimento sobre a questão A necessidade de ações públicas e campanhas que elucidem a sociedade civil sobre os posicionamentos diante o aborto são de extrema ajuda, na opinião do sociólogo e teólogo Orivaldo Lopes. Mas isto não é o suficiente. “É preciso que, após essas ações, a demanda gerada encontre respostas, através de um capacitado sistema público de educação e saúde, além de um programa nacional integrado de proteção à vida, que envolva a sociedade e os governos como um todo. Ninguém pode condenar o aborto, sem antes ter feito toda a ‘lição de casa’, com a organização nacional de proteção à saúde da mulher”, completa. O termo legalização do aborto frequentemente confere um significado de liberação descomedida à prática, que pode caracterizá-la como uma ação banal de assistencialismo à saúde da mulher. Contudo, a proposta que foi vetada na 13ª Conferência, lançada pelo ministro da saúde José Temporão, era direcionada à criação de mecanismos que pudessem suprir a necessidade de realizar o aborto oferecendo subsídios para que a gestante pudesse cuidar de si e do bebê ou, em último caso, minimizar os danos à saúde da mulher. Para Dulce Xavier, a descriminalização do aborto é uma questão de justiça social visto que a interrupção da gravidez é considerada um crime sem analisar as condições em que as mulheres estavam submetidas ou quando elas não tinham acesso a métodos que evitassem a gravidez não desejada. “Não se leva em conta os altos índices de violência doméstica e sexual, a posição do mercado de trabalho em relação às mulheres com filhos e a falta de apoio do Estado para o cuidado e educação dos filhos. O fato de ser crime leva as mulheres a praticar o aborto de forma clandestina e insegura, principalmente para as mais pobres. Isso gera uma questão de saúde pública que precisa ser enfrentada”, defende a ativista. Ela apóia sua argumentação no estudo do professor Aníbal Faúndes, da CEMICAMP, realizado em 2006, que revelou que a adoção de alguns procedimentos como políticas efetivas de educação sexual e acesso aos métodos contraceptivos, nos países que legalizaram o aborto, reduziu drasticamente o índice desse procedimento e de mortes das mulheres. Este cenário foi encontrado na Itália, França, Portugal, Holanda, Alemanha e Cuba. Embora a violência sexual seja um fenômeno de alta prevalência, e em torno de 30% das mortes maternas resultem de complicações de doenças que já existiam antes da gravidez, a prática do aborto previsto na lei em hospitais públicos é absoluta exceção. Isto significa que um grande contingente de mulheres, que deveria ter acesso ao aborto com segurança em ambiente hospitalar, coloca sua vida em risco por submeter-se a abortos clandestinos. Clóvis Boufleur diz que investimentos no SUS e promoção da saúde a todos os brasileiros seriam métodos eficazes para melhorar a saúde da mulher e, assim, contribuir para a redução da mortalidade materna, sem a necessidade da legalização do aborto. “Um bom começo seria a busca pela educação de qualidade e integral desde a infância, para reduzir a incidência de gravidez precoce e indesejada. É preciso esclarecer que aborto legal não é o mesmo que seguro”, defende. Para a OMS, a definição de saúde está muito além do funcionamento perfeito dos órgãos do corpo humano. A integralidade do indivíduo, incluindo suas disposições psíquicas e o meio sócio-ambiental em que está inserido, integram o conceito pleno desta condição. Concordante desse sentido, Orivaldo Lopes acredita que a educação, desde a infância, é instrumento fundamental para que o aborto não seja a solução para um problema público. Entretanto, esta educação deve ser aliada ao acompanhamento familiar, médico e social, para não se tornar meramente informativa. “O aborto precisa ser pensado no âmbito mais amplo da qualidade de vida da população. Isolar a questão é produzir um desconhecimento e também a pura e simples legalização não irá ajudar. Seria uma forma irresponsável de se omitir”, pondera o sociólogo.
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