domingo, 16 de março de 2008

Educação Popular frente à construção de uma escola cidadã.


por Fabíola Andrade Pereira* & Vivian Galdino de Andrade**

Resumo
Em meados do contemporâneo a ‘Educação Popular’ tem ganhado destaque, sobretudo no que se refere a suas perspectivas enquanto prática pedagógica e uma teoria da educação cuja concepção tem sido uma das mais belas contribuições ao pensamento pedagógico universal. Neste aspecto, urge emaranhados de questões que evocam a necessidade de pensá-la como uma busca, um produto histórico, nos levando a lançar algumas idéias para renovar antigas discussões já realizadas a esse respeito, tentando analisar o que está contido no “conceito”. Para tanto, cabe-nos perguntar: O que significa a educação popular? O que seria o popular? Que caminhos ela aponta para se construir uma escola cidadã? Através desta breve análise, tentamos compreender o campo da educação popular sob a perspectiva de uma educação emancipatória.
Palavras - chave: educação, cidadania, popular.

(Re) definindo conceitos
A educação popular surgiu na América Latina no calor das lutas populares dentro e fora do Estado. Nesse sentido, afirma Gadotti (1999: 06),
A educação popular, como prática pedagógica e educacional pode ser encontrada em todos os continentes, manifestadas em concepções e práticas muitos diferentes e até antagônicas. A educação popular passou por diversos momentos epistemológicos – educacionais e organizativas, desde a busca pela conscientização, nos anos 50 e 60, e a defesa da escola pública popular comunitária, nos anos 70 e 80, até a escola cidadã, nos últimos anos, num mosaico de interpretações, convergências e divergências.
Desta forma, a proposta de refletir acerca da Educação Popular enquanto produto histórico do seu tempo implica muito mais que partir em busca de apreciação de conceitos – sem ter a intenção de fugir desta prática. Devemos ir além, o que certamente nos remete a necessidade de buscar bases sólidas, sobretudo, através de suporte teórico que convirjam conhecê-la e entendê-la em seu contexto histórico.
Entretanto, convém aclarar que a Educação Popular tal como conhecemos hoje encontra sua origem no século XIX, época em que houve grandes transformações sociais e políticas. Aos olhos de muitos, educar o povo parece muitas vezes o modo de lutar contra as dissidências operárias e de chegar à pacificação social. Além disso, a Educação Popular se fundamenta na existência de um projeto social específico, um verdadeiro “humus social e cultural”. Assim, esses dispositivos a fazem um espaço, sobretudo, de ações e práticas, e não me meros discursos, cujo risco é virar ideologia. Nessa ótica, a Educação Popular se situa na ação, da qual tem o papel de extrair sua legitimidade.
Segundo Paludo
[1] (2001:53 ), a “Educação Popular representa uma concepção de educação que inicia sua gestação com o projeto de modernidade brasileira e latino-americana, cujos contornos se inovam e começa a se delinear de forma mais clara, ganhando adesões nos anos 60 e aprofundando-se nas décadas de 70 e 80”[2] . Partindo dessa observação, cremos não ser exagero assinalar que as décadas mencionadas foram responsáveis pelas mais vivas e fecundas elaborações de Educação Popular que hoje conhecemos, a exemplo pode-se mencionar a obra e prática de “Paulo Freire, que defendia a educação como prática da liberdade. A noção de liberdade na pedagogia de Freire tinha uma posição de relevo. Segundo ele, essa noção: é matriz que atribui sentido a uma prática educativa que só pode alcançar efetividade e eficácia na medida da participação livre e critica dos educados” (FREIRE, 2006: 13) E que, “a conscientização é uma das fundamentais tarefas de uma educação realmente libertadora e por isso respeitadora do homem como pessoa” (FREIRE: 2002: 45).
Sob este ponto de vista afirma Beisiegel (1992: 42), o processo educativo então desenvolvido por Paulo Freire surgia como expressão educacional de um projeto político, ou seja, um projeto que estivesse comprometido com um ideal de “transformação pacífica” da sociedade de forma a envolver ativamente o povo nas atividades políticas, estimulando a criação de organizações populares, no campo e na cidade. Streck (2006:10), afirma que a Educação Popular procurou ser uma prática político-pedagógica de formação do público a partir de um lugar que se identificava com quem estava de fora ou por baixo na escala social, dependendo das teorias explicativas do popular.
De qualquer modo, partindo das premissas levantadas, acreditamos ser necessário frisar que a concepção de Educação Popular que aqui abordamos busca apontar para aquela que nasce de uma prática pedagógica, política e social. Levando em consideração que todo ato cultural é pedagógico e todo ato pedagógico é cultural, pode-se afirmar que a Educação Popular é aquela direcionada às camadas populares, voltada para as suas necessidades e atendendo os seus interesses, tornando os indivíduos elaboradores de sua própria cultura. Este processo pode acontecer dentro ou fora dos muros institucionais.
Educação do Povo x Educação popular
Nesta direção convém esclarecer que a presente reflexão busca apontar uma distinção básica entre Educação do Povo e Educação Popular que como podemos perceber aponta algumas diferenças. É comum, quando se aborda a questão educacional, ouvirem-se expressões como: “educação popular”, “educação do povo’, “educação das massas”. Ora o adjunto adjetival de tais expressões é por demais problemático. Como afirma o professor Beisiegel “o termo popular envolve um alto teor de indefinições, apenas sugere, mais do que esclarece, tanto a natureza quanto a extensão dos fenômenos que procura especificar” (BEISIEGEL, 1994, p. 54). O conceito popular abriga conotações muito distintas entre si, apontando desde a idéia de classe social às classes subalternas, pobres, marginalizados, oprimidos e excluídos. Já o termo popular dirige-se a todas as camadas da população, com atenção especial para aquelas que estão despossuídas de bens saberes ou poderes legitimados. Para Streck (2006: 32) a educação popular não tem como ponto de partida um único lugar, e também não tem como ponto de chegada um único projeto. O autor defende que: O ponto de partida pode ser as mulheres, os povos indígenas, os camponeses, os desempregados, os moradores de rua ou os trabalhadores da indústria e do comércio, cada um desses segmentos sociais com suas formas de organização, pautas de luta e projeto de sociedade. O ponto de chegada que se deseja pode variar desde a ampliação de espaços na sociedade existente até a criação de um modelo alternativo, parcial ou totalmente distinto daquele que existe (STRECK, 2006: 20).
Talvez uma característica definidora da Educação Popular seja exatamente essa busca de alternativas a partir de lugares sociais e espaços pedagógicos distintos, que têm em comum a existência de necessidades que levam a querer mudanças na sociedade. É uma prática pedagógica realizada num espaço de possibilidades.
Segundo Mauruel (2000:15) existem três conceitos de povo e, por conseguinte, três princípios de ação que dele decorre respectivamente: político, social e antropológico. Na concepção política advinda do século XVIII, trata-se do povo chamado a manifesta-se pelo voto, quer dizer um conjunto de “cidadãos” constitutivos da vontade geral. A esse conceito, acrescenta-se, segundo ele o aspecto social de povo no qual este último representa a fração que sofre, reunindo pessoas e grupos sociais que não participam da vontade geral. Por último, este é o é conceito antropológico de povo, entendido como uma comunidade regida pelo fato de partilhar uma identidade. Percebe-se desta forma, que a educação popular situa seu campo no cruzamento dos três conceitos defendidos pelo autor. O fato é que o(s) público(s) entre o qual a educação popular pretende agir é bastante diversificado.
Paludo (2001) afirma que a primeira (povo) diz respeito à velha e sempre renovada discussão da educação das classes populares, enquanto a segunda (popular) se refere a uma das concepções de educação das classes populares presentes na sociedade brasileira, ou seja, a concepção de Educação Popular. Assim, buscamos entendê-la como uma prática social que vem ganhando contornos ao longo da história e cuja importância se dá pela instrumentalização do homem pela democratização da cultura. Segundo Freire (2006: 117), A cultura como o acrescentamento que o homem faz ao mundo que não fez. A cultura como resultado de seu trabalho. Do seu esforço criador e recriador. O sentido transcendental de suas relações. A dimensão humanística da cultura. A cultura como aquisição sistemática da experiência humana. Como uma incorporação, por isso crítica e criadora, e não uma justaposição de informes ou prescrições “doadas”. A democratização da cultura(...). Haveria uma matriz de um pensamento popular historicamente construído, a partir da qual as idéias são adaptadas, transformadas ou rejeitadas, o que vai depender do contexto histórico no qual está inserida.
Educação popular x escola cidadã
Neste ínterim, a educação popular, dentro desta perspectiva, não pode centrar-se somente nas campanhas, movimentos e experiências vividas em vários pontos do país, que são altamente relevantes e que tem atenção especial. Vemos a necessidade de direcionarmos nosso olhar para uma educação popular que foca também a escola, especificamente a escola pública, pois é sabido que há uma luta constante de vários educadores pela garantia de uma escola pública, de qualidade. A escola cidadã neste contexto, segundo Gadotti (1999: 20), ... nasce do inconformismo de muitos educadores e não educadores com a deteriorização do ensino público e da ousadia em enfrentar o discurso e a proposta hegemônica , confrontando-lhes uma alternativa, a partir de uma concepção democrática de educação(...) O que as classes populares reivindicam hoje é uma escola pública que não seja apenas a extensão da escola burocrática do Estado, mas sobretudo querem discutir a função social dessa escola, colocando em questão seus conteúdos e sua gestão. Importante lembrar que esse movimento não tem a pretensão de negar o papel do Estado como principal articulador das políticas sociais, o que se coloca em questão é um movimento que reivindique a autonomia com vista a definição de um novo projeto político pedagógico, pois para o sociólogo Florestan Fernandes, ( in BARROS, 1960: 163-164)
Democratizar o ensino não significa apenas expandir a rede de escolas mantendo padrões elitistas e o privilégio social. O ensino precisa ser democrático na sua estrutura, na mentalidade dominante, nas relações pedagógicas e nos produtos dos processos educacionais. Nesta mesma proposição nos alerta Paiva (1984:34): Tornar a escola popular não implica torná-la substancialmente diferente das escolas da elite; é a esta escola que as classes populares querem arrancar do estado, submetendo-a à sua crítica sem deteriorar a qualidade nem abdicar do seu conteúdo. Mas a democratização do ensino implica a democratização dos ensinos que a gerem (e a mudança da mentalidade da burocracia escolar) e dos que se encarregam da planificação educacional e da orientação pedagógica a diferentes níveis da administração, democratizando o planejamento da expansão e melhoria da rede de ensino, incluindo a consulta à população a respeito de suas prioridades e expectativas em relação à escola.
A participação é fundamental, pois é neste exercício que a população assume a parte que lhe toca por direito. Desta forma cabe a nós educadores, educandos, pessoas, partidos, organizações e sindicatos que defendem os interesses das classes populares, esta difícil e imprescindível tarefa. Contudo, vemos que o que leva a construção da escola cidadã “seria uma escola pública autônoma sinônima da educação popular, integrante de um sistema único (público) e descentralizador (popular)” (GADOTTI: 2001, p.54). Assim, a autonomia a qual nos referimos é antes de qualquer coisa democrática (para todos), que vise, sobretudo, formar o cidadão para controlar o mercado e o Estado, sendo ao mesmo tempo pública quanto ao seu destino, estatal quanto a seu financiamento e comunitária quanto a sua gestão. Portanto, a educação popular nesta perspectiva deve ser universalizante (escola para todos, gratuita e, de boa qualidade), assumida por todos, de forma que, através desta possa surgir novos olhares, compreensões e sobretudo novos direcionamentos que efetivem de fato uma educação que prima pela equidade social, ética, respeito, inclusão, consciência crítica e liberdade.
Perspectivas
Assim, falar em Educação Popular é falar do conflito que move a ação pedagógica; é falar dos sonhos, dos planos e ao mesmo tempo dos sofrimentos tanto de educadores como de educandos. É sem dúvida falar em perspectivas de educação, cujo ponto de partida seja a realidade social e o objetivo seja a construção de um projeto político de sociedade.
Neste sentido, a Educação Popular precisa assumir novas tarefas para um nova era, que, segundo Beisiegel (in PAIVA, 1994, p 57 ), implica entre os objetivos centrais de suas atividades, a reflexão crítica de todos, educandos, educadores, intelectuais e homens do povo, sobre a qualidade do ensino desenvolvido na escola pública, o processo de exclusão, dificuldade de acesso à vaga, ou a sua inexistência, os conteúdos, a qualidade do ensino, as frustrações das expectativas populares e as representações ideológicas legitimadoras das desigualdades. Nesse conjunto de práticas identifica-se uma acentuada contribuição acadêmica na área em todo cenário latino americano. Este aporte intelectual ajudará na retomada de um saber popular politizado, condensado em práticas políticas e participativas.
A Educação Popular vem mostrar caminhos. Segundo Guiso (1995, p. 32) ela tem a responsabilidade de construir um processo pedagógico que recupere o saber popular, contribuindo para a construção, apropriação e aplicação de conhecimentos que respondam, com pertinência e eficácia, às necessidades de vida rumo à participação sociocultural e política dos sujeitos envolvidos.
Nesse sentido, se faz urgente o fortalecimento da Educação Popular no aspecto pedagógico e em ações coletivas que envolvem tanto a qualidade do trabalho quanto a formação e profissionalização dos educadores, pois aliar formação e profissionalização é o mínimo que podem fazer os sistemas oficias de escolarização e o movimento de educação popular.
De qualquer modo, parece consenso que hoje a Educação Popular necessita ser democratizada, estendendo-se a todos os setores socais
[3]. Desta forma, a liberdade que se almeja é aquela que comunga com a luta concreta dos homens por libertar-se, uma liberdade cujo desafio consiste em ultrapassar as barreiras impostas pelos opressores.
Assim, entende-se que a perspectiva pedagógica das práticas que organizam as ações é nesse contexto essencial para a conquista da cidadania, pois o que se espera é que a Educação Popular construa um projeto de sociedade onde o ser humano seja resgatado na sua plenitude de ‘eu e nós’. Trata-se de construir a cidadania para cada um e para todos nós.
Considerações Finais
Em várias partes do mundo a educação popular tem tentado influenciar os sistemas de ensino e principalmente o currículo. No contexto latino americano, diversas concepções vão surgindo e se dividindo em correntes e tendências que tentam de alguma forma caracterizá-la. Muitas vezes a mesma é definida por aquilo que não é. O fato é que esta tem se configurado de forma muito diversificada.
Como vimos sua perspectiva emancipatória busca a formação crítica do cidadão, com vista a um processo de conscientização (FREIRE, 1987, p. 45), na tentativa de fazer renascer um novo projeto de sociedade, onde o ‘eu e nós’ seja realmente valorizado.
Na tentativa de remediar desequilíbrios sociais ela dirige-se às vítimas das desigualdades sociais e culturais daí o termo popular que busca atingir todas as camadas da população, pretendendo ser uma educação para todos. Defendemos no entanto, uma Educação Popular que estimule as potencialidades do povo através da conscientização e da ampla participação social, uma Educação Popular que se dê num espaço de trocas de saberes, onde a gestão seja participativa e que busque integrar comunidade e movimentos populares na construção de sua identidade. Num espaço que não reproduza os interesses da sociedade dominante, mas que forme pessoas críticas, conscientes de seus direitos, curiosos por conhecer e descobrir, por fim, um lugar onde se possa exercer a autonomia, isto é, uma escola cidadã. A Educação Popular transforma-se num espaço de construção e de novas esperanças, rumo às lutas mais amplas, pelo ensino básico, público e universal, de forma que ninguém seja excluído. Assim, vemos que mais do que nos grandes discursos ou nos conhecimentos elaborados, mais do que no refinamento ou na fundamentação teórica do que venha ser a (re) definição de um conceito “povo” ou “popular”, é de ntro da perspectiva da escola cidadã que de ve-se caracterizar sua autonomia, e pedagogia, mesmo que ainda inacabada. Pois enquanto um produto histórico do seu tempo a Educação Popular alimenta-se no compromisso, na paixão, na coragem e no saber das militâncias que ainda nos tempos atuais a defendem e a levam adiante.

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