
Conselho de saúde como parte de arenas redistributivas:
uma reflexão sobre a equidade*
Eduardo Navarro Stotz[i]
Aluísio Gomes da Silva Júnior[ii]
O presente texto[iii] propõe uma discussão sobre os Conselhos como instância de interação entre segmentos da sociedade civil e o setor estatal, centrando a atenção na disputa em torno da redistribuição de bens e serviços de saúde. Insere essa discussão no contexto histórico no qual a descentralização da política social surge como uma das medidas destinadas a enfrentar a crise do “Welfare State”. Trata inicialmente da temática mais ampla da descentralização, recortando-a sob o ângulo da relação entre sociedade civil e Estado, e situa o foco da análise na questão da equidade. Discute a seguir a configuração da política de saúde e dos atores nela envolvidos como uma arena redistributiva, destacando sua especificidade. Aborda, por fim, à luz da questão da equidade, uma experiência singular, colocando em relevo a possibilidade de que demandas particularistas sejam interpretados e encaminhadas com vistas à construção de uma esfera pública em nosso país.
1. – A descentralização aparece, a partir dos anos 80, como um modo de tematizar o campo das políticas sociais no contexto da crise do Estado Providência. O que chama atenção, nesse contexto, é o relativo consenso entre pensadores de vertentes ideológicas contrastantes, quando não abertamente antagônicas. A convergência entre o pensamento liberal-conservador e o da esquerda socialista, destacada por OFFE (1991), reside na crítica à forma burocrática e centralizada de administração dos serviços sociais públicos, por ser ineficaz e ineficiente. Estruturas democráticas e descentralizadas de política social poderiam superar tais limitações. Genericamente, descentralização é compreendida como a transferência de responsabilidades aos níveis de governo mais próximos da população, e às coletividades não públicas (associações, fundações, agrupamentos diversos), como apontam DRAIBE E HENRIQUE (1988) no balanço da literatura internacional sobre a crise do Welfare State. Vista sob o prisma da posição liberal-conservadora, contudo, a descentralização é apenas uma das medidas a compor o receituário para o tratamento da crise. A focalização e a privatização constituem as outras medidas que, inclusive, conferem direcionalidade à descentralização (ISUANI, 1990). Enquanto política, essa posição foi defendida por membros e assessores de agências multilaterais de financiamento, como o FMI e o Banco Mundial, enquanto parte integrante do chamado “ajuste estrutural”[iv] das economias nos anos 80 (SPINELLI, 1991). As políticas sociais deveriam, segundo as proposições do Banco Mundial (1990) para a América Latina, considerar os seguintes requisitos: o gasto público concentrar-se nos grupos mais vulneráveis da população mediante políticas de “focalização”, a ação do Estado em matéria de políticas sociais ser restrita, o Estado abandonar políticas universalistas, privatizar relativamente os serviços sociais básicos, utilizando os serviços privados inclusive para a “focalização”. Os primeiros sinais de uma ofensiva contra políticas sociais de corte universalista fizeram-se sentir, no campo da saúde, através da crítica à “utopia” do programa Saúde Para Todos no Ano 2000, da Organização Mundial de Saúde. Ao final dos anos 70, avaliando que a estratégia propugnada, a Atenção Primária de Saúde (APS), seria excessivamente custosa, ambiciosa e inacessível por muito tempo, os partidários de uma “nova” estratégia propuseram, alternativamente, a “atenção primária seletiva” com vistas a atacar algumas grandes patologias, selecionadas segundo sua freqüência, taxa de mortalidade e de morbidade e vulnerabilidade a um tratamento facilmente disponível. A nova abordagem tornou-se rapidamente a perspectiva adotada pelas entidades internacionais de ajuda aos países em desenvolvimento, ainda que não endossada pela OMS (GRODOS e BÉTHUNE, 1988). Por outro lado a crítica da esquerda socialista ao Welfare State, na qual a centralização era apenas um dos tópicos, deixou os “estatistas” na difícil condição de enfrentar o ataque conservador sem aliados. Coube aos “estatistas” não apenas demonstrar a necessidade de funções centrais (e, inevitavelmente centralizadoras, até certo ponto) para garantir a equidade social, argumentando sobre o caráter histórico dessa necessidade do ponto de vista da solidariedade entre os trabalhadores (NAVARRO, 1993), mas lidar com o fato concreto de um Estado em crise em um contexto econômico desfavorável ao gasto público. Dada esta situação, é compreensível a omissão diante de críticas à ineficiência e ineficácia da administração centralizada dos serviços sociais públicos (ISUANI, 1990). Mas, desde então o tema da descentralização impôs-se, obrigando à reflexão sobre os marcos mais amplos que delimitam seu sentido no pensamento sociólogo. Assim a rediscussão sobre o papel do Estado na sociedade e, portanto, da natureza da relação Estado-Sociedade é colocada na ordem do dia e toma conta da agenda. Retoma-se, porém, com o sentimento de uma carência aguda: o horizonte utópico deixa de ser visível e ainda que os valores subsistam não orientam mais projetos de mudança da ordem social. E, mesmo admitindo o desaparecimento de um horizonte utópico para o desenvolvimento social, revalida-se o valor da justiça social como critério definidor, de qualquer política social. Em outros termos: a política social é uma meta-política, produzida para reduzir significativamente as desigualdades sociais. Assim sendo, deve privilegiar a dimensão coletiva (e não a individualista) da relação Estado – sociedade civil (ISUANI, 1992). Com isto o processo de descentralização exclui o caminho da privatização e a participação das organizações com fins lucrativos da sociedade civil. O caráter meta-político da política social, referido ao objetivo de justiça social, impõe, como vimos, uma rediscussão sobre o papel do Estado na sociedade. Para o autor citado, o Estado não pode abrir mão de duas funções centrais: o de garantir o direito à cidadania e o de reduzir as desigualdades sociais. O cumprimento dessa dupla função não exige o monopólio estatal da provisão de bens e serviços, mas sim o poder de regulação e de redistribuição. A descentralização em direção aos níveis locais de governo e às organizações não-lucrativas da sociedade civil pode inclusive implicar a provisão de bens e serviços capazes de ampliar a cidadania. O aspecto mais importante da descentralização, porém, diz respeito ao compartilhamento de responsabilidades políticas com as associações não- lucrativas, ao que nós, na tradição brasileira recente, chamamos de controle social: para a identificação de problemas, desenho de soluções, gestão de políticas.Por que não radicalizar a transferência de poder à sociedade civil? Ou seja, por que não substituir o estatal pelo social, sob a forma de serviços coletivos geridos por grupos sociais específicos, reduzindo, assim, enormemente, a demanda sobre o Estado?
Assim de acordo com Isuani, pensamos também que “... una provisión librada a la suerte de la sociedade civil introduce el problema de lãs desigualdades existentes en ella y por lo tanto de la ciertamente alta inequidad que presentaria tal sistema de produción de bienes y servicios. El escenario problable de tal sistema seria: más para los que más recursos y poder possen.” (ISUANI, 1990, 12). A descentralização em direção à sociedade civil não pode desconhecer a desigualdade e a divisão que lhe é intrinsecamente constitutiva. A sociedade civil expressa a organização de interesses opostos não apenas assimetricamente em função da propriedade, mas também da parcela da riqueza que é diferencialmente apropriada, segmentando os próprios trabalhadores, marcada por outras divisões que se superpõem, como “fixações” ideológicas, culturais, à estratificação econômica (discriminações quanto à idade, ao sexo, à etnia, à cor). Em razão dessas considerações e se o raciocínio até aqui desenvolvido é correto, é inevitável a seguinte pergunta: a atribuição de status público pelo Estado a organizações que expressam interesses particularistas (ainda que “não-lucrativos”), não abriria caminho para uma redistribuição de bens, de serviços e de recursos marcada também pela iniqüidade? A resposta a esta questão é difícil e somente teóricos com formação livresca, desvinculados da prática social ousariam respondê-la prontamente. A melhor atitude é a prudência: sim e não, a depender de uma série de fatores dentre os quais o papel do Estado assume uma relevância maior. O pressuposto do qual partimos (advirta-se desde logo para a sua forma hipotética: se, a depender de – então talvez) é o de que, paradoxalmente, o fortalecimento do papel regulador e coordenador do Estado, desde o nível federal até o municipal, permitiria à sociedade, ao defrontar-se consigo mesma, aprofundar a solidariedade, os pontos de ligação e de reaproximação. O paradoxo consiste em que a existência do Estado representa o reconhecimento da divisão de interesses na sociedade. Como então poderia exercer uma função integradora sem tomar “partido” por determinados interesses? Para esclarecer o paradoxo, deve-se aceitar o princípio de que os sujeitos coletivos (os atores sociais como as associações de portadores de doenças agudas e crônicas, de moradores de bairro, de mulheres, os sindicatos de trabalhadores, etc.) se constituem como tal apenas nas formas concretas de relação, entre sociedade e Estado, afirmam suas identidades na interação entre si com o “pessoal do Estado”, o qual aparece como o referente geral[v]. Em outros termos, a sociedade civil defronta-se consigo mesma, reconhece-se em suas divisões, na diversidade de seus interesses particulares, através do Estado, ao mesmo tempo, é por intermédio do Estado que um certo grau de coesão e homogeneidade é alcançado (LECHNER, 1985), ainda que transitoriamente, nunca globalmente. Mas o paradoxo somente se resolve na luta social e política, historicamente, em um processo aberto. Se, a depender de então talvez. A depender do fortalecimento do papel regulador e coordenador de um Estado democrático, da construção de formas institucionais que articulem representação e participação, da vontade política dos governantes em compartilhar responsabilidades e, ao mesmo tempo, de enfrentar as desigualdades, atuando no contexto de uma sociedade civil que se fortalece ao reconhecer suas diferenças e admitir o conflito... Este não é o nosso desafio, o nosso umbral utópico possível? – No caso da política de saúde, os Conselhos aparecem como uma das formas institucionais de relação entre Estado e Sociedade Civil. Conselho de Saúde são vistos aqui como instâncias de interação entre determinados segmentos sociais representados (com status público) e o setor estatal (com autoridade, em diferentes níveis de governo e de gestão), objetivando redistribuir bens e serviços de saúde qualificados e percebidos como direitos sociais. Pensamos os Conselhos, enquanto processos institucionalizados de conflito e negociação, como parte de uma arena de disputa em torno de uma política de cunho redistributivo (NOGUEIRA e NUNES, 1993). O caráter redistributivo da política de saúde manifesta-se na universalização do acesso aos bens, serviços e recursos, beneficiando a maioria da população, com custos concentrados na parcela de renda mais elevada. O problema, assinalado por FAVARET FILHO e OLIVEIRA (1989), da auto-exclusão – em termos da atenção do sistema público de saúde – desta parcela, na qual se incluem amplos segmentos de assalariados, obriga-nos a fazer alguns comentários. Cabe esclarecer que usuário do sistema público de saúde e qualquer pessoa com necessidade de atenção. Ainda que tal definição contenha a dimensão do direito, a referência, à necessidade remete à falta de recursos, sobretudo de renda suficiente. Como a utilização varia conforme o tipo de serviço ou cuidado requerido, sobremaneira o grau de especialização destes, é possível afirmar que o sistema público tende a tornar-se universal (a englobar a totalidade da população) de acordo com o nível de atenção à saúde e na dependência do custo do serviço. É sabido que assalariados de renda mais elevada buscam as clínicas especializadas – cirurgias, diálise, psiquiatria, etc. – do setor público, que as mortes por AIDS de indivíduos de classes média ocorrem em leitos públicos e melhorias na qualidade dos serviços provocam “migração” de usuários do setor privado para o público. Deste modo, a universalização do acesso precisa ser pensada em termos da relação população total – serviços oferecidos, o que deixa evidente também a falácia e a armadilha da “focalização” na saúde. Verifica-se, assim, que a política de saúde, dentro do conceito de seguridade social, se impõe custos a certos grupos da sociedade em favor de outros, proporciona benefícios difusos, mesmo que segmentados conforme o nível de atenção e de especialização. O cerne da disputa na arena redistributiva em torno da política de saúde está caracterizada pela obrigação do Estado em garantir a efetividade do conceito de seguridade social. Mais precisamente, pela problemática transferência de recursos, dentro do regime de compressão do gasto social vigente, da Previdência Social a Saúde[vi]. O problema do financiamento da saúde, se revela a estrutura relativa da escassez do setor, minimiza, e até mesmo contribui para obscurecer conflitos relacionados à alocação de recursos. O processo de descentralização, contudo, tem trazido à tona a disputa de interesses no interior do sistema público de saúde (entre os subsistemas estatal, filantrópico e privado contratado). O desenvolvimento da disputa em uma direção favorável ao bem-estar da população e, portanto, da efetividade do direito social à saúde depende, em boa medida, do que os autores citados atrás denominam da especificidade da arena redistributiva: esta supõe padrões de demanda e sistemas de decisão integrados, implicando uma coalização política razoavelmente ampla. Um dos complicadores tem sido, historicamente, a fragilidade do nível federal da gestão do sistema público de saúde em desempenhar seu papel normatizador, regulador e coordenador de interesses. O trabalho de engenharia político-institucional montado a partir de janeiro de 1993, tem, contudo, dado contornos mais precisos e “regras do jogo” para arbitrar interesses. A articulação de fóruns de intermediação, como as Comissões Tripartite (Nacional) e Bipartites (Estaduais), atuando em consonância com os Conselhos Nacional e Estaduais de Saúde, em um modelo pactuado de disputa, representa, sem dúvida, um avanço em relação à “administração convenial” no sistema público de saúde, a qual representa o predomínio, na relação Estado-Sociedade civil, dos interesses mercantis, avessos, obviamente, à universalização do acesso enquanto direito.[vii] 3. – Dada essas especificidades da arena redistributiva na saúde (nos limites do Sistema Único de Saúde), os Conselhos de Saúde aparecem como uma instância colegiada e participativa de menor poder de pressão do que os agentes políticos institucionalizados, como os Conselhos de Secretários Estaduais e Municipais de Saúde. Trata-se aqui de um problema atinente à natureza das organizações e dos atores: o de uma diferenciação quanto ao grau de institucionalização e, portanto, de poder de pressão e barganha nas disputas em torno de redistribuição de bens, serviços e recursos. Os Conselhos de Saúde, por incluírem, mormente no nível municipal de gestão do sistema, uma diversidade razoável de organizações da sociedade civil, apresentam na arena redistributiva o padrão mais difuso e, pois, menos integrado. O dilema vivido pelos conselheiros, que representam a sociedade civil consiste em precisar articular-se com os prestadores de serviço e profissionais de saúde – os quais também são agentes políticos institucionais -, e simultaneamente envidar esforços para fortalecer suas bases de apoio, organizadas autonomamente. Certamente também nesse plano existem conflitos. A questão em pauta aqui é a falta de “regras do jogo” claramente instituídas. Quer dizer que o âmbito do “controle social” tem baixo nível de definição e de institucionalização dentro do sistema público de saúde. Um exemplo é o caráter simultaneamente consultivo e deliberativo do Conselho Municipal do Rio de Janeiro, o que deixa margem à interpretação política das atribuições dos conselheiros. O conselho seria consultivo no que diz respeito às decisões da autoridade municipal relativamente ao setor estatal, e deliberativo quanto se trata de aprovar convênios e contratos com o setor privado? A se tomar os termos da Lei Municipal 7.146/91, os verbos participar no que refere ao Sistema Único de Saúde e aprovar no tocante a contratos e convênios, parecem indicar uma limitação ao poder do conselho e, pois, uma concepção restrita de controle social. O grau de incorporação dos Conselhos na vida institucional do setor público de saúde é um tema específico cujo estudo contribuiria para avaliar o quanto avançamos (qualitativamente, com perdão para o jogo de palavras) na democratização da política setorial e, mais amplamente, do processo de descentralização política do setor. Em que pesem as dificuldades e limitações apontadas, importa saber, a partir da interrogação que se faça sobre aspectos da prática social, se os Conselhos tem atuado no sentido de uma redistribuição eqüitativa de bens e serviços. Para explorar as possibilidades inscritas em uma experiência singular, fazemos aqui uma descrição cinta, seguida de comentários, da atuação do Conselho Municipal de Saúde de Niterói frente à questão do pagamento dos procedimentos de diálise. Em 1993, o representante da Associação Niteroiense de Deficientes Físicos (ANDEF), membro do Conselho, encaminha denúncia dos deficientes renais crônicos de que estes estariam sendo recusados na rede de clínicas conveniada ao SUS, sob o argumento de que as clínicas (responsáveis por 80% do atendimento de um universo estimado de 400 pacientes) não estariam sendo adequadamente pagas, posto que a demanda era crescente. O agendamento público teve resposta da Secretaria Municipal, através da Superintendência de Ações Integradas a quem estava afeta a questão dos convênios com o setor privado. Os conselheiros foram então esclarecidos de que 42% dos recursos do SUS faturados em Niterói já eram destinados ao pagamento dos procedimentos de diálise. Assim sendo, que o argumento do setor privado era pretexto para aumentar o teto dos recursos. Com isto, comprometer-se-ia o pagamento de recursos destinados aos serviços municipalizados, ao Hospital Universitário e ao demais serviços privados. Para enfrentar, contudo, o problema dos deficientes renais crônicos, o representante do prestador de serviço do setor público propôs suas medidas a serem implementadas: o aumento da participação do setor público, através do Hospital Universitário, na produção do serviço (até então limitada a 20%) e a realização de programas de prevenção, considerando-se a estimativa de que 80% dos deficientes eram hipertensos cronificados. Diante dos esclarecimentos e das medidas propostas, o representante da ANDEF considerou-se satisfeito. Nesta experiência, o que chama inicialmente atenção é o caráter particularista da demanda, agindo a ANDEF, objetivamente, como porta-voz dos interesses privados que queriam ampliar sua margem de faturamento. Na dinâmica de interação entre este segmento dos usuários e o prestador de serviços, a demanda perdeu esse caráter para assumir um sentido público. Tal processo ocorreu não apenas devido ao levantamento do “véu de ignorância” em torno do plano de aplicação financeira do SUS em Niterói, mas também porque, ao colocar em questão a alocação global de recursos, teve a virtualidade de trazer à tona outros interesses que, no limite, afetariam a maioria absoluta da população usuária. A afirmação de um interesse implicou no reconhecimento de interesses diferentes trazidos à luz pela mediação da autoridade pública. De modo bastante limitado, foi uma experiência na qual a sociedade civil, no âmbito territorial de um município, viu-se confrontada consigo mesma. De questão pública, a demanda assumiu a forma de uma opção política pela equidade, e, portanto, de exclusão de uma orientação particularista para a política de saúde. A proposta de ampliação da produção de procedimentos de hemodiálise pelo setor público, através do Hospital Universitário, teve do condão de afetar os interesses privativistas da corporação médica presentes no próprio setor público. Segundo denúncias veiculadas pelos representantes dos usuários, proprietários de clínicas de nefrologia exerceriam também cargos de chefia no serviço oferecido, com baixa produção, pelo Hospital Universitário. Fica evidente nessa experiência que, para além de mediar interesses, cabe ao Estado, no respectivo nível de gestão do sistema de saúde, atuar como autoridade pública. Ou seja, agir integrando demandas por sua transformação em questões públicas e apresentando opções políticas. Não é disso que se fala quando de advoga a obrigação do Estado em garantir o direito à saúde?
uma reflexão sobre a equidade*
Eduardo Navarro Stotz[i]
Aluísio Gomes da Silva Júnior[ii]
O presente texto[iii] propõe uma discussão sobre os Conselhos como instância de interação entre segmentos da sociedade civil e o setor estatal, centrando a atenção na disputa em torno da redistribuição de bens e serviços de saúde. Insere essa discussão no contexto histórico no qual a descentralização da política social surge como uma das medidas destinadas a enfrentar a crise do “Welfare State”. Trata inicialmente da temática mais ampla da descentralização, recortando-a sob o ângulo da relação entre sociedade civil e Estado, e situa o foco da análise na questão da equidade. Discute a seguir a configuração da política de saúde e dos atores nela envolvidos como uma arena redistributiva, destacando sua especificidade. Aborda, por fim, à luz da questão da equidade, uma experiência singular, colocando em relevo a possibilidade de que demandas particularistas sejam interpretados e encaminhadas com vistas à construção de uma esfera pública em nosso país.
1. – A descentralização aparece, a partir dos anos 80, como um modo de tematizar o campo das políticas sociais no contexto da crise do Estado Providência. O que chama atenção, nesse contexto, é o relativo consenso entre pensadores de vertentes ideológicas contrastantes, quando não abertamente antagônicas. A convergência entre o pensamento liberal-conservador e o da esquerda socialista, destacada por OFFE (1991), reside na crítica à forma burocrática e centralizada de administração dos serviços sociais públicos, por ser ineficaz e ineficiente. Estruturas democráticas e descentralizadas de política social poderiam superar tais limitações. Genericamente, descentralização é compreendida como a transferência de responsabilidades aos níveis de governo mais próximos da população, e às coletividades não públicas (associações, fundações, agrupamentos diversos), como apontam DRAIBE E HENRIQUE (1988) no balanço da literatura internacional sobre a crise do Welfare State. Vista sob o prisma da posição liberal-conservadora, contudo, a descentralização é apenas uma das medidas a compor o receituário para o tratamento da crise. A focalização e a privatização constituem as outras medidas que, inclusive, conferem direcionalidade à descentralização (ISUANI, 1990). Enquanto política, essa posição foi defendida por membros e assessores de agências multilaterais de financiamento, como o FMI e o Banco Mundial, enquanto parte integrante do chamado “ajuste estrutural”[iv] das economias nos anos 80 (SPINELLI, 1991). As políticas sociais deveriam, segundo as proposições do Banco Mundial (1990) para a América Latina, considerar os seguintes requisitos: o gasto público concentrar-se nos grupos mais vulneráveis da população mediante políticas de “focalização”, a ação do Estado em matéria de políticas sociais ser restrita, o Estado abandonar políticas universalistas, privatizar relativamente os serviços sociais básicos, utilizando os serviços privados inclusive para a “focalização”. Os primeiros sinais de uma ofensiva contra políticas sociais de corte universalista fizeram-se sentir, no campo da saúde, através da crítica à “utopia” do programa Saúde Para Todos no Ano 2000, da Organização Mundial de Saúde. Ao final dos anos 70, avaliando que a estratégia propugnada, a Atenção Primária de Saúde (APS), seria excessivamente custosa, ambiciosa e inacessível por muito tempo, os partidários de uma “nova” estratégia propuseram, alternativamente, a “atenção primária seletiva” com vistas a atacar algumas grandes patologias, selecionadas segundo sua freqüência, taxa de mortalidade e de morbidade e vulnerabilidade a um tratamento facilmente disponível. A nova abordagem tornou-se rapidamente a perspectiva adotada pelas entidades internacionais de ajuda aos países em desenvolvimento, ainda que não endossada pela OMS (GRODOS e BÉTHUNE, 1988). Por outro lado a crítica da esquerda socialista ao Welfare State, na qual a centralização era apenas um dos tópicos, deixou os “estatistas” na difícil condição de enfrentar o ataque conservador sem aliados. Coube aos “estatistas” não apenas demonstrar a necessidade de funções centrais (e, inevitavelmente centralizadoras, até certo ponto) para garantir a equidade social, argumentando sobre o caráter histórico dessa necessidade do ponto de vista da solidariedade entre os trabalhadores (NAVARRO, 1993), mas lidar com o fato concreto de um Estado em crise em um contexto econômico desfavorável ao gasto público. Dada esta situação, é compreensível a omissão diante de críticas à ineficiência e ineficácia da administração centralizada dos serviços sociais públicos (ISUANI, 1990). Mas, desde então o tema da descentralização impôs-se, obrigando à reflexão sobre os marcos mais amplos que delimitam seu sentido no pensamento sociólogo. Assim a rediscussão sobre o papel do Estado na sociedade e, portanto, da natureza da relação Estado-Sociedade é colocada na ordem do dia e toma conta da agenda. Retoma-se, porém, com o sentimento de uma carência aguda: o horizonte utópico deixa de ser visível e ainda que os valores subsistam não orientam mais projetos de mudança da ordem social. E, mesmo admitindo o desaparecimento de um horizonte utópico para o desenvolvimento social, revalida-se o valor da justiça social como critério definidor, de qualquer política social. Em outros termos: a política social é uma meta-política, produzida para reduzir significativamente as desigualdades sociais. Assim sendo, deve privilegiar a dimensão coletiva (e não a individualista) da relação Estado – sociedade civil (ISUANI, 1992). Com isto o processo de descentralização exclui o caminho da privatização e a participação das organizações com fins lucrativos da sociedade civil. O caráter meta-político da política social, referido ao objetivo de justiça social, impõe, como vimos, uma rediscussão sobre o papel do Estado na sociedade. Para o autor citado, o Estado não pode abrir mão de duas funções centrais: o de garantir o direito à cidadania e o de reduzir as desigualdades sociais. O cumprimento dessa dupla função não exige o monopólio estatal da provisão de bens e serviços, mas sim o poder de regulação e de redistribuição. A descentralização em direção aos níveis locais de governo e às organizações não-lucrativas da sociedade civil pode inclusive implicar a provisão de bens e serviços capazes de ampliar a cidadania. O aspecto mais importante da descentralização, porém, diz respeito ao compartilhamento de responsabilidades políticas com as associações não- lucrativas, ao que nós, na tradição brasileira recente, chamamos de controle social: para a identificação de problemas, desenho de soluções, gestão de políticas.Por que não radicalizar a transferência de poder à sociedade civil? Ou seja, por que não substituir o estatal pelo social, sob a forma de serviços coletivos geridos por grupos sociais específicos, reduzindo, assim, enormemente, a demanda sobre o Estado?
Assim de acordo com Isuani, pensamos também que “... una provisión librada a la suerte de la sociedade civil introduce el problema de lãs desigualdades existentes en ella y por lo tanto de la ciertamente alta inequidad que presentaria tal sistema de produción de bienes y servicios. El escenario problable de tal sistema seria: más para los que más recursos y poder possen.” (ISUANI, 1990, 12). A descentralização em direção à sociedade civil não pode desconhecer a desigualdade e a divisão que lhe é intrinsecamente constitutiva. A sociedade civil expressa a organização de interesses opostos não apenas assimetricamente em função da propriedade, mas também da parcela da riqueza que é diferencialmente apropriada, segmentando os próprios trabalhadores, marcada por outras divisões que se superpõem, como “fixações” ideológicas, culturais, à estratificação econômica (discriminações quanto à idade, ao sexo, à etnia, à cor). Em razão dessas considerações e se o raciocínio até aqui desenvolvido é correto, é inevitável a seguinte pergunta: a atribuição de status público pelo Estado a organizações que expressam interesses particularistas (ainda que “não-lucrativos”), não abriria caminho para uma redistribuição de bens, de serviços e de recursos marcada também pela iniqüidade? A resposta a esta questão é difícil e somente teóricos com formação livresca, desvinculados da prática social ousariam respondê-la prontamente. A melhor atitude é a prudência: sim e não, a depender de uma série de fatores dentre os quais o papel do Estado assume uma relevância maior. O pressuposto do qual partimos (advirta-se desde logo para a sua forma hipotética: se, a depender de – então talvez) é o de que, paradoxalmente, o fortalecimento do papel regulador e coordenador do Estado, desde o nível federal até o municipal, permitiria à sociedade, ao defrontar-se consigo mesma, aprofundar a solidariedade, os pontos de ligação e de reaproximação. O paradoxo consiste em que a existência do Estado representa o reconhecimento da divisão de interesses na sociedade. Como então poderia exercer uma função integradora sem tomar “partido” por determinados interesses? Para esclarecer o paradoxo, deve-se aceitar o princípio de que os sujeitos coletivos (os atores sociais como as associações de portadores de doenças agudas e crônicas, de moradores de bairro, de mulheres, os sindicatos de trabalhadores, etc.) se constituem como tal apenas nas formas concretas de relação, entre sociedade e Estado, afirmam suas identidades na interação entre si com o “pessoal do Estado”, o qual aparece como o referente geral[v]. Em outros termos, a sociedade civil defronta-se consigo mesma, reconhece-se em suas divisões, na diversidade de seus interesses particulares, através do Estado, ao mesmo tempo, é por intermédio do Estado que um certo grau de coesão e homogeneidade é alcançado (LECHNER, 1985), ainda que transitoriamente, nunca globalmente. Mas o paradoxo somente se resolve na luta social e política, historicamente, em um processo aberto. Se, a depender de então talvez. A depender do fortalecimento do papel regulador e coordenador de um Estado democrático, da construção de formas institucionais que articulem representação e participação, da vontade política dos governantes em compartilhar responsabilidades e, ao mesmo tempo, de enfrentar as desigualdades, atuando no contexto de uma sociedade civil que se fortalece ao reconhecer suas diferenças e admitir o conflito... Este não é o nosso desafio, o nosso umbral utópico possível? – No caso da política de saúde, os Conselhos aparecem como uma das formas institucionais de relação entre Estado e Sociedade Civil. Conselho de Saúde são vistos aqui como instâncias de interação entre determinados segmentos sociais representados (com status público) e o setor estatal (com autoridade, em diferentes níveis de governo e de gestão), objetivando redistribuir bens e serviços de saúde qualificados e percebidos como direitos sociais. Pensamos os Conselhos, enquanto processos institucionalizados de conflito e negociação, como parte de uma arena de disputa em torno de uma política de cunho redistributivo (NOGUEIRA e NUNES, 1993). O caráter redistributivo da política de saúde manifesta-se na universalização do acesso aos bens, serviços e recursos, beneficiando a maioria da população, com custos concentrados na parcela de renda mais elevada. O problema, assinalado por FAVARET FILHO e OLIVEIRA (1989), da auto-exclusão – em termos da atenção do sistema público de saúde – desta parcela, na qual se incluem amplos segmentos de assalariados, obriga-nos a fazer alguns comentários. Cabe esclarecer que usuário do sistema público de saúde e qualquer pessoa com necessidade de atenção. Ainda que tal definição contenha a dimensão do direito, a referência, à necessidade remete à falta de recursos, sobretudo de renda suficiente. Como a utilização varia conforme o tipo de serviço ou cuidado requerido, sobremaneira o grau de especialização destes, é possível afirmar que o sistema público tende a tornar-se universal (a englobar a totalidade da população) de acordo com o nível de atenção à saúde e na dependência do custo do serviço. É sabido que assalariados de renda mais elevada buscam as clínicas especializadas – cirurgias, diálise, psiquiatria, etc. – do setor público, que as mortes por AIDS de indivíduos de classes média ocorrem em leitos públicos e melhorias na qualidade dos serviços provocam “migração” de usuários do setor privado para o público. Deste modo, a universalização do acesso precisa ser pensada em termos da relação população total – serviços oferecidos, o que deixa evidente também a falácia e a armadilha da “focalização” na saúde. Verifica-se, assim, que a política de saúde, dentro do conceito de seguridade social, se impõe custos a certos grupos da sociedade em favor de outros, proporciona benefícios difusos, mesmo que segmentados conforme o nível de atenção e de especialização. O cerne da disputa na arena redistributiva em torno da política de saúde está caracterizada pela obrigação do Estado em garantir a efetividade do conceito de seguridade social. Mais precisamente, pela problemática transferência de recursos, dentro do regime de compressão do gasto social vigente, da Previdência Social a Saúde[vi]. O problema do financiamento da saúde, se revela a estrutura relativa da escassez do setor, minimiza, e até mesmo contribui para obscurecer conflitos relacionados à alocação de recursos. O processo de descentralização, contudo, tem trazido à tona a disputa de interesses no interior do sistema público de saúde (entre os subsistemas estatal, filantrópico e privado contratado). O desenvolvimento da disputa em uma direção favorável ao bem-estar da população e, portanto, da efetividade do direito social à saúde depende, em boa medida, do que os autores citados atrás denominam da especificidade da arena redistributiva: esta supõe padrões de demanda e sistemas de decisão integrados, implicando uma coalização política razoavelmente ampla. Um dos complicadores tem sido, historicamente, a fragilidade do nível federal da gestão do sistema público de saúde em desempenhar seu papel normatizador, regulador e coordenador de interesses. O trabalho de engenharia político-institucional montado a partir de janeiro de 1993, tem, contudo, dado contornos mais precisos e “regras do jogo” para arbitrar interesses. A articulação de fóruns de intermediação, como as Comissões Tripartite (Nacional) e Bipartites (Estaduais), atuando em consonância com os Conselhos Nacional e Estaduais de Saúde, em um modelo pactuado de disputa, representa, sem dúvida, um avanço em relação à “administração convenial” no sistema público de saúde, a qual representa o predomínio, na relação Estado-Sociedade civil, dos interesses mercantis, avessos, obviamente, à universalização do acesso enquanto direito.[vii] 3. – Dada essas especificidades da arena redistributiva na saúde (nos limites do Sistema Único de Saúde), os Conselhos de Saúde aparecem como uma instância colegiada e participativa de menor poder de pressão do que os agentes políticos institucionalizados, como os Conselhos de Secretários Estaduais e Municipais de Saúde. Trata-se aqui de um problema atinente à natureza das organizações e dos atores: o de uma diferenciação quanto ao grau de institucionalização e, portanto, de poder de pressão e barganha nas disputas em torno de redistribuição de bens, serviços e recursos. Os Conselhos de Saúde, por incluírem, mormente no nível municipal de gestão do sistema, uma diversidade razoável de organizações da sociedade civil, apresentam na arena redistributiva o padrão mais difuso e, pois, menos integrado. O dilema vivido pelos conselheiros, que representam a sociedade civil consiste em precisar articular-se com os prestadores de serviço e profissionais de saúde – os quais também são agentes políticos institucionais -, e simultaneamente envidar esforços para fortalecer suas bases de apoio, organizadas autonomamente. Certamente também nesse plano existem conflitos. A questão em pauta aqui é a falta de “regras do jogo” claramente instituídas. Quer dizer que o âmbito do “controle social” tem baixo nível de definição e de institucionalização dentro do sistema público de saúde. Um exemplo é o caráter simultaneamente consultivo e deliberativo do Conselho Municipal do Rio de Janeiro, o que deixa margem à interpretação política das atribuições dos conselheiros. O conselho seria consultivo no que diz respeito às decisões da autoridade municipal relativamente ao setor estatal, e deliberativo quanto se trata de aprovar convênios e contratos com o setor privado? A se tomar os termos da Lei Municipal 7.146/91, os verbos participar no que refere ao Sistema Único de Saúde e aprovar no tocante a contratos e convênios, parecem indicar uma limitação ao poder do conselho e, pois, uma concepção restrita de controle social. O grau de incorporação dos Conselhos na vida institucional do setor público de saúde é um tema específico cujo estudo contribuiria para avaliar o quanto avançamos (qualitativamente, com perdão para o jogo de palavras) na democratização da política setorial e, mais amplamente, do processo de descentralização política do setor. Em que pesem as dificuldades e limitações apontadas, importa saber, a partir da interrogação que se faça sobre aspectos da prática social, se os Conselhos tem atuado no sentido de uma redistribuição eqüitativa de bens e serviços. Para explorar as possibilidades inscritas em uma experiência singular, fazemos aqui uma descrição cinta, seguida de comentários, da atuação do Conselho Municipal de Saúde de Niterói frente à questão do pagamento dos procedimentos de diálise. Em 1993, o representante da Associação Niteroiense de Deficientes Físicos (ANDEF), membro do Conselho, encaminha denúncia dos deficientes renais crônicos de que estes estariam sendo recusados na rede de clínicas conveniada ao SUS, sob o argumento de que as clínicas (responsáveis por 80% do atendimento de um universo estimado de 400 pacientes) não estariam sendo adequadamente pagas, posto que a demanda era crescente. O agendamento público teve resposta da Secretaria Municipal, através da Superintendência de Ações Integradas a quem estava afeta a questão dos convênios com o setor privado. Os conselheiros foram então esclarecidos de que 42% dos recursos do SUS faturados em Niterói já eram destinados ao pagamento dos procedimentos de diálise. Assim sendo, que o argumento do setor privado era pretexto para aumentar o teto dos recursos. Com isto, comprometer-se-ia o pagamento de recursos destinados aos serviços municipalizados, ao Hospital Universitário e ao demais serviços privados. Para enfrentar, contudo, o problema dos deficientes renais crônicos, o representante do prestador de serviço do setor público propôs suas medidas a serem implementadas: o aumento da participação do setor público, através do Hospital Universitário, na produção do serviço (até então limitada a 20%) e a realização de programas de prevenção, considerando-se a estimativa de que 80% dos deficientes eram hipertensos cronificados. Diante dos esclarecimentos e das medidas propostas, o representante da ANDEF considerou-se satisfeito. Nesta experiência, o que chama inicialmente atenção é o caráter particularista da demanda, agindo a ANDEF, objetivamente, como porta-voz dos interesses privados que queriam ampliar sua margem de faturamento. Na dinâmica de interação entre este segmento dos usuários e o prestador de serviços, a demanda perdeu esse caráter para assumir um sentido público. Tal processo ocorreu não apenas devido ao levantamento do “véu de ignorância” em torno do plano de aplicação financeira do SUS em Niterói, mas também porque, ao colocar em questão a alocação global de recursos, teve a virtualidade de trazer à tona outros interesses que, no limite, afetariam a maioria absoluta da população usuária. A afirmação de um interesse implicou no reconhecimento de interesses diferentes trazidos à luz pela mediação da autoridade pública. De modo bastante limitado, foi uma experiência na qual a sociedade civil, no âmbito territorial de um município, viu-se confrontada consigo mesma. De questão pública, a demanda assumiu a forma de uma opção política pela equidade, e, portanto, de exclusão de uma orientação particularista para a política de saúde. A proposta de ampliação da produção de procedimentos de hemodiálise pelo setor público, através do Hospital Universitário, teve do condão de afetar os interesses privativistas da corporação médica presentes no próprio setor público. Segundo denúncias veiculadas pelos representantes dos usuários, proprietários de clínicas de nefrologia exerceriam também cargos de chefia no serviço oferecido, com baixa produção, pelo Hospital Universitário. Fica evidente nessa experiência que, para além de mediar interesses, cabe ao Estado, no respectivo nível de gestão do sistema de saúde, atuar como autoridade pública. Ou seja, agir integrando demandas por sua transformação em questões públicas e apresentando opções políticas. Não é disso que se fala quando de advoga a obrigação do Estado em garantir o direito à saúde?
Nenhum comentário:
Postar um comentário