
Por Lygia V. Pereira (*)
Em meio à revolução médicocientífica das células tronco (CT), o Supremo Tribunal Federal deverá julgar a constitucionalidade de um tipo especial de CTs, as embrionárias. Apesar do potencial terapêutico dessas células, seu uso envolve a destruição de um embrião humano, criando a possibilidade de violar o artigo 5º de nossa Constituição, que garante "...aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no país a inviolabilidade do direito à vida...".
Essa discussão pode ser vista como a velha briga "ciência versus religião".
Porém, os dois lados devem se respeitar apesar de algumas divergências históricas sobre sua origem, cientistas e religiosos têm em comum o profundo respeito pela vida. Mesmo assim, às vezes nos desentendemos na forma de manifestar este respeito. Enquanto para religiosos a utilização do embrião para pesquisa equivale a matar alguém, cientistas vêem isso como uma oportunidade de salvar vidas.
As embrionárias são o tipo mais versátil de CTs até hoje identificadas. Elas pacientêm a formidável capacidade de dar origem a todos os tecidos do corpo, que quando transplantadas em animais doentes são capazes de tratar diabetes, doença de Parkinson e até paralisia por trauma da medula espinhal, entre outras. Daí o enorme entusiasmo dos cientistas em relação às pesquisas com essas células. Porém, como essas pesquisas envolvem a destruição de um embrião humano de 5 dias um conglomerado sem forma de quase 100 células uma nova polêmica surgiu no mundo todo: este embrião é uma vida ou não? Ora, é claro que ele é uma forma de vida humana, assim como um feto, um recém nascido e um idoso também são. A real questão é "que formas de vida humana nós permitiremos perturbar?". A "vida" mencionada na nossa Constituição já é legalmente violada em algumas situações, como numa pessoa com morte cerebral no Brasil é permitida a retirada de seus órgãos, vivos e funcionando, para transplantes que salvam outras vidas. No outro extremo da vida humana, ao proibirmos o aborto estabelecemos ser inaceitável a destruição de um feto. Por outro lado, se este feto for o resultado de um estupro ou representar risco de vida para a gestante, ele passa a ser uma forma de vida que pode ser eliminada. E aquele embrião de cinco dias, produzido por fertilização in vitro e armazenado em um congelador, em que condições ele é uma forma de vida passível de ser violada? A Lei de Biossegurança, de 2005, permite o uso para pesquisa de embriões inviáveis que não sejam capazes de se desenvolver em um recém nascido, ou que estejam congelados há mais de 3 anos. Notem que, ao aceitarmos as técnicas de fertilização in vitro (os "bebês de proveta"), aceitamos a criação desses embriões, que muitas vezes sobram, não são utilizados pelo casal e ficam esquecidos em congeladores. Foi muito conveniente ignorar esses embriões excedentes, pois afinal esta técnica permite que milhares de casais realizem o sonho de ter filhos. Já o uso desses embriões para tratar um enfarte ou ajudar um paralítico a recuperar os movimentos ainda está restrito a animais de laboratório. Talvez no dia que as CTs embrionárias estiverem efetivamente sendo usadas em pacientes seja mais difícil ser contra o uso terapêutico daqueles embriões congelados. Mas esse dia só chegará se pudermos fazer pesquisa. Em conclusão, não existe argumento científico para se proibir pesquisas com CTs embrionárias, e nem está em julgamento se aquele embrião é vida ou não: ele é uma forma de vida humana, mas provavelmente não um brasileiro ou estrangeiro residente no país ao qual a Constituição garante "inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade" e é isso que o STF deve julgar. Se por um lado aquele embrião de cinco dias não é uma pessoa ou um feto, também não o considero somente um conglomerado trivial de células. O nosso desafio é desenvolver, sim, pesquisas com embriões humanos, mas fundamentalmente de forma transparente e ética.
Lygia V. Pereira é professora do Instituto de Biociências da Universidade de São Paulo.
Essa discussão pode ser vista como a velha briga "ciência versus religião".
Porém, os dois lados devem se respeitar apesar de algumas divergências históricas sobre sua origem, cientistas e religiosos têm em comum o profundo respeito pela vida. Mesmo assim, às vezes nos desentendemos na forma de manifestar este respeito. Enquanto para religiosos a utilização do embrião para pesquisa equivale a matar alguém, cientistas vêem isso como uma oportunidade de salvar vidas.
As embrionárias são o tipo mais versátil de CTs até hoje identificadas. Elas pacientêm a formidável capacidade de dar origem a todos os tecidos do corpo, que quando transplantadas em animais doentes são capazes de tratar diabetes, doença de Parkinson e até paralisia por trauma da medula espinhal, entre outras. Daí o enorme entusiasmo dos cientistas em relação às pesquisas com essas células. Porém, como essas pesquisas envolvem a destruição de um embrião humano de 5 dias um conglomerado sem forma de quase 100 células uma nova polêmica surgiu no mundo todo: este embrião é uma vida ou não? Ora, é claro que ele é uma forma de vida humana, assim como um feto, um recém nascido e um idoso também são. A real questão é "que formas de vida humana nós permitiremos perturbar?". A "vida" mencionada na nossa Constituição já é legalmente violada em algumas situações, como numa pessoa com morte cerebral no Brasil é permitida a retirada de seus órgãos, vivos e funcionando, para transplantes que salvam outras vidas. No outro extremo da vida humana, ao proibirmos o aborto estabelecemos ser inaceitável a destruição de um feto. Por outro lado, se este feto for o resultado de um estupro ou representar risco de vida para a gestante, ele passa a ser uma forma de vida que pode ser eliminada. E aquele embrião de cinco dias, produzido por fertilização in vitro e armazenado em um congelador, em que condições ele é uma forma de vida passível de ser violada? A Lei de Biossegurança, de 2005, permite o uso para pesquisa de embriões inviáveis que não sejam capazes de se desenvolver em um recém nascido, ou que estejam congelados há mais de 3 anos. Notem que, ao aceitarmos as técnicas de fertilização in vitro (os "bebês de proveta"), aceitamos a criação desses embriões, que muitas vezes sobram, não são utilizados pelo casal e ficam esquecidos em congeladores. Foi muito conveniente ignorar esses embriões excedentes, pois afinal esta técnica permite que milhares de casais realizem o sonho de ter filhos. Já o uso desses embriões para tratar um enfarte ou ajudar um paralítico a recuperar os movimentos ainda está restrito a animais de laboratório. Talvez no dia que as CTs embrionárias estiverem efetivamente sendo usadas em pacientes seja mais difícil ser contra o uso terapêutico daqueles embriões congelados. Mas esse dia só chegará se pudermos fazer pesquisa. Em conclusão, não existe argumento científico para se proibir pesquisas com CTs embrionárias, e nem está em julgamento se aquele embrião é vida ou não: ele é uma forma de vida humana, mas provavelmente não um brasileiro ou estrangeiro residente no país ao qual a Constituição garante "inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade" e é isso que o STF deve julgar. Se por um lado aquele embrião de cinco dias não é uma pessoa ou um feto, também não o considero somente um conglomerado trivial de células. O nosso desafio é desenvolver, sim, pesquisas com embriões humanos, mas fundamentalmente de forma transparente e ética.
Lygia V. Pereira é professora do Instituto de Biociências da Universidade de São Paulo.
Artigo publicado no jornal O Globo, coluna de Opinião, na edição de 27/03/2008.
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