sexta-feira, 28 de março de 2008

Em luta, sempre.


Carolina Stanisci

Plínio de Arruda Sampaio, 77, é um idealista com os pés no chão. Ex-deputado federal pelo PT, hoje filiado ao PSOL, o paulista de Jaú tem a sua trajetória de vida misturada à política brasileira. Ele falou à MPD Dialógico sobre sua participação na Constituição brasileira de 1988. Na época, o então deputado ajudou a transformar o Ministério Público na instituição que é hoje “reconhecida pelas camadas populares”, como revela. Seu diagnóstico sobre os 20 anos da Constituição federal, porém, é pessimista: “Essa abertura que houve em 88 foi liquidada pelo que houve depois”. O que aconteceu depois, diz Plínio, foi uma reviravolta neoliberal que tirou o país dos trilhos do desenvolvimento. Para o eterno militante, o Brasil atual é um “mercado emergente, não mais uma nação”. Veja abaixo.

Qual foi o seu papel na Constituinte?
Fui relator do capítulo do Poder Judiciário. Tinha que discutir as questões da magistratura, do Ministério Público, da Defensoria Pública e da Procuradoria Geral da República. Conseqüentemente, tive que entrar na discussão do Ministério Público. E esse foi o capítulo em que obtive mais êxito. Consegui aprovar quase tudo o que propus.

Os membros do Ministério Público têm o sr. como responsável pela mudança de feição da instituição após a CF 88...
Foi um trabalho de equipe. Eles tinham um longo processo de maturação da idéia de uma nova instituição.

“Eles” seriam o MP paulista ou o MP de todo o Brasil?
O Ministério Público de todo o Brasil. Mas a coisa começou em São Paulo, há muitos anos. E uma das pessoas que foram centrais para isso foi o meu pai. Meu pai era promotor, fundador da Associação Paulista do Ministério Público e da revista Justitia.

Como é o nome de seu pai?
João Batista Arruda Sampaio. Ele, junto com o dr. [Antonio] Queiroz Filho, com o dr. [Gilberto] Kujavski, com o dr. Mario Moura, começou esse trabalho de transformar o Ministério Público em uma instituição autônoma, fiscal da lei e que promove sua execução. A primeira coisa que eles conseguiram foi colocar na Constituição de 46 a menção ao Ministério Público. E aí veio um longo processo de elaboração intelectual e de luta política para dar autonomia a esse órgão, que antes era apêndice do Poder Executivo. A associação paulista suscitou outras associações, e fizeram a Conamp, a associação nacional. E, através de congressos e congressos, foram decantando uma fisionomia institucional para o Ministério Público. Eles, da Conamp, me levaram esse texto, e meu trabalho foi convencer meus colegas de que aquele capítulo era fundamental para o país.

O sr. poderia rememorar sua história no Ministério Público?
Eu entrei para o MP em 1954. Logo em seguida, meu pai foi nomeado secretário da Segurança Pública aqui, no governo do Jânio [Quadros]. Eu vim com ele. Depois, voltei para o Ministério Público. Fiquei mais um tempo. O Carvalho Pinto se elegeu e me levou para ser chefe do Plano de Ação e subchefe da Casa Civil. Mas eu tinha essa vivência de Ministério Público. E, além disso, eu tinha a história do meu pai. Essas discussões foram na minha casa, com o Queiroz Filho... Todos eles discutindo para ver como montava a instituição, que garantias o promotor precisava para poder de fato exercer a função de promover a lei e de fiscalizar a execução da lei.

O sr. foi cassado em 1964, ficou dez anos no MP, portanto.
Não fiquei o tempo todo lá, fui deputado, fui secretário do Estado... Fiz carreira política. Se contar tudo de MP, devo ter uns dois anos e meio.

E por que o sr. tinha esse interesse em mudar a carreira?
Porque é fundamental para o país. Eu não fiz nenhum lobby para o Ministério Público. Atuei como um deputado do povo brasileiro, que precisa de uma instituição. Tanto que o sucesso foi absoluto. Hoje o MP é uma instituição reconhecida pelas camadas populares.

O MP está cumprindo suas funções constitucionais?
De todos os órgãos constitucionais, o MP é o que está mais cumprindo o que está na Constituição.

O que carece de regulamentação urgente hoje na CF?
Fiz uma força danada para que a magistratura tivesse autonomia orçamentária. Porque eu acho que o Judiciário brasileiro tem que expandir mais. A população é enorme. O que acontece? Acumula processo. A reforma dos códigos processuais é fundamental. Nós temos um processo que permite ao réu, ou à parte rica, prolongar indefinidamente o processo.

Houve uma reforma no Código de Processo Civil na década de 90.
Foi fraquíssima. Não resolveu nada.

Além dessa mudança processual, o que precisa de regulamentação urgente?
Essa Constituição foi, na verdade, violentada. Ela sofreu duas violências. A primeira durante o seu processo de elaboração. Ela se encaminhou inicialmente inteirinha para constituir no Brasil o regime político parlamentarista. Mas no meio...

A escolha pelo presidencialismo atrapalhou a Constituição?
Muito. Eu fiz o meu capítulo com o pressuposto de uma Constituição parlamentarista. Porque essas coisas são assim [faz gesto com as mãos entrelaçadas]. Eu estava vendo que o sistema do Legislativo e do Executivo ia para o parlamentarismo. Eu então bolei um tribunal constitucional para esse sistema. No meio da Constituinte, apareceu o centrão. Foi uma reação da direita, que ficou assustada, fez um bloco, mudou o regimento interno e introduziu algumas emendas que simplesmente quebraram o equilíbrio, a harmonia do que vinha sendo feito.

Por exemplo?
Por exemplo, o presidencialismo numa instituição que é parlamentarista. O tribunal constitucional, que deveria ser só constitucional, virou um tribunal constitucional e uma corte de cassação superior. Resultado, ele julga causa civil, causa penal.

Por isso até hoje o STF julga causas...
Absolutamente ridículas. E pára tudo. Aí vem essa história de súmula vinculante, que eu derrotei na Constituinte, e voltou, a avocatória, que eu derrotei lá, e voltou. Porque acumula de uma tal maneira, que o bom senso diz: “Aqui julgou de um jeito, tem que ser desse jeito”.

Sua proposta para desafogar o Judiciário seria que o STF voltasse a ser tribunal constitucional?
[E que tenha] Muito mais juízes e juizados especiais. Eles [juízes] tinham que levar o orçamento deles e discutir, no Congresso, com o Executivo e o Legislativo. O Legislativo faria [o orçamento] dele; o Executivo, o dele; e o Judiciário, o dele.

Qual foi a outra violência contra a CF?
A Constituição foi dirigida contra o parlamentarismo, foi dirigida contra o capítulo do poder econômico e contra a reforma agrária. Tanto que a reforma agrária tem dois dispositivos que, aparentemente, são contraditórios. A propriedade precisa cumprir sua função social. A que não cumprir pode ser desapropriada. Mas, se ela for produtiva, não. Esse artigo ficou inútil.

Como surgiu o termo “função social da propriedade” no texto da CF?
Isso vem de uma longa elaboração. Vem da doutrina social da Igreja, dizendo que sobre a propriedade pesa uma hipoteca social. E o pagamento dessa hipoteca era cumprir funções sociais. Por exemplo, dar emprego, pagar bem, respeitar a natureza, produzir coisas úteis. Tudo isso constituía a função social. Uma propriedade que produz, mas paga pessimamente, aloja funcionários de maneira que eles ficam doentes, polui todos os rios... Ela não cumpre todas as outras funções sociais, só uma: ela produz. E aí já não pode desapropriar. Então, a magistratura disse: “Para mim, é limite automático: produziu, não pode tirar”. E as outras funções ficaram inúteis. Ensejou-se essa interpretação reacionária.

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